Vice Reitor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Professor Artur Fernando Arede Correia Cristóvão, na abertura da sessão |
A obra
literária do escritor (e médico) transmontano (Vila Real) António Passos
Coelho, distribui-se por alguns volumes. Não tantos como se poderia pensar,
dada a sua idade (86 anos). É que o Dr. António Passos Coelho dedicou a vida à
medicina, apenas nas horas vagas se dedicava à escrita. Mas são os suficientes
para neles se vislumbrar o encanto da palavra escrita. Juan Rulfo apenas
publicou 300 páginas e não deixou de ser o escritor que foi.
O
escritor António Passos Coelho tratou várias vertentes literárias: o conto, o
romance e a poesia.
No
conto, publicou quatro volumes: Histórias Selvagens, Gente da Minha
Terra, Mais Gente da Minha Terra e Eu e a Minha Vila.
Nos três
primeiros volumes condensou uma série de contos que retratam a realidade do
quotidiano transmontano, e no quarto trás a lume uma síntese biográfica dedicada
à cidade de Vila Real.
São
histórias (algumas inventadas) da vida real transmontana, onde a descrição
ímpar apalpa os tipos humanos de outras
épocas da ruralidade. Nelas desfilam personagens felizes (que nos transportam a
Bertrand Russell), homens bons, sensíveis às questões ambientais, possuídos
de amor profundo para com os animais –
mas também gente tocada pela tragédia humana (como Falk, o herói de Conrad),
com a qual o autor, na defesa dos direitos humanos, zurze nos poderes públicos
que desprezam o indivíduo, o homem simples, atencioso e generoso a quem a vida
maltratou.
Alguns destes personagens bem
poderiam ter surgido em narrativas de Vergilio Ferreira ou de Ivan Turguénev.
Os contos de António Passos Coelho
são de uma simplicidade desconcertante, cobertos de tristezas e amarguras, mas
também de ternura; de Amor. De amor para com a pessoa humana; um Amor
Universal.
A sua obra poética está condensada
num pequeno volume – Material Humano.
Os romances são quatro: Angola
Amor Impossível, Zélia, Memórias de Céu e Inferno e Caramulo.
O primeiro trata da sua
experiência como médico, colocado em Angola para dirigir a luta contra a
Tuberculose no distrito do Bié, sendo ainda nomeado director do Sanatório de
Luanda. Uma narrativa onde descreve a terra, as gentes, os conflitos políticos
que levaram ao período trágico da descolonização.
O segundo desenvolve um tema que,
durante muitos anos foi um flagelo (que ainda se mantém) no país – o aborto.
Celeste, uma das personagens centrais, pratica o aborto numa cidade nortenha –
Viseu. No desenrolar da narrativa surge Zélia, o ponto nevrálgico do romance.
Sob o ponto de vista cientifico, o autor é rigoroso, metódico, esclarecendo com
simplicidade o leitor.
O terceiro desenvolve-se em torno
do destino do seu protagonista. Entregue ainda de peito, por sua mãe que
definhava da doença a uma sua tia, Silvestre passa na pequena aldeia da Peneda,
localizada entre o Marão e o Alvão, uma
infância de brutal pobreza. É entregue a um casal de Lamego e, mais tarde, ruma
para Chaves, onde toda a narrativa se desenvolve.
Caramulo, o quarto romance,
foi agora reeditado pela editora Fronteira do Caos em parceria com a Universidade
de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), numa homenagem prestada ao médico/
escritor, no passado dia 24 de Junho, no auditório Geociências.
Foi-nos dado o privilégio de o
apresentarmos, que aceitamos com o maior prazer. O texto que se segue é um
extrato do que foi lido perante uma assistência culta, composta por muitos
Amigos do Dr. António Passos Coelho.
2 - de um país economicamente pobre. Se A Montanha Mágica é o retrato de uma sociedade burguesa europeia em declínio, ocorrido antes da primeira Guerra Mundial, local onde se reúnem os doentes (hóspedes) endinheirados de toda a Europa, como o engenheiro Hans Castorp, o seu personagem principal, e Aquista lhe segue os passos na descrição dos hóspedes do hotel Heiligenhof, Caramulo trata de um país miserável, “de moscas e de ranho”, como nos diz o autor, com doentes de várias proveniências. Sobretudo com dificuldades económicas. É o caso de Ramiro, o personagem principal, que recebe emprestadas do seu clínico, sete notas de 500 escudos para fazer o depósito de garantia da mensalidade. Dificuldade bem evidenciada ao longo do romance, como é notado dois meses e meio depois da sua chegada. Precisava de roupa nova porque tinha engordado sete quilos, mas não tinha dinheiro. Por essa razão evitava sentar-se junto dos outros para não repararem na carcela smiaberta.
