Jorge Lage |
Em criança, quando via passar à
minha porta uma mulher prenhada e já andava muito devagar ou via movimentos
apressados da «Julha» do Fena, parteira da aldeia, por «reforma» da Tia Antónia
do Xico M.ª, para alguma casa ou casebre era certo que ia parir. Os garotos iam
todos para a rua ou para casa de alguma vizinha, porque aquilo era obra de
mulheres. Com bacias de água quente e rezas pelo meio lá vinha a notícia de
mais um raparigo e que era beijado por toda a família, como se fosse o
«bilhete» para fazer parte do clã.
Nunca me lembro de vir algum
médico à aldeia por uma situação mais complicada. Não havia dinheiro para esses
luxos e prosmeirices e só de barca lá chegaria. A parteira da aldeia resolvia.
Depois, no baptizado, era, geralmente, a parteira que tinha a honra de levar o
raparigo à pia.
A morte do Maximino «Piqueno» foi dos
episódios mais longínquos que retenho. Era um mendigo, que pernoitava na loije
de animais, do Xico M.ª Mateus, na «rua de Baixo» e nas costas da casa da
Ferreira e do Júlio, quem sai da Igreja, pela porta principal, à direita.
Curioso é me lembro do episódio
em que ele ia a passar à minha porta, numa tarde soalheira de Outono ou
Primavera, e eu estava sentado ao fundo das escadas, com as minhas irmãs e a
Ana M.ª. O mendigo passou de taleigo das esmolas e haveres às costas e, já uma
distância de 10 ou 15 metros, a Ana M.ª dispara a nomeada mais desprezível: -
Oh! Maximino Piolhoso! Oh! Maximino Piolhoso!
O mendigo volta-se para traz como uma mola em
brasa e ameaçadora. Devo ter ficado sem respiração. Mas, o Maximino Piqueno
tinha identificado bem a agressora e como um cão danado atira-se a ela, que
sentada estava e sentada ficou e ligou a «sirene» a todo o gás. Enquanto o
mendigo raivoso repetia: - toma lá o Maximino Pilhoso!
Foram três ou quatro vezes que a
Ana M.ª levou com o saco das esmolas e dos haveres pela cabeça abaixo. O
mendigo retira-se e segue o seu caminho. As minhas irmãs disseram-lhe: - foi
bem-feita! Não tinhas nada de chamar nomes ao «probe» que ia na vida dele.
Recordo-me da cena, mas não me
recordo do seu rosto, tal é o tempo recuado da minha memória. Como me recordo
do cair de tarde em que este probe morreu na loije dos machos. Devia ter eu
três ou quatro anos, porque só chegava à entrada da porta e recuava para trás
com os maiores. Alguns éramos muito pequenos, quando íamos para ver o probe a
morrer ou já morto, voltávamos para trás com os maiores, que já recuavam em
passo bem ligeiro e amedrontados com o espectro da morte na penumbra da loije.
Assim, a minha memória de criança,
recua aos meus três ou quatro anos.
Dos primeiros anos de vida,
lembro-me do hábito de aconchegar uma das mãozitas no peito da minha mãe. E a
vontade ou aconchego que sentia era tanto que o normal era ter uma mãozita
junto ao peito. O meu pai contrapunha que andava lá uma lagartixa e eu,
assustado, retirava logo a mão.
Um dia, com o meu pai vencido
pelo sono, suplico: - oh Mãe! Deixa-me meter a mão no teu peito, que ele agora
está com os «cornos» ferrulhados e não «bê»!
Este meu duro e inocente desejo
fazia parte do rol de ditos que a minha Mãe avivava, de quando em vez, com
risota.
As crianças na minha aldeia, na
década de trinta a cinquenta eram duros para mães e filhos, principalmente se
eram os primeiros e não havia pessoa idosa para ficar com eles. As crianças
ficavam a dormir no «gaiolo» ou no berço de madeira com algum xaile ou manta
velha a tapá-los, enquanto as mães saíam de madrugada para a faina do campo,
ganhar a vida.
O terceiro ou quarto filho, com
três, quatro ou cinco anos tinha de tomar conta dos mais novos e quando as mães
regressavam estava tudo com fome e cheios de gaitar.
Sei que dos momentos mais duros
que a minha mãe teve de enfrentar, para além dos tempos de racionamento,
durante a Guerra Civil Espanhola e da Segunda Grande Guerra, era quando ia para
o campo trabalhar e tinha de deixar os dois primeiros filhos sozinhos em casa.
Falava-me na cena dolorosa de eles, crianças de tenra idade (com quatro ou
cinco anos já acompanhavam os pais no campo), quando, no Inverno, a minha mãe
lhes apagava o lume. Eles desatavam num berreiro, que lhe sangrava a alma e a
dor acompanhou-a pela vida fora.
Dizia-me que apagava o lume para
evitar que se queimassem ou provocassem algum incêndio.
Depois, deixava-os envoltos num
xaile velho, fechados na cozinha, que apenas tinha como luz a que passava pela
telha-vã e por duas ou três telhas de vidro.
Eu, como benjamim do rebanho, fui
um privilegiado, porque a minha irmã mais velha tomava conta de mim. E até
tinham autorização de me trazer para o recanto soalheiro do sol poente, ao
fundo das escadas da casa paterna.
Neste tempo de deixar as crianças
com um, dois ou três anos fechadas em casa a dormir, por vezes pedia-se a
alguma vizinha (os homens não tomavam conta dos raparigos) que não saísse para
o campo para lhe ir escutar o raparigo.
Havia todo um ritual com os
filhos, mas os trabalhos do campo estavam primeiro, para uma vida pobre e de
sobrevivência.
