quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

O Culto dos Santos


Ierónimus Bosch (Santo Antão)
O culto dos santos nasceu junto dos túmulos dos mártires. No dia do aniversário daqueles que haviam dado testemunho de Jesus Cristo ressuscitado. Era aí que os fiéis se reuniam para celebrar o sacrifício eucarístico e invocar a protecção do mártir. O culto dos santos teve assim, inicio na antiguidade cristã. Em Roma depressa foi adoptado o modelo que existia, ao nível da sociedade civil, das relações entre os fiéis e os mártires. Uma relação de clientes e patrono [patronus] (1).
Com efeito, este costume ou prática, refuta um tanto a ideia propagada pelos reformadores protestantes e pelos historiadores das religiões. De facto, os santos do Cristianismo não são os sucessores de divindades do paganismo remoto (2). Sendo, porém, verdade que na religião cristã, dogmaticamente monoteísta, aos poucos se introduziu uma certa dose de politeísmo (3). Bem evidente, por exemplo, na Igreja Lusitana (4).

Os túmulos dos mártires, enquanto locais de reunião, passaram, mais tarde, a ser substituídos pelos túmulos dos ascetas e dos bispos. É disso exemplo a veneração prestada a Félix, um padre-santo de Nole, morto em 250. O mesmo sucedendo com o túmulo de São Martinho de Tours (316-397). Ambos bastante venerados, cujo culto foi muito difundido.

O testemunho do primeiro mártir cristão, Santo Estêvão, ficou relatado em “Actos dos Apóstolos” (VI, 1-15; VII, 1-60). Uma das primeiras narrativas hagiográficas, a Epistola que a Igreja de Esmirna enviou às outras Igrejas em 156 para dar a conhecer a paixão do seu bispo Policarpo, aquele que havia conhecido na juventude o apóstolo João, constitui uma primeira forma de canonização, por ter dado origem ao culto imediato desse santo. O mesmo sucederia com a Epistola enviada pelos cristãos de Lião e Viena em 177 aos seus irmãos da Ásia para os informar do martírio de Potínio, o velho bispo de Lião, da jovem Blandina e seus companheiros (5).
Com estas epistolas, as igrejas locais conservavam assim, a memória dos seus arautos da fé, tornando-se habitual, deste modo, estabelecer uma lista local desses arautos, frequentemente comunicada às restantes igrejas. São estas listas que estão na base de um certo tipo de compilações, normalmente acompanhadas de dipticos episcopais, às quais, a partir de Beda, o venerável (673-735), se dá o nome de martirológios (6).
Da mesma forma que estes martiriológios, copiados e completados abundantemente na época medieval, os calendários locais, escritos por norma imediatamente a seguir à morte dos mártires e dos santos, são os testemunhos de confiança mais evidente e mais conhecidos do culto dos santos. À imagem do que sucedeu com os menológios das igrejas do Oriente.
É pois a partir do século IV, no Oriente, que a propagação do culto dos santos cristãos se começa a difundir. “A epopeia do deserto” irá, em pouco tempo, legar obras das mais importantes que fundarão os grandes temas da hagiografia e da espiritualidade do deserto. A mais importante é a “Vida de Santo Antão”, do grego Atanásio, bispo de Alexandria (c.360). São Jerónimo, contesta por volta de 374-79, o primado de Antão, redigindo no deserto de Cálcis, na Síria, a “Vida de Paulo de Tebas”. Estes temas são recuperados, multiplicados e embelezados por João Cassiano nas “Conversas com os Padres do Egipto”, em princípios do século V. Estes episódios muito divulgados inauguraram, no Ocidente, o género literário que são as vidas de santos, como por exemplo a vita de Martini, escrita por Suplicio Severo em 397. Irão multiplicar-se espantosamente a partir de então e durante toda a Idade Média. E irão contribuir para a difusão do eremitismo ocidental e do numeroso séquito de santos medievais que, no início, se isolaram nas ilhas do norte. “O itinerário de Columbano”, o mais célebre monge irlandês é exemplar. Assim como “a história e a lenda de Ronan”, outro santo irlandês. Mais tarde este isolamento passa para a floresta. Surgem então hagiografias como a “Vida de são Bernardo de Tiron”, escrito por Geofroy (século XII) –(7).
Em geral, os seus redactores eram anónimos e procuravam satisfazer a sede popular de maravilhoso, embelezando as vidas dos santos, transformando-as em lendas autênticas, chegando mesmo a forjar vidas imaginárias. É com a “Lenda Dourada” (8), segundo Hippolyte Delehaye, que entre 1261-1266 se “resume rigorosamente a obra hagiográfica da Idade Média”.

 Armando Palavras

Perguntam-nos da razão deste escrito. É simples. Amanhã, 17 de Janeiro, é dia de Santo Antão.

Notas:
[1] No inicio da era republicana, o cliente, um homem livre mas pobre, colocava-se a serviço de um patrono poderoso, de quem recebia protecção em troca dos serviços prestados. Esta relação civil espiritualizou-se à medida que o Cristianismo se difundiu, tornando-se a relação-tipo entre o fiel e o mártir e, posteriormente, o bispo.
2 HORVAT, Frank; PASTOUREAU, Michel, Figures Romanes, Éditions du Seuil, 2001 p. 143.  
3 Cf. VAUCHEZ, André, A Espiritualidade da Idade Média Ocidental, Séculos VIII-XIII, Editorial Estampa, Lisboa, 1995, Pp. 28-29.
4 Cf. GOMES, Pinharanda, Patrologia Lusitana, pp. 112-113. A propósito das fontes hagiográficas, sobretudo sobre a hagiografia hispânica, cf. HUFSTOT, Maria da Luz de G. Velloso da Costa, As Origens do Cristianismo na Lusitânia, Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2008, pp.25-33.
5 No século III, as perseguições que se abateram sobre as comunidades cristãs vão originar uma nova onda de lenda hagiográfica. A tal propósito Cf. GOMES, Pinharanda, op. cit. p. 106.
6 O primeiro martiriológio conhecido é siríaco e data de 411. Porém, o mais antigo em latim é o Martiriológio Hieronimita, indevidamente atribuído a São Jerónimo. Foi composto na Itália do norte, em meados do século V.
7 GOFF, Jacques Le, O Imaginário Medieval, Editorial estampa, Lisboa, 1994, pp. 83-91.
8 A propósito dos santos e da Lenda Dourada, cf. MÂLE, Emile, L’Art Religieux du XIII siécle en France, Armand Colin, Paris, 1986, pp. 265-309.

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