terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Crónicas de África - Manuela Criner


Fotografia de Nock Brandt



Manuela Criner
  Tal como prometi, hoje é uma estória de caça, do mato, de África...como quiserem, talvez a estória de uma menina que queria conhecer o mundo.

 A vida é feita de alegria e tristeza, de tudo e de nada. E nós vamos passando pelo tempo, porque o tempo está demasiado ocupado para passar por nós. Também o passado e o futuro, dizem, só existe nas nossas mentes, só o presente é válido. (Na minha mente, o passado passou por mim e não foi nada meigo). Digamos que o presente é uma síntese do que fomos e do que seremos.
 Elefantes com as orelhas a abanar, muito incomodados e incomodando-nos, sobretudo quando tinham filhotes; búfalos em manada ou um ou outro solitário, muitíssimo perigoso, pois os solitários eram antigos chefes de manada que perdiam a luta com um búfalo jovem e aguerrido, sendo expulso da manada; javalis com os filhotes, rabos no ar, em fila indiana; zebras e pala palas, que, geralmente andavam sempre juntas; bois cavalos ou gnus, uma mistura muito esquisita e gondongas; leões que rugiam de maneira diferente, se tivessem ou não a barriguinha cheia; leopardos que só se avistavam de noite e cujos olhos pareciam holofotes; leões da savana, mais pequenos que os outros e que dormiam em árvores, vivendo em bandos; macacos,  macaquinhos e macacões e tantos, tantos outros, conheci quase toda a fauna de Moçambique. Não me falem em hienas e mabecos que cheiram tão mal...
Manuela Criner à época em que relata o acontecimento
Pois há muitos anos, teria eu vinte e poucos, mais ou menos, depois de passar os tais "mares nunca dantes navegados e vivendo eu na linda cidade da Beira --linda depois, porque nessa altura espaço é o que ela tinha, largas avenidas de areia e casas de madeira e zinco e muitos pântanos cheios de mosquitos -- pois a linda Cidade do Príncipe da Beira, com os restos do antigo forte de Aruângua, onde eu vivi com a minha família, além do famoso e mal cheiroso Chiveve (devia ser um braço de mar, mas era só lixo, por isso o seu cheiro e quando a maré subia, pior um pouco) comecei logo por ir à caça. Além do cinema e praia, também não havia muito para onde ir. Para ver caça e o caçador (Tonico Trindade) que só caçava o essencial e não matava só para matar, conseguia ir descobrir os animais mais exóticos para eu ver...cheguei a ver um papa formigas e só dessa vez em todos aqueles anos.


 Hoje conto-vos a minha primeira ida ao mato.
 Fomos num velho camião de dez toneladas e geralmente íamos à sexta-feira e outros iam ao nosso encontro aos sábados, depois do almoço ou de manhã. Dormíamos numa qualquer povoação, onde éramos sempre recebidos de braços abertos. Como presente o Tonico levava sempre um saco de sal e dois sacos de farinha de milho, além de caça que, depois da caçada, lá ia deixar. Bem, quem dormiam eram os outros, porque eu era o "guarda-nocturno" com os mosquitos à minha volta. Dormia depois da viagem e, às vezes, na viagem. Os outros embrulhavam-se em mantas ou ficavam à volta da fogueira. Porque no alto da serra, de madrugava, gelava.
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(Fotografia de Nock Brandt)
 A estória, vista agora tantos anos depois e doutro Continente, numa cidade, parece simples, mas naquela altura, juro que não era.


 Era jovem, queria ver tudo bem e eis que ia atrás dos caçadores de mãos a abanar, pois era incapaz de pegar numa arma e longe de mim fazer mal aos bichos.
 Passado algum tempo senti metade da cabeça, do lado esquerdo e metade do rosto, exactamente metade, como se tivesse passado um risco, absolutamente dormente, paralisado. Fora uma mosca de búfalo que me picara na cabeça, certamente num nervo. Eu sentira a picada, mas sabia lá que fazia aquele efeito! Enxotei-a, cocei, não me lembro se a desinfectei, creio que não, e pronto.

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(Fotografia de Nock Brandt)
 Fiquei de facto aflita porque aquela paralisia facial e "cabeçuda", demorou cerca de quatro horas a passar. Mas antes...estivera no meio de seis manadas de búfalos. Foi assustador, por isso é que havia aquela "população" de moscas. São grandes, cerca de um centímetro, vermelhas e finas.
Santa ignorância!
 Às tantas o Tonico deu um tiro na perna de um búfalo, que deu meia volta, pronto a atacar. Só tive tempo de pôr a primeira pessoa à minha frente, que foi o meu marido -- como se valesse de muito ! E perguntar muito aflita: e agora? Agora o bicho morreu logo a seguir com um tiro certeiro entre os olhos, dobrou os joelhos e caíu a poucos metros à minha frente. Que grande susto!
 Disse o Tonico que agora sabia o que era estar em África no meio dos bichos. Pois...pois, nunca mais esqueci, mas a aventura do dia não acaba aqui.
 No regresso, uma bicicleta estava encostada a uma árvore, em pleno mato cheio daqueles bicharocos tão pouco amigáveis, e um homem, lá em cima, gritava a bom gritar:-" Patrão, estou aqui, patrão! Elefante queria matar a mim!"-
 Como ele subiu aquela árvore enorme, não sei e custou a descer. Ele e a bicicleta subiram para o camião e lá fomos todos para a Beira. Mas digo-vos que a marca das patas do elefante estava bem nítida e o excremento ainda estava quente.
 O homem teve muita sorte, nasceu nesse dia, porque sozinho seria difícil descer, trabalhava na firma onde o Tonico era chefe e o elefante devia estar não muito longe, esperando-o.

1 comentário:

  1. Cara Manuela,
    foi com enorme comoção que a descobri ao fim de tantos anos.
    Sou Vasco, filho da Maria Rosa Colaço e do Malaquias de Lemos.
    Gostava muito de a rever e saber de todos vós (que vos guardo em memória e muita ternura).
    Se ler esta mensagem, por favor, ligue: 917596927.
    Um grande beijo,
    Vasco Malaquias de Lemos

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