Coitado, foi para o Panteão
por Carlos de Matos Gomes
"As sociedades necessitam de
símbolos para representarem os seus valores. A arquitectura, a estatuária, a
pintura, a arte em geral também cumprem esse papel de dar forma e local de
culto ao que uma sociedade considera ser a sua essência, aquilo que pode ser
designado pela sua alma.
Em África, por exemplo, certas
culturas têm as suas árvores sagradas. Na Guiné, na Senegâmbia, chamam-lhes
Irã. É ali que repousam os espíritos dos antepassados e ali que eles podem ser
chamados a pronunciar-se sobre o presente e a transmitir aos atuais a sabedoria
que recolheram da vida, a aconselhar, a julgar.
Os panteões começaram por ser os
locais de reunião dos vários deuses de uma dada região e de uma dada cultura,
ou civilização. Foram um primeiro passo para o monoteísmo. Ali se reuniam todos
os veneráveis, num único lugar. Diferiam dos templos porque, ao contrário
destes, não tinham altar, não eram lugar de sacrifício, nem de oferendas,
apenas de veneração, de unanimidade sobre um certo modo de viver, que aqueles
seres divinizados representavam.
Os modernos panteões retomaram
esse espirito numa vertente laica e republicana. Pretenderam reunir aqueles que
uma dada nação considerava como os seus faróis, aqueles que foram orientando a
sociedade e dotando-a de uma identidade. Aqueles que foram capazes de decantar
a essência do seu povo.
A ideia de reunir esses símbolos
é em si mesmo louvável. Mas é necessário deixar que o tempo faça o seu
trabalho, limpando o efémero. É necessário envelhecer bem para merecer o
Panteão. Um panteão não é uma caderneta de cromos com os bonecos dos
futebolistas que jogaram nesse anos na primeira divisão.
Vem isto a propósito da nova moda
dos panteonáveis. Tenho a minha opinião sobre os que lá estão, os da primeira
vaga e os da segunda, mas não é sobre um referendo a propósito de inclusões ou
exclusões que me parece saudável discutir, mas sobre o conceito de “ir para o
panteão”. O ir para o panteão, já, como se ouviu após a morte de Eusébio e
agora com a morte de Manuel de Oliveira é o correspondente ao sanctus súbitoda
Igreja Católica, que deu por vezes péssimos exemplares de santos. O outro
perigo é o de transformar o Panteão numa montra dos famosos da época, de amigos
de um dado regime. Ou num local da moda. Num cemitério de personalidades – um
PéreLachaise no Campo de Santa Clara, na antiga igreja de Santa Engrácia- em
vez de ser uma fonte, uma árvore numa floresta sagrada.
É evidente que todas as
personalidades ultimamente panteonadas são ilustres, a questão não é essa, é a
de a sociedade portuguesa entender que o Panteão passou a ser o jazigo dos
ilustres. Isto é, se o Panteão português passou a ter outra finalidade. É que,
se o Panteão passou a ser o cemitério do PéreLachaise de Portugal convém
desimpedir o campo à volta de modo a albergar a vaga de famosos que mais cedo
ou mais tarde falecerão e que terão tanto direito como outros a ali figurar,
lembro, sem nenhum desejo de lhes apressar o fim, longe vá o agoiro, atletas
como Carlos Lopes, Rosa Mota, Joaquim Agostinho, atores e actrizes como Rui de Carvalho,
ou Eunice Munõz, ou Maria de Medeiros, filósofos como Eduardo Lourenço, músicos
como Chaínho, pintores como Pomar, escritores como Agustina e pergunto onde
estarão, entre outros, o Zeca Afonso, ou Agostinho da Silva, ou Saramago, ou
Eugénio de Andrade, ou Natália Correia, ou Amadeo de Souza Cardoso,
administradores como Azeredo Perdição, ou engenheiros de grandes obras como
Edgar Cardoso, enfim a lista podia continuar com os acrescentos e exclusões de
cada um, se a ideia for panteonar os nossos ilustres concidadãos e não aqueles
que dirão aos nossos descendentes onde devem lançar a âncora, aqui e não ali,
as boas épocas para viajar, ou de ficar em casa, as de correr ou as de andar,
as de lutar ou as de negociar…
No romance Para Sempre, Vergílio
Ferreira (aí está outro panteonável) coloca vários escritores de várias épocas
a comentarem as vicissitudes de história numa imaginária biblioteca. Eu vejo o
Panteão como a biblioteca do Para Sempre, com os ilustres que lá se encontram a
reflectirem sobre Portugal, sobre os portugueses, sobre o que somos, sobre o
nosso futuro e a deixarem-nos ouvi-los. Eu, por exemplo, de todos os ilustres
lá imortalizados, o que me parece ter dado a melhor resposta às perguntas que
eu lhe faria sobre o que de mais importante devíamos fazer para vivermos melhor
e sermos melhores, sobre a causa da nossa pobre situação foi João de Deus:
aprendam a ler! E deixou-nos uma cartilha! Inteligente e eficaz. Um caso raro.
Para já, o que oiço dos que andam
cá por fora é: coitado, lá vai mais um para o panteão. Ou a nova versão da
frase de Almeida Garrett: Foge cão que te mandam para o panteão! O que não
honra o Panteão, nem quem lá está, nem quem lá deverá estar…
O populismo é sempre mau
conselheiro e, como diz o povo, cadelas apressadas parem cães cegos. Ainda
corremos o risco de lá irem parar o Alves dos Reis e o Ricardo Espírito Santo,
os maiores fazedores de dinheiro falso…"
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