sábado, 28 de junho de 2014

O escritor e médico vila-realense António Passos Coelho, recebeu justa homenagem na Universidade transmontana.


Vice Reitor da Universidade de Trás-os-Montes
e Alto Douro (UTAD),
Professor Artur Fernando Arede Correia Cristóvão,
na abertura da sessão
O escritor  e médico vila-realense António Passos Coelho, recebeu justa homenagem na Universidade transmontana.

A obra literária do escritor (e médico) transmontano (Vila Real) António Passos Coelho, distribui-se por alguns volumes. Não tantos como se poderia pensar, dada a sua idade (86 anos). É que o Dr. António Passos Coelho dedicou a vida à medicina, apenas nas horas vagas se dedicava à escrita. Mas são os suficientes para neles se vislumbrar o encanto da palavra escrita. Juan Rulfo apenas publicou 300 páginas e não deixou de ser o escritor que foi.
O escritor António Passos Coelho tratou várias vertentes literárias: o conto, o romance e a poesia.
No conto, publicou quatro volumes: Histórias Selvagens, Gente da Minha Terra, Mais Gente da Minha Terra e Eu e a Minha Vila.
Nos três primeiros volumes condensou uma série de contos que retratam a realidade do quotidiano transmontano, e no quarto trás a lume uma síntese biográfica dedicada à cidade de Vila Real.
São histórias (algumas inventadas) da vida real transmontana, onde a descrição ímpar  apalpa os tipos humanos de outras épocas da ruralidade. Nelas desfilam personagens felizes (que nos transportam a Bertrand Russell), homens bons, sensíveis às questões ambientais, possuídos de  amor profundo para com os animais – mas também gente tocada pela tragédia humana (como Falk, o herói de Conrad), com a qual o autor, na defesa dos direitos humanos, zurze nos poderes públicos que desprezam o indivíduo, o homem simples, atencioso e generoso a quem a vida maltratou.
Alguns destes personagens bem poderiam ter surgido em narrativas de Vergilio Ferreira ou de  Ivan Turguénev.
Os contos de António Passos Coelho são de uma simplicidade desconcertante, cobertos de tristezas e amarguras, mas também de ternura; de Amor. De amor para com a pessoa humana; um Amor Universal.
A sua obra poética está condensada num pequeno volume – Material Humano.
Os romances são quatro: Angola Amor Impossível, Zélia, Memórias de Céu e Inferno e Caramulo.
O primeiro trata da sua experiência como médico, colocado em Angola para dirigir a luta contra a Tuberculose no distrito do Bié, sendo ainda nomeado director do Sanatório de Luanda. Uma narrativa onde descreve a terra, as gentes, os conflitos políticos que levaram ao período trágico da descolonização.
O segundo desenvolve um tema que, durante muitos anos foi um flagelo (que ainda se mantém) no país – o aborto. Celeste, uma das personagens centrais, pratica o aborto numa cidade nortenha – Viseu. No desenrolar da narrativa surge Zélia, o ponto nevrálgico do romance. Sob o ponto de vista cientifico, o autor é rigoroso, metódico, esclarecendo com simplicidade o leitor.
O terceiro desenvolve-se em torno do destino do seu protagonista. Entregue ainda de peito, por sua mãe que definhava da doença a uma sua tia, Silvestre passa na pequena aldeia da Peneda, localizada  entre o Marão e o Alvão, uma infância de brutal pobreza. É entregue a um casal de Lamego e, mais tarde, ruma para Chaves, onde toda a narrativa se desenvolve.
Caramulo, o quarto romance, foi agora reeditado pela editora Fronteira do Caos em parceria com a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), numa homenagem prestada ao médico/ escritor, no passado dia 24 de Junho, no auditório Geociências.
Foi-nos dado o privilégio de o apresentarmos, que aceitamos com o maior prazer. O texto que se segue é um extrato do que foi lido perante uma assistência culta, composta por muitos Amigos do Dr. António Passos Coelho.