Caramulo – Crónica Romanceada
Duas lendas da Literatura,
trataram temáticas similares àquela que o Dr. António Passos Coelho aborda
neste seu belo romance: Thomas Mann ( um dos últimos discípulos de Goethe) que alerta, pela primeira vez, para esse flagelo
europeu que era a tuberculose (tal como o faz o autor de Caramulo em
Portugal), e Hermann Hesse em Aquista, para o tratamento de doentes com águas medicinais. Ambos situam a acção na
Suíça. Aquele no sanatório Berghof, em Davos, no remoto mundo dos Alpes suíços
e este nas termas de Baden, região designada pelo vulgo por terra dos nabos.
Os grandes autores da modernidade
como Musil, Joyce, Proust, ou Virgínia Woolf, afastaram-se do modelo de
narrativa linear. Musil, o autor de O Homem sem Qualidades, dizia mesmo que este esquema narrativo é
inadequado para descrever a complexidade do mundo. E acrescentava que a
multiplicidade do mundo moderno é tal que se torna impossível representá-lo
como uma sucessão de factos ordenados sob um fio condutor.
Deixamos
esta questão para os críticos. Para nós ler Proust ou Goethe é igual. Uma
questão de gosto. Não deixa de ser menos boa a leitura de um Goethe, se
comparada com a de um Joyce. Mann, autor
de um dos mais belos livros do século passado, A Montanha Mágica, seguiu
a narrativa linear, introduzindo-lhe uma inovação no final - não se sabe como termina o fim do herói da
narrativa. E António Passos Coelho seguiu-lhe os passos. Deixa em suspense
se os dois namorados teriam ou não casado,
mas transformou o Caramulo num romance de uma beleza estética
incontestada, e como Goethe, muito mais espontâneo do que Mann.
A
narrativa inicia com um telefonema.
Depois daquele telefonema e de
observar da janela do quarto das Trinas,
“a vista compacta e pitoresca” de alguns bairros de Lisboa, nessa tarde quente
e abafada, Ramiro decidiu “largar para a serra”. Era a época do pós-guerra.
O diálogo posterior entre o
personagem central da acção e o Cunha, seu grande Amigo da Faculdade, informa o
leitor sobre a doença de Ramiro, sobre o enredo do romance e o seu centro
nevrálgico: o Caramulo.
Ramiro reflecte sobre o exame de
obstetrícia do dia seguinte. E pede a Cunha que o substitua num encontro que
havia marcado com uma rapariga. O exame correu-lhe bem; iria com outra alma
para o Caramulo. Deu a notícia ao Cunha e à parteira “de formas roliças e
coleantes”, que sempre revelara um bom sentido de humor nos lances difíceis de
um parto, como o demonstra o episódio depois descrito.
Segue em viagem para o Caramulo,
depois de dado um abraço fraterno e triste ao Cunha. O automóvel conduzido por
um médico, ainda se desvia ao Hospital dos Capuchos para recolher outros três
colegas que aproveitaram a boleia.
Pararam em Tomar, onde almoçaram.
Findo o repasto rumaram a Coimbra em amena cavaqueira sobre a situação politica
e social do país, introduzindo história fugaz
de certo cirurgião “engatatão”.
Desceram
Coimbra e na passagem por Santa Comba Dão, o tema da conversa foi Oliveira
Salazar. Nada abonatória, embora lhe
reconhecessem estatura intelectual e cultural. Ramiro lembrara-se do pai.
Simples aldeão transmontano, era admirador incondicional de Afonso Costa e
António José de Almeida, políticos da Primeira República, que deu em nada,
concretizando-se no fim criminoso da monarquia e cujos governos chegaram a ser
“chacota da estranja”.
No centro de Tondela viraram em
direcção ao Caramulo. Avistaram a Estância, envolvida por um cenário
paisagístico deslumbrante. Chegaram. Ramiro, moído da viagem, observou a tarde
fria com uma aragem desconfortável. Entraram no vestíbulo do Grande Sanatório.
