Porque razão esta mulher que fez
História no antigo mundo da União das Republicas Socialistas Soviéticas (URSS), continua cativa?
Se o sr. Ianukovitch tivesse um
pingo de vergonha, e tivesse sido educado numa cultura democrática, evitava
todo esse teatro em volta de Yulia Timochenko, propondo a sua libertação.
O processo de Yulia é um processo
à maneira estalinista/Leninista. Em nada se assemelha com a justiça, em nada se
assemelha com um tratamento de dignidade da pessoa humana.
Vassili Grossman foi um dos
maiores retratistas da realidade estalinista e Leninista. A sua obra-prima (Vida e Destino) é um hino dedicado ao
sofrimento humano. Mas não o é menos a nossa favorita: Tudo Passa, agora em edição portuguesa da Dom Quixote. Nela é
tratado o tema dos Gulags, como magistralmente o fez Alexander Solijenitsine em
duas obras portentosas: No aclamado romance, Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, publicado no Ocidente em várias
línguas (1962-63) e no Arquipélago de
Gulag, igualmente publicado em diversas línguas (1973), que provocou uma
pequena revolução em certos países ocidentais, particularmente na França,
convertendo grandes sectores da Esquerda, à época, a uma posição
anti-soviética. Com a devida excepção de Sartre, que continuou a apoiar
Estaline, mesmo depois do Ocidente saber que havia praticado crimes mais
horrendos do que Hitler (o caso da fome genocidária da Ucrânia).
Grosssman, neste romance, traça
toda a tragédia da antiga União Soviética, enquanto coutado de Estaline e de Lenine, bem como dos socialistas e comunistas que os seguiram.
A dado passo, logo a iniciar o
capítulo 16, o autor de Tudo passa,
referindo-se ao personagem do romance e ao sistema de “justiça” implantado na
antiga geografia soviética, diz-nos: “ no trabalho, Ivan Grigórievitch ouviu
histórias de subornos no tribunal municipal, ouviu que na escola de
radiotécnica era possível comprar avaliações durante os exames de concurso (…)
que o gerente do moinho, com dinheiro roubado, construíra uma casa de dois
pisos (…), que o chefe da policia pusera em liberdade um famoso vigarista
joalheiro, exigindo aos seus parentes o verosímil suborno de seiscentos rublos,
ouviu que o próprio pai e patrão da cidade – o primeiro secretário do comité
distrital do partido – podia, por uma concussão, dar ordem ao presidente do
soviete urbano para conceder a tal e tal pessoa um apartamento num prédio novo,
na rua principal” (p. 157 da edição portuguesa da Dom Quixote).
E o actual presidente da Ucrânia,
o sr. Ianukovitch, não deixa de ser um estalinista/leninista convicto. Porque
se não fosse, tinha memória. E a memória avivar-lhe-ia o sofrimento ucraniano
na fome genocidária de 1932-33. Assunto já abordado neste espaço, mas ao qual
voltamos.
A fome - genocídio ucraniana de 1932-1933
A fome- genocídio ucraniana de 1932-1933, inserida nas Politicas genocidárias na Rússia Soviética, fosse no tempo de Lenine, ou no tempo de Estaline, hoje estão bem estudadas e aprofundadas.
Quando Boris Pasternak foi convidado
a instalar-se no campo (à semelhança de outros escritores), a propósito de se
documentar sobre a nova vida das aldeias colectivizadas, ficou tão perturbado
com o que os seus olhos observaram que, durante um ano não conseguiu escrever.
Fundamentalmente com aquilo que lhe era dado a observar sobre a Ucrânia. Um
espectáculo indizível.
Após o desastre demográfico e
social ocasionado por uma fome de características sem precedentes que culminou
na Primavera de 1933, o quadro apresentava-se como um “triste deserto” nas
palavras de Malcom Muggeridge, correspondente do Manchester Guardian. Dos
campos baldios, às aldeias abandonadas e à enormidade de mortos pelas ruas, a
Ucrânia apresentava-se como um local tenebroso.