Caramulo – Crónica Romanceada

Duas lendas da Literatura, trataram temáticas similares àquela que o Dr. António Passos Coelho aborda neste seu belo romance: Thomas Mann ( um dos últimos discípulos de Goethe) que  alerta, pela primeira vez, para esse flagelo europeu que era a tuberculose (tal como o faz o autor de Caramulo em Portugal), e Hermann Hesse em Aquista, para o tratamento de doentes  com águas medicinais. Ambos situam a acção na Suíça. Aquele no sanatório Berghof, em Davos, no remoto mundo dos Alpes suíços e este nas termas de Baden, região designada pelo vulgo por terra dos nabos.
Os grandes autores da modernidade como Musil, Joyce, Proust, ou Virgínia Woolf, afastaram-se do modelo de narrativa linear. Musil, o autor de O Homem sem Qualidades,  dizia mesmo que este esquema narrativo é inadequado para descrever a complexidade do mundo. E acrescentava que a multiplicidade do mundo moderno é tal que se torna impossível representá-lo como uma sucessão de factos ordenados sob um fio condutor.
Deixamos esta questão para os críticos. Para nós ler Proust ou Goethe é igual. Uma questão de gosto. Não deixa de ser menos boa a leitura de um Goethe, se comparada com  a de um Joyce. Mann, autor de um dos mais belos livros do século passado, A Montanha Mágica, seguiu a narrativa linear, introduzindo-lhe uma inovação no final -  não se sabe como termina o fim do herói da narrativa. E António Passos Coelho seguiu-lhe os passos. Deixa em suspense se os dois namorados teriam ou não casado,  mas transformou o Caramulo num romance de uma beleza estética incontestada, e como Goethe, muito mais espontâneo  do que Mann.

