Helena Matos - in OBSERVADOR
Enquanto Sócrates anda às voltas com a
Justiça, os pós-socráticos ficaram livres do passado e, o que é dramático, de
mãos soltas para voltar a aplicar as receitas do passado.
Os pós-socráticos não têm ideologia. Têm
objectivos. Ou melhor, um objectivo: ser poder. E têm um passado, que é aliás o
seu denominador comum e a circunstância que faz deles o que são:
pós-socráticos.
Os pós-socráticos estiveram no poder com
Sócrates e com ele perceberam como a esquerda democrática, esgotado o modelo do
socialismo por falta de dinheiro para distribuir, ficou disponível para apoiar
mais caudilhos do que líderes porque os primeiros ao contrário dos segundos
lhes reforçam a ilusão de que o mundo gira consoante a sua vontade. Mas a maior
dívida de gratidão dos pós-socráticos para com Sócrates nasce não da maioria
absoluta que Sócrates lhes deu e da desenvoltura narcísica com que exerceu o
poder mas sim do facto de Sócrates e as suas estapafúrdias circunstâncias de
vida terem poupado o PS e os dirigentes socialistas que o rodeavam a serem
confrontados com o balanço da sua governação.
Ao reduzir-se o balanço dos anos de
Sócrates à frente do PS ao anedótico dos envelopes com garrafas e à
estrambólica megalomania que caracterizava o antigo primeiro-ministro,
eximiu-se o PS de prestar contas pelo desastre a que não só por sua
responsabilidade mas em grande parte por ela o país chegou em 2011.
Neste momento António Costa reproduz o
modelo económico de Sócrates – atirar dinheiro para a economia, apostar no
consumo interno, aumentar a despesa do Estado – e mimetiza, exponenciando-os,
os traços da arrogância do antigo primeiro-ministro perante quem não se
submeter à sua vontade. Para já os directamente visados são os accionistas
maioritários da TAP que, garante Costa, volta para o Estado, com ou sem acordo,
e as empresas que ganharam as concessões dos transportes de Lisboa e Porto.
A leviandade da actuação do actual
primeiro-ministro nestas matérias, a par da quebra dos vários compromissos em
que assentava o regime (presidência da AR, escolha dos membros do Conselho de
Estado) deviam ter feito soar vários alarmes mas, depois de Sócrates, no que
aos socialistas respeita, Portugal tem uma regra: ou é crime ou é carisma.
E assim, enquanto Sócrates anda às voltas
com a Justiça, os pós-socráticos ficaram livres do passado e, o que é
dramático, de mãos soltas para voltar a aplicar as receitas do passado, agora
com a prestimosa ajuda cénica das esquerdas da esquerda.
Oficialmente as esquerdas uniram-se para
terem um governo. Depois as esquerdas deram as mãos para terem mais lugares no
Conselho de Estado e a Presidência da Assembleia da República. Também temos
direito à esperança porque a esquerda está no poder. Um novo tempo porque este
é o tempo da esquerda… Para lá do recorrente folclore da esquerda festiva
(alguém que à direita entrasse em semelhante exaltação mística com um governo
das direitas seria dado como louco furioso na melhor das hipóteses) temos um
facto: as corporações que vivem do Estado estão a reforçar o seu poder não
apenas na máquina estatal mas também nos partidos. Não por acaso o PCP está a
reduzir-se à condição de braço político dos sindicatos, sobretudo da aérea dos
transportes, que não se importam de ver o partido perder votos desde que eles
continuem a ver garantidos os seus privilégios graças ao apoio que o PCP dá a
este Governo.
Mas a utilidade da arregimentação das
esquerdas não acaba aí. Essa exaltação colectiva é fundamental para reforçar a
ideia da direita enquanto um corpo estranho no nosso sistema político.
A discussão em torno da direita é em
Portugal uma espécie de encontro sobre o grau de tolerância a mostrar perante
comportamentos desviantes. Para começar assente-se no dogma: está cientificamente
demonstrado que esta direita, a nossa, é a mais estúpida do mundo. Algures,
existirá ou terá existido aquela direita, estoutra direita, aqueloutra direita,
essoutra direita…que é (ou foi) culta e civilizada. Mas a nossa, a
contemporânea, é inapresentável e nada tem a ver com a direita do algures ou do
passado, nomeadamente a representada por Sá Carneiro. (Curiosamente enquanto Sá
Carneiro foi vivo nunca lhe foi reconhecido esse estatuto superior, antes pelo
contrário.)
Salvaguardada a direita do algures ou do
passado resta portanto “esta direita”, a contemporânea. Aquela que somatiza
aquilo que a esquerda intelectualiza. Onde a esquerda tem indignados a direita
tem ressabiados. Onde a esquerda sente traições a direita fica raivosa. Onde a
esquerda denuncia conluios a direita sofre de azia. Dada esta circunscrição da
direita a uma espécie de aparelho digestivo rudimentar passam por comentário
político declarações como as de Edgar Silva, candidato presidencial do PCP,
para quem a direita está “raivosa” e com “azia” e de António Costa que diz
esperar “que o ressabiamento nervoso da direita passe daqui a uns meses”. Como
não podia deixar de ser, Marcelo Rebelo de Sousa, reduz tudo (e a si mesmo) a
uma espécie de paráfrase do pessoano “Come chocolates pequena” propondo-se
enquanto Presidente da República ajudar a lidar com a “amargura” da direita.
É isto Portugal no fim de 2015: os
pós-socráticos governam, as esquerdas dão o tom e a direita está reduzida à
condição de estômago. Como não podia deixar de ser o único que anda à procura
do seu lugar no tempo dos pós-socráticos é Sócrates.
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