As honras da casa foram feitas por dois médicos ainda jovens. Observando o
contexto com as cores parecidas às encostas do seu pátrio Douro, o gerente do
sanatório e o médico, indicaram-lhe o quarto: o oitenta e dois, do Grande
Sanatório (o que melhores condições tinha).
Descritos os aposentos do quarto,
surge Gracinda, “rosto de lua cheia salpicado de sardas, exuberante de nádegas
e seios, trajando vestido azul claro com avental imaculadamente branco, tal
como a gola e os punhos” (sic). “Com mão sapudinha”, iniciou diálogo com o
doente agora chegado. E com ela, Ramiro tira as primeiras informações sobre o
funcionamento do sanatório.
Após
esta breve introdução à narrativa, o autor, em 371 páginas discorre sobre o primeiro ano de estadia no
sanatório. Inicia-se pelo som vindo da janela do quarto, na gíria senatorial,
através de diálogo vivo entre dois tísicos que usavam termos próprios: os
“vivas ao Benfica” e os “Pintassilgos”; é enganado pelos veteranos que lhe
pregam uma partida, conhece o Dr. Poispois,
como havia sido cognominado pelos doentes porque se repetia sistematicamente;
em passeio, presencia o curioso episódio do cágado “Chico”; recebe postal do
antigo colega Mota. Cabulão, mas Amigo; torna-se amigo de Amâncio (um pote de
cultura) e de Eduardo. Aquele natural da terra de Guerra Junqueiro e este Eduardo,
diplomado em Engenharia Civil; conhece o amor da vida, Marta, Martinha para um
grupo restrito, “a menina dos olhos insinuantes”, mais tarde, a Bela Amância;
aí reencontra amigo de infância, o Isildo Maduro e aí convive com doentes dos
diversos tipos sociais, como os da ala baptizada Bairro das Colónias.
São
numerosos os episódios
marcantes da narrativa: a primeira consulta onde se lembra dos antecedentes
familiares, como um tio materno que tinha namoro com a Maria Soqueiro; os
momentos onde recorda a tia beata;o curioso episódio do cágado “Chico”;a
descrição dos vários tipos de tisicos; a lábia afiada do Julião discorrendo
sobre a tísica, rebatido apenas pelo velho Sousa - passagem similar à do
italiano da Montanha Mágica; a síntese de quatro páginas sobre a vida de
Amâncio e Eduardo; a descrição da aldeia natal e a recordação do amigo de
infância, o Paparoca, onde se nota a verdadeira dimensão humana do autor; o
percurso de vida do herói; o encontro com Isildo Maduro, onde em seis páginas
deliciosas são narrados factos como os da festa de Fonteita com a banda de música
a dar “às de vila Diogo”, ou já na fase final da narrativa, quando se despedem
(com Ramiro já curado), Isildo lhe conta, numa descrição admirável, que estava
de castigo por “ter ido às ventas” a um doente que lhe chamara burro depois
deste o ter ajudado após apanhar uma piela; a trapaça utilizada pelos doentes,
para poderem ir ao Natal a casa, bem descrita em três páginas; a carraspana
apanhada pelo “Passarinho” que trás à lembrança o personagem de Hesse,
Klingsor; as reminiscências do caso das lésbicas da faculdade; a conversa entre
Ramiro e Flávio, no dia de Natal, onde, num diálogo longo e arrebatador, se
narram episódios como o caso da tisica que providenciara a urna, querendo ir
para a cova vestida de Santa Filomena, dando azo a reflexões sobre a existência,
sobre a fé; o capitulo admirável (cap.XII) da escapadela a Viseu, “às meninas”,
na galhofa.
Além de uma narrativa rica e
imaginativa onde são traçados muitos dados autobiográficos, este romance é
também um retrato da época:
1 - de um país politicamente
perverso e de um regime em decadência, onde o cognominado Plano de
Purificação, semelhante às purgas estalinistas, injustiçou
professores como Vieira da Natividade e privou as universidades de muitas das
suas figuras mais prestigiadas: Pulido Valente, Fernando
da Fonseca, Marques
da Silva, Manuel Valadares, Abel Salazar, Bento de Jesus Caraça.