A narrativa inicia com um telefonema.
Depois daquele telefonema e de observar da janela do quarto das Trinas, “a vista compacta e pitoresca” de alguns bairros de Lisboa, nessa tarde quente e abafada, Ramiro decidiu “largar para a serra”. Era a época do pós-guerra.
O diálogo posterior entre o personagem central da acção e o Cunha, seu grande Amigo da Faculdade, informa o leitor sobre a doença de Ramiro, sobre o enredo do romance e o seu centro nevrálgico: o Caramulo.
Ramiro reflecte sobre o exame de obstetrícia do dia seguinte. E pede a Cunha que o substitua num encontro que havia marcado com uma rapariga. O exame correu-lhe bem; iria com outra alma para o Caramulo. Deu a notícia ao Cunha e à parteira “de formas roliças e coleantes”, que sempre revelara um bom sentido de humor nos lances difíceis de um parto, como o demonstra o episódio depois descrito.
Segue em viagem para o Caramulo, depois de dado um abraço fraterno e triste ao Cunha. O automóvel conduzido por um médico, ainda se desvia ao Hospital dos Capuchos para recolher outros três colegas que aproveitaram a boleia.
Pararam em Tomar, onde almoçaram. Findo o repasto rumaram a Coimbra em amena cavaqueira sobre a situação politica e social do país, introduzindo história fugaz de certo cirurgião “engatatão”. 
Desceram Coimbra e na passagem por Santa Comba Dão, o tema da conversa foi Oliveira Salazar.  Nada abonatória, embora lhe reconhecessem estatura intelectual e cultural. Ramiro lembrara-se do pai. Simples aldeão transmontano, era admirador incondicional de Afonso Costa e António José de Almeida, políticos da Primeira República, que deu em nada, concretizando-se no fim criminoso da monarquia e cujos governos chegaram a ser “chacota da estranja”.
No centro de Tondela viraram em direcção ao Caramulo. Avistaram a Estância, envolvida por um cenário paisagístico deslumbrante. Chegaram. Ramiro, moído da viagem, observou a tarde fria com uma aragem desconfortável. Entraram no vestíbulo do Grande Sanatório. As honras da casa foram feitas por dois médicos ainda jovens. Observando o contexto com as cores parecidas às encostas do seu pátrio Douro, o gerente do sanatório e o médico, indicaram-lhe o quarto: o oitenta e dois, do Grande Sanatório (o que melhores condições tinha).
Descritos os aposentos do quarto, surge Gracinda, “rosto de lua cheia salpicado de sardas, exuberante de nádegas e seios, trajando vestido azul claro com avental imaculadamente branco, tal como a gola e os punhos” (sic). “Com mão sapudinha”, iniciou diálogo com o doente agora chegado. E com ela, Ramiro tira as primeiras informações sobre o funcionamento do sanatório.
Após esta breve introdução à narrativa, o autor, em 371 páginas  discorre sobre o primeiro ano de estadia no sanatório. Inicia-se pelo som vindo da janela do quarto, na gíria senatorial, através de diálogo vivo entre dois tísicos que usavam termos próprios: os “vivas ao Benfica” e os “Pintassilgos”; é enganado pelos veteranos que lhe pregam uma partida, conhece o Dr. Poispois, como havia sido cognominado pelos doentes porque se repetia sistematicamente; em passeio, presencia o curioso episódio do cágado “Chico”; recebe postal do antigo colega Mota. Cabulão, mas Amigo; torna-se amigo de Amâncio (um pote de cultura) e de Eduardo. Aquele natural da terra de Guerra Junqueiro e este Eduardo, diplomado em Engenharia Civil; conhece o amor da vida, Marta, Martinha para um grupo restrito, “a menina dos olhos insinuantes”, mais tarde, a Bela Amância; aí reencontra amigo de infância, o Isildo Maduro e aí convive com doentes dos diversos tipos sociais, como os da ala baptizada Bairro das Colónias.
São numerosos os episódios marcantes da narrativa: a primeira consulta onde se lembra dos antecedentes familiares, como um tio materno que tinha namoro com a Maria Soqueiro; os momentos onde recorda a tia beata;o curioso episódio do cágado “Chico”;a descrição dos vários tipos de tisicos; a lábia afiada do Julião discorrendo sobre a tísica, rebatido apenas pelo velho Sousa - passagem similar à do italiano da Montanha Mágica; a síntese de quatro páginas sobre a vida de Amâncio e Eduardo; a descrição da aldeia natal e a recordação do amigo de infância, o Paparoca, onde se nota a verdadeira dimensão humana do autor; o percurso de vida do herói; o encontro com Isildo Maduro, onde em seis páginas deliciosas são narrados factos como os da festa de Fonteita com a banda de música a dar “às de vila Diogo”, ou já na fase final da narrativa, quando se despedem (com Ramiro já curado), Isildo lhe conta, numa descrição admirável, que estava de castigo por “ter ido às ventas” a um doente que lhe chamara burro depois deste o ter ajudado após apanhar uma piela; a trapaça utilizada pelos doentes, para poderem ir ao Natal a casa, bem descrita em três páginas; a carraspana apanhada pelo “Passarinho” que trás à lembrança o personagem de Hesse, Klingsor; as reminiscências do caso das lésbicas da faculdade; a conversa entre Ramiro e Flávio, no dia de Natal, onde, num diálogo longo e arrebatador, se narram episódios como o caso da tisica que providenciara a urna, querendo ir para a cova vestida de Santa Filomena, dando azo a reflexões sobre a existência, sobre a fé; o capitulo admirável (cap.XII) da escapadela a Viseu, “às meninas”, na galhofa.

Além de uma narrativa rica e imaginativa onde são traçados muitos dados autobiográficos, este romance é também um retrato da época:
1 - de um país politicamente perverso e de um regime em decadência, onde o cognominado Plano de Purificação, semelhante às purgas estalinistas, injustiçou professores como Vieira da Natividade e privou as universidades de muitas das suas figuras mais prestigiadas: Pulido Valente, Fernando da Fonseca, Marques da Silva, Manuel Valadares, Abel Salazar, Bento de Jesus Caraça.

