Jorge Lage |
Da sua escrita, marcou-me com um
ferrete em brasa, muitos dos seus contos, dos poemas e dos XVI Diários. Aprendi
a ter uma cumplicidade com a obra de Miguel Torga. Na minha modesta colaboração
com a imprensa regional trasmontana, acabei por incluir e divulgar trinta
poemas do «Poeta da Montanha». Cada texto escrito ou poema publicado sentia que
era uma flor depositada na campa da sua memória.
Foi a Miguel Torga (e Aquilino
Ribeiro) que fui buscar a força para assumir a ruralidade lexical, a procura da
arqueologia linguística e, por vezes, o prazer de lhe dar vida.
A vida da família de Adolfo
Rocha, em S. Martinho d’Anta e das gentes durienses foi de uma dureza e
negritude imensa, que o veio marcar para sempre e contida no dito avoengo:
pobre pássaro que nasce em ruim ninho!
Terminada a instrução primária,
com os seus pais, constrói um presépio em movimento entre S. Martinho e o
seminário de Lamego, apesar do pai o querer enviar para o Brasil. No ano seguinte,
encarna no Porto o papel de moço de recados, mas, as humilhações das filhas da
burguesia, empurram-no, de novo, para a casa paterna, para rumar ao Brasil.
No Brasil, fez-se homem e podia
ser um dos grandes vultos das letras em Terras de Vera Cruz, mas uma tia
machorra e desumana troca-lhe as voltas e regressa com destino à academia
coimbrã. Para trás, ficava a memória dos amores insaciáveis de Etelvina e os fugazes
com a mulher do Oleiro. Já como médico, em Leiria, a fome das carnes são-lhe
saciadas pela criada. Há ainda o amor de uma professora do Minho, que não lhe
compreendia o trabalho criativo da escrita e esqueceu-a.
Em certo sentido, nunca virou a cara às suas
raízes e nos contactos sociais preferia a conversa de um contínuo, de um
porteiro ou de um agricultor humilde à da gente abastada ou da ribalta. Por
isso, os amigos eram poucos. Soube cedo o valor do dinheiro e o que custa
ganhar a vida num Portugal rural, dominado pelos grandes proprietários.
Ao longo da minha vida tenho
ouvido aguilhões de palavras como: sovina, intratável ou ganancioso. Como
compreendo e me orgulho da sua firmeza perante os poderosos ou bafejados pela
sorte!...
Quantas vezes vi Miguel Torga em
Chaves, na companhia do ilustre e afável hidrologista Mário Carneiro? E nunca
me abeirei dele para o cumprimentar. Mais tarde, não consegui conter o impulso,
ao passar no Largo da Portagem, em Coimbra, subi ao seu consultório, respondendo-me
o silêncio infindo.
Pode-se ser pobre e não se
estender a mão de pedinte. Miguel Torga quando bateu à porta de uma editora
sentiu essa revolta passando, para sempre, a publicar por sua conta e risco.
Segundo me confidenciou o saudoso
Padre Avelino, na Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro em Braga, a mágoa com que
Miguel Torga morreu, foi de alguns «amigos» da esquerda, mais estalinista, lhe
barrarem o possível caminho da glória. Moveram influências para que a sua
candidatura ao Prémio Nobel da Literatura, da Academia Sueca, não fosse
considerada, apesar da imensa qualidade e criatividade da sua escrita, de ter
estado preso pelo antigo regime e ser um lutador pela liberdade de pensamento.
Outro dado curioso sobre Miguel
Torga era o trabalho que ocupava a compor um texto. Ao contrário da facilidade
com que, o seu amigo, António Cabral ajardinava uma embelga de letras e, no
dizer, do vila-realense, Nelson Vilela, haveria uma ponte de ciúme do «Poeta da
Montanha» para com o «Poeta do Douro».
Se Miguel Torga estivesse entre
nós, seria como um elefante numa encaquilhada loja de porcelanas. Se a sua pena
arremetesse contra o oportunismo de muitos políticos e seus acólitos, no
redesenhar de valores da sociedade ou no rumo formal que alguns iluminados que
estão a dar à língua portuguesa, no (des)acordo ortográfico, como se esta fosse
coutada de visões e interesses menores, suportando um amesquinhamento tropical.
Este ano, quero visitar as
viçosas pionias no seu jardim de S. Martinho. Talvez lá, encontre o Mário da Pensão
Central, que me deu a honra de almoçar na cadeira e mesa que estavam sempre
guardadas para Miguel Torga.
Braga, 19ABR2015
Jorge Lage
Nota explicativa do autor:
O
texto a trás foi a resposta a um convite do Director do Grémio Literário,
ilustre escritor, Pires Cabral, em que me pedia uma página tamanho A4 em
memória de Miguel Torga. Ao aceder ao honroso convite quis fazê-lo de um modo
que acrescentasse algo mais à sua memória e ao muito que se tem escrito sobre o
nosso telúrico escritor. Se não consegui, ficou, pelo menos a tentativa. Poucos
teriam a coragem de dizer que os bastidores do Partido Comunista Português
moveram influências para que a sua obra não fosse laureada pela Academia Sueca.
Foi uma confidência triste que me fez o saudoso Padre Avelino, pároco de S.
Martinho d’Anta. Outro aspecto da memória torguiana, é que ele namorou algum
tempo com uma professora natural da região do rio Lima ou do rio Vez, mas que
nunca identifiquei nem localizei com precisão. Miguel Torga só a deixou, por
considerar que só o amor era curto para ele e queria ser admirado como artista
do belo e sólido perpianho linguístico. Pôs fim a uma relação e penso que
«grosso modo» terá coincidido com o trocar das termais águas do Gerês pelas da
terra das «Aquas».
Jorge Lage –
jorgelage@portugalmail.com – 10MAI2015
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