sábado, 7 de dezembro de 2013

Porque razão Yulia Timochenko continua cativa?



Porque razão esta mulher que fez História no antigo mundo da União das Republicas Socialistas Soviéticas (URSS), continua cativa?
Se o sr. Ianukovitch tivesse um pingo de vergonha, e tivesse sido educado numa cultura democrática, evitava todo esse teatro em volta de Yulia Timochenko, propondo a sua libertação.
O processo de Yulia é um processo à maneira estalinista/Leninista. Em nada se assemelha com a justiça, em nada se assemelha com um tratamento de dignidade da pessoa humana.
Vassili Grossman foi um dos maiores retratistas da realidade estalinista e Leninista. A sua obra-prima (Vida e Destino) é um hino dedicado ao sofrimento humano. Mas não o é menos a nossa favorita: Tudo Passa, agora em edição portuguesa da Dom Quixote. Nela é tratado o tema dos Gulags, como magistralmente o fez Alexander Solijenitsine em duas obras portentosas: No aclamado romance, Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, publicado no Ocidente em várias línguas (1962-63) e no Arquipélago de Gulag, igualmente publicado em diversas línguas (1973), que provocou uma pequena revolução em certos países ocidentais, particularmente na França, convertendo grandes sectores da Esquerda, à época, a uma posição anti-soviética. Com a devida excepção de Sartre, que continuou a apoiar Estaline, mesmo depois do Ocidente saber que havia praticado crimes mais horrendos do que Hitler (o caso da fome genocidária da Ucrânia).
Grosssman, neste romance, traça toda a tragédia da antiga União Soviética, enquanto coutado de Estaline e de Lenine, bem como dos socialistas e comunistas que os seguiram.
A dado passo, logo a iniciar o capítulo 16, o autor de Tudo passa, referindo-se ao personagem do romance e ao sistema de “justiça” implantado na antiga geografia soviética, diz-nos: “ no trabalho, Ivan Grigórievitch ouviu histórias de subornos no tribunal municipal, ouviu que na escola de radiotécnica era possível comprar avaliações durante os exames de concurso (…) que o gerente do moinho, com dinheiro roubado, construíra uma casa de dois pisos (…), que o chefe da policia pusera em liberdade um famoso vigarista joalheiro, exigindo aos seus parentes o verosímil suborno de seiscentos rublos, ouviu que o próprio pai e patrão da cidade – o primeiro secretário do comité distrital do partido – podia, por uma concussão, dar ordem ao presidente do soviete urbano para conceder a tal e tal pessoa um apartamento num prédio novo, na rua principal” (p. 157 da edição portuguesa da Dom Quixote).
E o actual presidente da Ucrânia, o sr. Ianukovitch, não deixa de ser um estalinista/leninista convicto. Porque se não fosse, tinha memória. E a memória avivar-lhe-ia o sofrimento ucraniano na fome genocidária de 1932-33. Assunto já abordado neste espaço, mas ao qual voltamos.

A fome - genocídio ucraniana de 1932-1933


 A fome- genocídio ucraniana de 1932-1933, inserida nas Politicas genocidárias na Rússia Soviética, fosse no tempo de Lenine, ou no tempo de Estaline, hoje estão bem estudadas e aprofundadas.
Quando Boris Pasternak foi convidado a instalar-se no campo (à semelhança de outros escritores), a propósito de se documentar sobre a nova vida das aldeias colectivizadas, ficou tão perturbado com o que os seus olhos observaram que, durante um ano não conseguiu escrever. Fundamentalmente com aquilo que lhe era dado a observar sobre a Ucrânia. Um espectáculo indizível.
Após o desastre demográfico e social ocasionado por uma fome de características sem precedentes que culminou na Primavera de 1933, o quadro apresentava-se como um “triste deserto” nas palavras de Malcom Muggeridge, correspondente do Manchester Guardian. Dos campos baldios, às aldeias abandonadas e à enormidade de mortos pelas ruas, a Ucrânia apresentava-se como um local tenebroso.
A fome genocidária da Ucrânia sustentada numa repressão de sessenta anos e de negação é hoje, felizmente, tema de várias investigações históricas sistemáticas. Entre os números apontados pelos historiadores russos e os historiadores americanos, estima-se que cerca de seis milhões de ucranianos tenham padecido. 1/4 da população. O que transforma a violência totalitária estalinista, em violência genocidária. Em números mais elevados que o genocídio nazista.
A grande fome da Ucrânia sucede-se à acção politica de deskulakização (cerca de 200 mil quintas “deskulakizadas”, 250 mil pessoas executadas e um milhão de deportados). Os camponeses deixaram de ser donos daquilo que cultivavam. Tudo era pertença do Estado. E o estado estalinista exigia quotas elevadas. Esta mortandade foi ideológica. Quem queria comer praticava um crime contra o Estado. O terror reinou nos campos da Ucrânia.
Embora alertado sobre a situação dramática dos camponeses ucranianos por Térékhov, o secretário do comité central ucraniano, Estaline promulga a sete de Agosto de 1932 a fomosa “lei das espigas”, que prevê a pena capital para todo e qualquer atentado contra a “propriedade do Estado”. Ou seja, para qualquer camponês esfomeado que tivesse o arrojo de colher algum trigo não ceifado, mesmo por ele cultivado. E no dia 22 de Agosto, um decreto proibia que os camponeses comprassem pão. Em Dezembro é instituído o passaporte interno (apenas concedido aos cidadãos!) fazendo do campesino ucraniano um bandido em potência. Postychev é incumbido de impor as determinações terroristas de Estaline aos comunistas locais, já horrorizados com a matança em massa dos seus compatriotas.
Os testemunhos afloram agora à superfície, incluindo os casos de canibalismo. Em 1930, A Terra, o filme de Dovjenko, considerado um dos filmes mais belos do mundo, trata do tema da colectivação e mecanização dos campos.
O cônsul italiano de Carcove deixou num relatório de Maio de 1933 uma descrição arrepiante sobre as evacuações de crianças encerradas até à morte em vagões, barracões ou recintos fechados. A vontade manifesta de destruir os ucranianos é atestada por Robert Conquest, ao notar a intenção deliberada de privar as pessoas de alimentos. A partir de 1933, a Federação Europeia dos Ucranianos no Estrangeiro publicou em Bruxelas A Fome na Ucrânia – os seus horrores, as suas causas e os seus efeitos. Dois anos mais tarde, Eward Ammende, publicou Vida humana na Rússia. Em 1934 W.H.Chamberlin publicou Rússia’s Iron Age e em 1937 saiu a público Assignment in Utopia, de Eugene Lyons.
Mas depressa estas vozes foram abafadas pela propaganda soviética, à qual era dado crédito por muitos intelectuais ocidentais.
Esta fome genocidária continua a ser mal conhecida do público ocidental, embora o esforço empreendido pela diáspora ucraniana não tenha mãos a medir na sua denúncia.
Se a leitura dos livros de história ou os de testemunhos se tornam, muitas vezes, aborrecidos, revirem-se as folhas de literatura. É pois, neste caso, aconselhável a leitura do romance de Vassili Grossman, recentemente editado em Portugal: Tudo Passa. Através de uma das suas personagens, um activista convicto, o romancista russo evoca o processo de colectivização na Ucrânia. Em determinada passagem do terrível romance de Grossman, está bem patente a forma como o ódio foi alimentado nas fileiras dos activistas, esses homens vulgares seguidores da tendência leninista/estalinista para considerarem os seus irmãos como “insectos nocivos” e “parasitas”.

Armando Palavras

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