A fome genocidária da Ucrânia
sustentada numa repressão de sessenta anos e de negação é hoje, felizmente,
tema de várias investigações históricas sistemáticas. Entre os números
apontados pelos historiadores russos e os historiadores americanos, estima-se
que cerca de seis milhões de ucranianos tenham padecido. 1/4 da população. O
que transforma a violência totalitária estalinista, em violência genocidária.
Em números mais elevados que o genocídio nazista.
A grande fome da Ucrânia
sucede-se à acção politica de deskulakização (cerca de 200 mil quintas “deskulakizadas”,
250 mil pessoas executadas e um milhão de deportados). Os camponeses deixaram
de ser donos daquilo que cultivavam. Tudo era pertença do Estado. E o estado
estalinista exigia quotas elevadas. Esta mortandade foi ideológica. Quem queria
comer praticava um crime contra o Estado. O terror reinou nos campos da
Ucrânia.
Embora alertado sobre a situação
dramática dos camponeses ucranianos por Térékhov, o secretário do comité
central ucraniano, Estaline promulga a sete de Agosto de 1932 a fomosa “lei das
espigas”, que prevê a pena capital para todo e qualquer atentado contra a
“propriedade do Estado”. Ou seja, para qualquer camponês esfomeado que tivesse
o arrojo de colher algum trigo não ceifado, mesmo por ele cultivado. E no dia
22 de Agosto, um decreto proibia que os camponeses comprassem pão. Em Dezembro
é instituído o passaporte interno (apenas concedido aos cidadãos!) fazendo do
campesino ucraniano um bandido em potência. Postychev
é incumbido de impor as determinações terroristas de Estaline aos comunistas
locais, já horrorizados com a matança em massa dos seus compatriotas.
Os testemunhos afloram agora à
superfície, incluindo os casos de canibalismo. Em 1930, A Terra, o filme de Dovjenko, considerado
um dos filmes mais belos do mundo, trata do tema da colectivação e mecanização
dos campos.
O cônsul italiano de Carcove
deixou num relatório de Maio de 1933 uma descrição arrepiante sobre as
evacuações de crianças encerradas até à morte em vagões, barracões ou recintos
fechados. A vontade manifesta de destruir os ucranianos é atestada por Robert
Conquest, ao notar a intenção deliberada de privar as pessoas de alimentos. A
partir de 1933, a Federação Europeia dos Ucranianos no Estrangeiro publicou em Bruxelas A Fome na
Ucrânia – os seus horrores, as suas causas e os seus efeitos. Dois anos
mais tarde, Eward Ammende, publicou Vida
humana na Rússia. Em 1934 W.H.Chamberlin publicou Rússia’s Iron Age e em 1937 saiu a público Assignment in Utopia, de Eugene Lyons.
Mas depressa estas vozes foram
abafadas pela propaganda soviética, à qual era dado crédito por muitos
intelectuais ocidentais.
Esta fome genocidária continua a
ser mal conhecida do público ocidental, embora o esforço empreendido pela
diáspora ucraniana não tenha mãos a medir na sua denúncia.
Se a leitura dos livros de
história ou os de testemunhos se tornam, muitas vezes, aborrecidos, revirem-se
as folhas de literatura. É pois, neste caso, aconselhável a leitura do romance
de Vassili Grossman, recentemente editado em Portugal: Tudo Passa. Através de
uma das suas personagens, um activista convicto, o romancista russo evoca o
processo de colectivização na Ucrânia. Em determinada passagem do terrível
romance de Grossman, está bem patente a forma como o ódio foi alimentado nas
fileiras dos activistas, esses homens vulgares seguidores da tendência
leninista/estalinista para considerarem os seus irmãos como “insectos nocivos”
e “parasitas”.
Armando Palavras
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