FRANCISCO ASSIS 26/11/2015 - in: jornal Público
António Costa toma hoje posse como novo
Primeiro-Ministro 40 anos e um dia depois do 25 de Novembro de 1975. Por
escassas 24 horas a realidade ludibriou parcialmente o simbolismo. Este, porém,
não pode ser facilmente arredado da disputa política em curso. A direita
percebeu-o e a esquerda não o ignorou. Não foi por acaso que a coligação
PSD/CDS se empenhou na tentativa de promover uma comemoração parlamentar
inédita da efeméride em causa. As razões que levaram o Partido Socialista a
rejeitar tal iniciativa são facilmente descortináveis. A direita pretendeu
insinuar uma traição, o PS visou esquivar-se a uma complicação. Em boa verdade,
o que estava em causa era apenas e tão-só, de parte a parte, uma avaliação
instrumental de um acontecimento marcante da nossa história contemporânea mais
recente. Do ponto de vista do puro jogo político ambos os comportamentos são
entendíveis e até mesmo aceitáveis. Não é por isso de estranhar que tenham
acabado por se neutralizar mutuamente. A direita celebrou solitariamente a sua
própria memória de uma data que nunca subavaliou. O PS refugiou-se no silêncio
em relação à evocação de um acontecimento a que sabe estar profundamente
associado.
Há 40 anos e um dia, a direcção
do Partido Socialista reuniu e decidiu a imediata partida de Mário Soares e
outros importantes dirigentes para o Porto. A razão era simples. Perante uma
tentativa de golpe militar que visava assegurar a primazia de uma suposta
legitimidade revolucionária sobre uma efectiva legitimidade democrática de
proveniência eleitoral, impunha-se o abandono da capital por parte do líder do
partido, que vinha desde há alguns meses atrás a liderar o combate a uma clara
tentativa de instauração de um regime autoritário de inspiração
marxista-leninista, sob pena de ficar impedido de prosseguir tão destemida
acção. Chegados ao Porto dirigiram-se prontamente para o quartel que acolhia a
sede da Região Militar do Norte, onde pontificava a figura de Pires Veloso,
conhecido por um particular empenhamento na resistência à consumação do
projecto revolucionário prosseguido por alguns sectores da esquerda do MFA,
pelo Partido Comunista e por uns quantos grupúsculos de escassíssima
representação popular. Foi a partir desse local que acompanharam a evolução dos
acontecimentos que decorriam em Lisboa. Estes evoluíram no sentido da derrota
estrondosa da extrema-esquerda militar e política, com a consequente eliminação
do risco de Portugal se transformar num país subordinado ao modelo soviético,
com todas as consequências daí resultantes no domínio da limitação dos
direitos, liberdades e garantias fundamentais e no plano da inserção no sistema
político internacional. Mário Soares pôde então regressar tranquilamente à
capital do país.
40 anos e um dia depois,
abstraindo do aspecto meramente conjuntural do confronto político presente,
duas questões podem e devem ser colocadas. A primeira é naturalmente a de saber
se o 25 de Novembro constitui uma data com dignidade suficiente para merecer –
ou até mesmo exigir – adequada comemoração pública e institucional. A segunda é
a de aquilatar se assiste alguma justificação e utilidade operativa à projecção
dos acontecimentos da época no processo de interpretação da realidade presente.
Ambas são questões pertinentes e de resposta relativamente óbvia. O 25 de
Novembro, enquanto momento real e simbolicamente determinante para a afirmação
vitoriosa de um modelo de organização política conforme ao praticado na
generalidade das democracias ocidentais, merece indiscutivelmente ser objecto
de ampla celebração popular. É natural que se oponham a tal ideia quantos se
filiam numa outra concepção de regime, directamente referenciado ao modelo das
proclamadas “democracias populares” que prevaleceram no Leste europeu até ao
final dos anos 80. Não é por isso de estranhar que ainda hoje distintíssimas
personalidades do Partido Comunista se empenhem na publicitação de textos de
pendor altamente crítico face aos acontecimentos em causa, que aliás
reinterpretam de acordo com a sua própria filiação doutrinária. É natural que
assim seja, e, no limite, é até muito respeitável tal manifestação de coerência
obstinada. Causou-me por isso a maior estranheza a declaração do General
Ramalho Eanes segundo a qual se não devem comemorar momentos caracterizados
pela divisão intranacional. Levado ao limite, tal raciocínio impedir-nos-ia de
celebrar todo e qualquer acontecimento histórico, já que raramente o unanimismo
prevalece nas ocasiões mais marcantes da vida de uma comunidade. Tendo sido
porém o General Eanes uma das mais relevantes figuras do 25 de Novembro, e
tendo a sua acção nessa ocasião suscitado um reconhecimento de tal ordem que o
propulsionou a seguir para o desempenho das mais altas funções políticas do
Estado português, sou levado a ler nessas palavras uma manifestação da
humildade a que deveras nos tem habituado. É compreensível que ele não se
queira comemorar a si próprio – já seria de todo em todo despropositado que a
comunidade nacional em geral se dispusesse a desvalorizar a importância dos
cometimentos desse instante histórico.
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