Se a criança era saudável,
procurava-se uma data festiva para se baptizar. E ser padrinho era uma honra,
uma prova de consideração e de prestígio.
Recordo-me que os meus pais
tiveram um afilhado cigano, ao baptizar um filho ao Luís (Cigano) de Miradeses
e se o compadre passava pela minha aldeia era convidado para comer à nossa
mesa. A última afilhada que teve, a Madalena (?), filha do Serafim e da
Filomena, foi criada com leite de ovelha que o meu pai lhe dava diariamente. Eu
tive menos sorte, fui criado com leite de cabra, mais fraco, em termos
alimentares.
Sobre o meu baptismo, que ocorreu
pela festa da padroeira, Santa M.ª Madalena, houve um episódio curioso, por
haver dois baptizados a 22 de Julho de 1948: o do Manuel Grilo e o meu. Alguém
avisou a minha Mãe, que o último de dois a ir à pia, morria. A minha Mãe nem
pensou: Oh, M.ª! Deixa-me baptizar o meu primeiro, porque dizem que quem for de
trás morre!
A M.ª (Ruça) Mateus, amiga de uma
vida, deu-lhe logo a vez e lá vou eu à Pia na frente. Morreram-lhe, à M.ª Ruça,
vários dos nove filhos, mas o Manuel, do meu tempo, cá anda.
A minha mãe tinha perdido o João e
essa dor de perder o sexto filho acompanhou-a por toda a vida, tantas foram as
vezes que lhe ouvi contar episódios de um irmão que não conheci. Nem podia
conhecer, porque só vim ao mundo, para ocupar o lugar dessa perda.
Certo é que a Ruça deixou-me passar
à frente no ritual baptismal e Deus abençoou-nos aos dois. E fomos companheiros
inseparáveis até ao fim da escola primária, a que se juntou, mais tarde, o
César Riça.
De tenra idade, com o tempo bom
eu também ia para o campo e gostava de acompanhar o meu Pai. Foi com ele que
aprendi a memória da ruralidade. Para um aldeão e agricultor o campo era
sinónimo de fartura e de uma vida sã. Havia grão na tulha, batatas no baixo e
horta farta. Dos da «Bila» (leia-se, Mirandela), dizia-se, «compravam tudo por reção».
Desde pequeno me apercebi que ser
pastor de um rebanho pouco esforço físico exigia e depois quase todo o gado
ovino é dócil e os cordeirinhos (cavalinhos, burricos, vitelos e cabritos) eram
a minha perdição. O que mais queria ser era pastor. E, com dez ou onze anos, no
dia que me deixaram tocar sozinho o rebanho uns dois quilómetros entre o areal
do rio da «Azenha do Treboadas» e o nosso cabanal em Chelas, foi um momento de
emancipação que nunca mais esqueci.
Conhecia e sabia o nome das
ovelhas todas do rebanho. Todo o gado ovino, asinino, muar e bovino tinha nome
como as pessoas. Era como se fossem a continuação da família duma casa de
lavoura. Numa casa de lavoura dava-se atenção a tudo. Se um animal ficava
doente tinha que se lhe fazer um defumadouro ou dar-lhe uma mezinha. Se uma
oliveira ou olival ficava com a folha mais «marela» era preciso drenar o
terreno e construía-se um cano em pedra.
Alguns dos episódios que vivi em
pequeno eram comuns a outras crianças. Quando estava deitado e não via ninguém
no quarto, chamava logo: - ó nha Mãe! E repetia até que a minha Mãe me vinha
buscar à cama para ir para o escano da lareira. Por vezes era a minha irmã mais
velha (a segunda Mãe).
Era comum ir-se espreitar o
menino. Isto é, se estava a chorar ou se ainda dormia.
Como vou ser avô, decidi contar
aos filhos alguns episódios da minha meninice. Assim, sempre que vinha uma
doença mais forte, e a febre me fazia delirar, pedia sempre a minha Mãe para me
levar à Bila: - Mãe! Leve-me à Bila ao deitor, que eu morro!
A minha Mãe queria-me como ao
sangue que lhe corria nas veias, lá me ia prometendo que se não melhorasse me
levaria no dia seguinte. Eu tinha a noção da gravidade e dos delírios que para
os suportar estarrincava os dentes e ia repetindo o pedido sem fim.
Depois de tanto pedir lá ia eu «a
cabalo» na burra, bem albardada e agasalhado se era tempo frio e de sombreiro
se era tempo quente.
Após algum tempo de cama e alguma
injecção, lá ia melhorando e não fossem os cuidados da minha Mãe eu teria
morrido em criança.
Ainda me recordo que a minha Mãe
me lavava numa grande bacia de zinco quando andava muito sujo.
Depois um dia de Outono a minha
irmã, Alfredina, lavou-me e vestiu-me o melhor que pode e fui para a escola da
D.ª Ângela. Não fazia a mínima ideia que a escola tinha regras. Sentados três
por carteira de madeira, peguei-me com o parceiro do lado porque ele quereria o
meu lápis ou régua. A D.ª Ângela pôs-nos logo de castigo á frente. Sentindo-me
injustiçado, olhei para a porta de saída e vendo-a aberta, já não estava lá
dentro. Marcou-me, na escola, para o resto dos dias. Não foi fácil a minha
relação com algumas mestras.
Quando descobrimos que tinham um
livro com os problemas resolvidos não achávamos correcto que nos batessem se
elas, também, não os sabiam solucionar.
Jorge Lage – jorgelage@portugalmail.com –
04OUT2014
Provérbios:
Namoro
é ramo de souto, vai um e vem outro.
Castanha
assada, pouco vale ou nada, a não ser untada.
Dia
de Santo André, entra o Inverno de vez.
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