2 - de um país economicamente pobre. Se A Montanha Mágica é o retrato de uma sociedade burguesa europeia em declínio, ocorrido antes da primeira Guerra Mundial, local onde se reúnem os doentes (hóspedes) endinheirados de toda a Europa, como o engenheiro Hans Castorp, o seu personagem principal, e Aquista lhe segue os passos na descrição dos hóspedes do hotel HeiligenhofCaramulo trata de um país miserável, “de moscas e de ranho”,  como nos diz o autor, com doentes de várias proveniências. Sobretudo com dificuldades económicas. É o caso de Ramiro, o personagem principal, que recebe emprestadas do seu clínico, sete notas de 500 escudos para fazer o depósito de garantia da mensalidade. Dificuldade bem evidenciada ao longo do romance, como é notado dois meses e meio depois da sua chegada. Precisava de roupa nova porque tinha engordado sete quilos, mas não tinha dinheiro. Por essa razão evitava sentar-se junto dos outros para não repararem na carcela smiaberta.
3 -  de um país rural. Não raras vezes, o autor viaja no tempo, à terra da sua infância, descrevendo as dificuldades da sua vida e a miséria das aldeias, num ímpeto idêntico ao de Virgilio Ferreira (Vagão J).
E se resumidamente escalpeliza um regime espúrio, não deixa, ao mesmo tempo, de ser uma homenagem merecida aos benfeitores do Caramulo como o Dr. Jerónimo Lacerda, seu promotor,  o professor Wohl Will, judeu fugitivo que influenciou o método de trabalho do Caramulo, bem descrito em três páginas, e o Dr. Manuel Tápia, um fugitivo do regime franquista que, com a permissão do Doutor Salazar se instalou no Caramulo onde escreveu os quatro volumes do seu tratado de tiologia e que elevou o Caramulo ao prestigio que tinha no país e no estrangeiro.  E um hino à amizade quando se rememoram alguns professores que marcaram o autor, os médicos, enfermeiros, pessoal auxiliar e, sobretudo, os tisicos que o autor em dedicatória lhes envia “para a eternidade a comovida lembrança da vivência comum de alegrias, frustrações, sofrimentos e despedidas”. Um verdadeiro cântico à amizade, num desfile enorme de personagens, onde o autor se comove quando traça os acontecimentos trágicos e emocionais.
É ainda o retrato da vida quotidiana do sanatório. Monótona e onde reina o tédio.  Como na obra de Thomas Mann, resume-se a quatro actividades: comer, conversar, descansar e receber cuidados médicos. No Caramulo adornadas, por vezes, com episódios como a ida a Viseu, às meninas.
Sendo uma realidade completamente diferente da do mundo exterior, um local penoso para quem não sabia se se iria curar, os doentes (principalmente os veteranos) procuravam distracções em coisas corriqueiras, provocando, muitas vezes, a chacota sobre os seus companheiros.
Neste tratado de saúde, sob o ponto de vista cientifico, o autor é rigoroso, metódico.

Rigorosamente estruturado, a beleza estética deste romance é notada na síntese da descrição (como em Borges), na escolha dos tipos diversificados, na narrativa de episódios cómicos ou na emoção sentida pelo autor quando recebe noticias trágicas, ou quando recorda a pobreza por ele vivida na infância. Mas, os méritos estéticos de António Passos Coelho, vislumbram-se, sobretudo, na ironia. São diversas as passagens onde ela está presente. Sobretudo, quando procura a mediania do seu herói em relação a Amâncio, um “pote de cultura”. O mesmo se passa com  Hans Castorp, que escuta fascinado o italiano Settembrini.
É um livro de garra, de luta contra as adversidades, onde as mulheres são uma constante, descritas com abundância de pormenores.
Parafraseando Miguel Esteves Cardoso (Público, 11/06/XIV) acerca de um dos livros (Pietr le Letton) de Georges Simeon, autor dos policiais do Inspector Maigret, diremos o mesmo do autor de Caramulo:”… conseguiu escrever depressa, sem paciência nem peneiras. Como se quisesse, apenas, ser lido”.


Armando Palavras

Comunicação proferida na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (Vila Real), a 24 de Junho, às 18H

Fotografia: Fernando Guimarães

Actualizado a 10 de Junho, 2014


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