A noite de Natal ou de consoada sempre foi
parca em casa dos meus pais. É claro que havia os tachos e as travessas de
gemalte que se enchiam de filhózes e rabanadas, de polvo frito em ovo e salsa.
As filhózes e rabanadas eram regadas com molho de mel (e canela). Mel da
Montanha da Padrela, que a minha mãe trocava por azeite, ao Ti «Joeu». Trazia-o
em cântaros de cortiça e lata, nas cangalhas sobre o dorso do pachorrento
jumentico.
As grandes travessas de faiança do
cavalinho e outras de porcelana enchiam-se de aletria pobre (só com leite e sem
ovos) e polvilhada com canela, deixando rastos de desenhos geométricos a
indicarem como devia ser retalhada. Era comida à fatia e à mão ou em cima de
trigo, sêmea ou charrão. O meu Pai não dispensava os bolos de bacalhau pintados
pêlos ovos marelos e salsa verde.
Havia sempre pinhões com casca e que
serviam para jogarmos ao rapa, põe, tira e deixa (R, P, T e D), com as letras
bem desenhadas na madeira.
Prendas quase não havia, e se houvesse
eram roupas que necessitávamos ou uns caramelos. A vida no mundo rural
remediado ou de pequenos agricultores não deixava espaço para gastos no
supérfluo. Quem os fizesse e não fosse comedido, recebia dos demais vizinhos
qualificativos de «desgovernado», «gastador», «lambão» e «sem cabeça». Havia
uma família que no tempo barato, a seguir ao 25 de Abril de 1974, todos os
ordenados que entravam em casa somavam 15 contos. Uma fortuna para o tempo. E
nunca conseguiram construir uma casinha modesta.
Mas propus-me falar de uma certa magia do
natal, não vá alguém escandalizar-se com uma generosa e substancial malga de
caldo, mesmo de castanhas.
A magia de Natal, para os mais pobres,
escrevia-se nas zonas frias montanhosas, em Portugal e na Galiza, com as
generosas castanhas. Estas eram o garante das barrigas compostas em noite de
consoada. Por isso, voava a imaginação das prendas do «Menino Jesus», uma
esperança vã dos mais pobres e um sonho imaginário.
Assim, na madrugada da noite de consoada,
enquanto toda a aldeia dormia sobre um debruado manto branco ou uma capa de
frio, o Gaiteiro passava com a providencial gaita céltica e, ao som dos mágicos
acordes, o Natal acontecia. Era só ir à lareira e ver se os «sapatinhos» tinham
algum mimo, brinquedo ou peça de roupa.
. Na Galiza profunda, mais nas Montanhas
do leste da Galiza, em Terras de Trives, Courel ou Berzo, as castanhas na noite
de Natal eram o garante da barriga cheia, mesmo para as populações serranas
mais pobres. «O Pandegueiro», segundo texto da minha lavra em «Memórias da
Maria Castanha» de que reproduzo partes, mais como inspiração motivadora. O
mítico Pandegueiro, na noite de 25 de Dezembro, enquanto as crianças dormiam,
descia da Serra de Manzaneda (ou da Cabeça Grande) e vinha
certificar-se se tinham comido, pondo-lhes a mão na barriguinha, daí ser,
também, conhecido por «Apalpador».
Para além do lendário Pandegueiro, a Serra
de Manzaneda, continua povoada de contos e lendas de mouras encantadas e de
outras histórias de bruxas e lobisomens.
Na noite de Natal, ao menos, ninguém podia
ir para a cama com a barriga cheia de fome. As crianças antes de irem dormir
pediam, ao Apalpador ou Pandegueiro, leite com castanhas cozidas (o «caldudo»),
presentes e brinquedos, em pau de amieiro feitos por atrtesãos locais. Daí o
dito: «vou cheirar-te a barriga (pândega ou bandulho) para saber o que
comeste».
O Pandegueiro (ou Apalpador) deixava aos
meninos e meninas um montinho de castanhas e, às vezes, mais algum presente e
desejava-lhes um ano cheio de felicidade e de barriguinha cheia.
Senti nas pesquisas, que muitos tentam
enterrar a tradição e toda a memória imaterial das castnhas galegas, porque
associam o mágico e saudável fruto ao tempo da pobreza extrema.
O «Pandigueiro» pagão acabou por
desaparecer com a chegada de figuras mais luminosas, burguesas e cristãs dos
Reis Magos e hoje os presentes galegos chegam em «Dia de Reis».
Nos natais galegos de antanho merecem
referência «Os Trinta», isto é, os Gaiteiros de Trives, tocavam tanto, com se
trinta fossem. Aqui entronca a tradição raiana vinhaense do Gaiteiro e que deve
voltar a avivar-se nas escolas, tal como se vem fazendo na divulgação dos
caretos ou dos mascarados.
A gigante e mítica figura do Pandegueiro
ou Apalpador está a ser recuperada por algumas localidades galegas, como parte
importante do seu património cultural e vai muito para além no tempo do que o
cristianismo ibérico.
O Apalpador (ou Apalpa Barrigas) era um
lendário gigante carvoeiro que durante a noite de Natal descia das Montanhas de
Courel ou Ancares, tal como o Pandegueiro da Serra de Manzaneda, para apalpar a
barriguita das crianças e saber se tinham comido bem, trazendo-lhe castanhas e
regalos e desejar um bom ano.
Provérbios:
A
bela castanha de Castelões! (Dizia-se no Mercado do Bulhão para anunciar a
ímpar Castanha de S. Pedro dos Castelões)
Quem
quer colmeias, cresta pelo Natal.
No
S. Tomé mata a porca pelo pé.
Actualizado a 30 de Dezembro
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