2 - de um país economicamente pobre. Se A Montanha Mágica é o retrato de uma sociedade burguesa europeia em declínio, ocorrido antes da primeira Guerra Mundial, local onde se reúnem os doentes (hóspedes) endinheirados de toda a Europa, como o engenheiro Hans Castorp, o seu personagem principal, e Aquista lhe segue os passos na descrição dos hóspedes do hotel Heiligenhof, Caramulo trata de um país miserável, “de moscas e de ranho”, como nos diz o autor, com doentes de várias proveniências. Sobretudo com dificuldades económicas. É o caso de Ramiro, o personagem principal, que recebe emprestadas do seu clínico, sete notas de 500 escudos para fazer o depósito de garantia da mensalidade. Dificuldade bem evidenciada ao longo do romance, como é notado dois meses e meio depois da sua chegada. Precisava de roupa nova porque tinha engordado sete quilos, mas não tinha dinheiro. Por essa razão evitava sentar-se junto dos outros para não repararem na carcela smiaberta.
3 - de um país rural. Não raras vezes, o autor
viaja no tempo, à terra da sua infância, descrevendo as dificuldades da sua
vida e a miséria das aldeias, num ímpeto idêntico ao de Virgilio Ferreira (Vagão
J).
E se
resumidamente escalpeliza um regime espúrio, não deixa, ao mesmo tempo, de ser
uma homenagem merecida aos benfeitores do Caramulo como o Dr. Jerónimo Lacerda,
seu promotor, o professor Wohl Will,
judeu fugitivo que influenciou o método de trabalho do Caramulo, bem descrito
em três páginas, e o Dr. Manuel Tápia, um fugitivo do regime franquista que,
com a permissão do Doutor Salazar se instalou no Caramulo onde escreveu os
quatro volumes do seu tratado de tiologia e que elevou o Caramulo ao prestigio
que tinha no país e no estrangeiro. E um
hino à amizade quando se rememoram alguns professores que marcaram o autor, os
médicos, enfermeiros, pessoal auxiliar e, sobretudo, os tisicos que o autor em
dedicatória lhes envia “para a eternidade a comovida lembrança da vivência
comum de alegrias, frustrações, sofrimentos e despedidas”. Um verdadeiro
cântico à amizade, num desfile
enorme de personagens, onde o autor se comove quando traça os acontecimentos
trágicos e emocionais.
É ainda o retrato da vida quotidiana
do sanatório. Monótona e onde reina o tédio.
Como na obra de Thomas Mann, resume-se a quatro actividades: comer,
conversar, descansar e receber cuidados médicos. No Caramulo adornadas, por
vezes, com episódios como a ida a Viseu, às meninas.
Sendo
uma realidade completamente diferente da do mundo exterior, um local penoso
para quem não sabia se se iria curar, os doentes (principalmente os veteranos)
procuravam distracções em coisas corriqueiras, provocando, muitas vezes, a
chacota sobre os seus companheiros.
Neste
tratado de saúde, sob o ponto de vista cientifico, o autor é rigoroso,
metódico.
Rigorosamente
estruturado, a beleza estética deste romance é notada na síntese da descrição
(como em Borges), na escolha dos tipos diversificados, na narrativa de
episódios cómicos ou na emoção sentida pelo autor quando recebe noticias
trágicas, ou quando recorda a pobreza por ele vivida na infância. Mas, os
méritos estéticos de António Passos Coelho, vislumbram-se, sobretudo, na
ironia. São diversas as passagens onde ela está presente. Sobretudo, quando
procura a mediania do seu herói em relação a Amâncio, um “pote de cultura”. O
mesmo se passa com Hans Castorp, que
escuta fascinado o italiano Settembrini.
É um
livro de garra, de luta contra as adversidades, onde as mulheres são uma
constante, descritas com abundância de pormenores.
Parafraseando
Miguel Esteves Cardoso (Público, 11/06/XIV) acerca de um dos livros (Pietr
le Letton) de Georges Simeon, autor dos policiais do Inspector Maigret, diremos
o mesmo do autor de Caramulo:”… conseguiu escrever depressa, sem
paciência nem peneiras. Como se quisesse, apenas, ser lido”.
Armando
Palavras
Comunicação proferida na Universidade de Trás-os-Montes
e Alto Douro (Vila Real), a 24 de Junho, às 18H
Fotografia: Fernando Guimarães
Actualizado a 10 de Junho, 2014
Actualizado a 10 de Junho, 2014
Sem comentários:
Enviar um comentário