Jorge Lage |
Foi num dos
primeiros anos da segunda metade da década de setenta e, apesar das más
estradas nacionais, todos os anos, na época natalícia, voltava à casa paterna.
A candeia a petróleo já
tinha sido posta na pilheira, de adorno, a palha tinha deixado o piso das ruas,
e embora a minha alma continuasse a aspirar o calor e o aconchego da casa
paterna e o crepitar do lume na lareira me embebedasse a memória da meninice,
as panelas (potes de ferro e de três pés) ao lume eram as mesmas e os bancos
mochos quase paravam o tempo.
Depois de um dia de viagem
e vencidas as curvas das montanhas do Alvão e da Padrela o que vinha mesmo a
calhar era a ceia em família.
A minha mãe costumava
dizer que se comia o que a casa dava. E a casa dava para as noites de Inverno
um grande esqueiro de lenha para aquecer tudo e todos, o pão do forno, as
batatas, com as couves tronchudas e o azeite cheiroso até à medula dos ossos.
Esquecia-me do fumeiro, das alheiras enchidas no amuado da grande caldeira de
cobre e bronzeadas na labareda da lareira.
Há sempre dias diferentes,
que nos esquecemos do mundo, que paramos o relógio do tempo e vivemos o Céu
neste mundo. Um dia desses vivi-o nessa ceia memorável em que me esqueci do
tempo e do mundo e continuei a comer as batatas brancas (arrambanas ou arranconses),
farinhentas a cheirarem aos odores da lareira e do lume, acompanhadas com as
couves-tronchas de Mirandela e regadas com a generosa azeiteira, saída das mãos
do Carlos Latoeiro com um bico de mais de meio centímetro de abertura. Depois,
para completar uma refeição digna do Olimpo e dos deuses, as alheiras. E que
alheiras?!... A minha mãe sempre teve berço farto e as alheiras ao cortar as
tripas, tinham que ter palmo e meio a dois palmos. Mais pequenas pareciam uns
reizinhos para os raparigos e davam uma sensação de pobreza ou pelo menos de
cinto muito apertado, dos que estudavam em Coimbra para Delgado. As alheiras assadas na lareira, na grelha e a respingarem
com as brasas assanhadas pelo Vulcano.
Certo é que, nessa ceia, a
minha mulher se começou a sentir incomodada. Deixou a lareira e vem à mesa
dizer-me: - pára de comer! A tua mãe
ainda vai pensar que eu não te dou de comer!
A minha mãe apercebe-se e
remata: - deixe comer o rapaz, que lhe
está a saber bem
E lá vai mais uma batata,
mais uma colher de couves e um bocado de alheira, para acabar o copo de tinto.
A seguir deixo o banco
corrido e a mesa e instalo-me no escano à lareira com a família. Não havia
lugar no céu ou na terra que me pudesse dar mais felicidade, depois de uma ceia
abençoada, as carícias dos olhares maternos, o aconchego da lareira e o reviver
de memórias e tradições, com: - diziam os
antigos. E as histórias e os contos e outros saberes culturais desfiavam-se
pelo brilhante rosário da memória do «mou» Pai.
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