31/12/2015 - 00:05
Os
meus desejos liberais são bem concretos: combater o capitalismo de compadrio.
O meu problema com a conversa de treta do
neoliberalismo português é este: em primeiro lugar, confunde políticas impostas
a um país intervencionado com profundos desejos ideológicos; em segundo, falha
na identificação daquele que é, de longe, o mais grave problema do país – essa
terrível doença que em língua inglesa se chama crony capitalism, e que em bom
português podemos traduzir por “capitalismo de compadrio”.
A confusão entre um neoliberalismo
fantasmagórico e um capitalismo de compadrio bem real tem como trágica
consequência desviar as atenções daquilo que realmente importa: o vergonhoso e
eterno concubinato entre partidos, deputados, ministros, empresas privadas e
Estado. Aquilo que mais me encanita em prosas como as de Alfredo Barroso é não
perceberem, ou fingirem que não percebem, que a batida caricatura neoliberal
acaba por proteger as costas dos mesmos poderosos que alegadamente pretende
enfrentar.
No último fim-de-semana, o Expresso
publicou um óptimo texto – “O diabo que nos impariu” (Expresso | O diabo que nos impariu ) – onde se explica como é
que neste país se destruíram 40 mil milhões de euros em oito anos, acabando a
pátria a nacionalizar uma pilha escandalosa de dívida privada. Aos nomes de
ex-políticos que circulam por esse texto – Dias Loureiro, Duarte Lima, Arlindo
de Carvalho, Armando Vara –, juntam-se outros bem conhecidos da nossa vida
pública, como Luís Filipe Vieira ou Joe Berardo, para além de uma série de
ricos indígenas mais ou menos anónimos que têm a particularidade de deixar
dívidas em tudo o que é banco falido. Neste país, há uns que têm de penhorar
mãe e avó para conseguir um empréstimo, e há outros a quem basta mostrar ao
gestor de conta a lista de contactos do telemóvel.
Ora, isto, que é o mais grave, não tem
nada a ver com neoliberalismo – e Alfredo Barroso esteve demasiados anos na
vida pública, e conhece demasiada gente importante, para fingir que não sabe do
que estou a falar. Recordo, aliás, que foi o próprio Mário Soares, de quem
Alfredo Barroso foi chefe da Casa Civil, quem contou numa reportagem televisiva
recente como convidou Ricardo Salgado a voltar a Portugal e a refundar o grupo
Espírito Santo, no início dos anos 90. Quando Salgado lhe disse que não tinha
dinheiro para isso, Soares respondeu: “O dinheiro arranja-se.” E arranjou
mesmo, via França (“mon ami, Mitterrand”, lembram-se?) e via Crédit Agricole. É
assim que as coisas se fazem em Portugal.
E fazem-se assim à direita, à esquerda e
ao centro, porque o capitalismo de compadrio não tem ideologia. A areia
neoliberal que é diariamente atirada aos nossos olhos não pode apagar a
História: pense-se o que se pensar do governo Passos Coelho (e depois do Banif,
eu estou a pensar muito mal), foi ele que deixou cair o Banco Espírito Santo.
Foram os supostos amigos do grande capital que deram a maior machadada no
capitalismo de compadrio da história da nossa democracia. Machadada essa que
deve ser festejada por socialistas e por liberais, que querem um Estado mais
pequeno não para oferecer dinheiro aos privados, mas para manter longe do
Estado os interesses particulares que dele se alimentam desde sempre. Se a
conversa da esquerda neo-histérica é babugem abstracta, os meus desejos
liberais são bem concretos: combater o capitalismo de compadrio, para que todos
possam subir na vida sem precisarem dos números de telemóvel de Miguel Relvas,
de Jorge Coelho ou de Mário Soares.
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