Virgilio Gomes |
Os “Pitos de Santa Luzia” devem comer-se no dia 13 de
dezembro, data das celebrações daquela santa. E, por isso vou escrever, hoje,
sobre os famosos “Pitos” de Vila Real, mais concretamente da aldeia de Vila
Nova, e suas tradições. A maioria das pessoas assume os “pitos” como integrados
na doçaria conventual, e outros atribuem-lhes um carater de doce popular, até
mesmo rural. Já encontrei “pitos” noutras localidades e mesmo uns “Pitos de
Santa Maria”, possivelmente adaptações recentes dos primitivos. Escrevo esta
crónica de Fortaleza, Brasil.
Vejamos primeiro as razões da devoção a Santa Luzia,
menina nascida em Siracusa (283? – 304), filha de uma família nobre e abastada.
Seu pai morre cedo e foi educada pela mãe nos princípios da igreja católica,
muito perseguida, ainda, naquele tempo. Quando sua mãe foi acometida por doença
grave, fez uma viagem col ela a Catânia, onde se venerava a Mártir Águeda, para
pedir a sua intercessão. Durante o sono Santa Luzia teve uma visão de Santa
Águeda que a informou que sua mãe se encontrava curada por força da sua fé. De
regresso a casa Santa Luzia pede a sua mãe que não a obrige a casar e que se
iria manter virgem, e dedicar à vida da Igreja Católica. Por vingança, o jovem
a que estava prometida em casamento, decide denunciá-la às autoridades por ter
faltado à palavra para o casamento, e por ser cristã. Receosa por esta
denúncia, e possíveis consequências, Santa Luzia decide distribuir a sua
riqueza pelos pobres. Era Imperador de Roma Diocleciano. Foi levada a tribunal
e confessou a sua fé. A primeira sentença remete-a para um prostíbulo para
garantir a perca da sua virgindade. Certo é que tal não aconteceu porque forças
extraordinárias impediam que ela se movesse. De volta à prisão são-lhe
retirados os olhos com punhais. Para espanto de todos, no dia seguinte, os
olhos estavam no seu local no corpo de Santa Luzia. O governador, furioso,
ordena que ela fosse regada com resinas inflamáveis e lhe ateassem fogo. Quando
as chamas desapareceram, o seu corpo encontrava-se sem qualquer queimadura. A
fúria contra ela continuou e, num golpe final, é-lhe cortado o pescoço e desfalece.
Há várias versões sobre estes episódios. Mas o que mais parece ter
impressionado naquela época, é o terem-lhe extraído os olhos. Por isso, na
iconografia de Santa Luzia, esta surge sempre numa das mãos com um prato ou uma
almofada com os dois olhos. Na outra mão habitualmente uma palma. Assim Santa
Luzia transformou-se na protetora dos olhos, da visão, e das suas doenças. Os
seus restos mortais, relíquias, estiveram em Siracusa, foram para
Constantinopla e fixaram-se em Veneza onde ainda hoje se podem venerar. O
Cardeal Angelo Giuseppe Roncalli, depois Papa João XXI, tendo sido Cardeal e
Patriarca de Veneza, tinha por hábito recolher-se junto destas relíquias.
Ainda me lembro de, criança, ir dia 13 de dezembro até à
Igreja do Convento de São Francisco, em Bragança, onde havia um altar dedicado
a Santa Luzia e cumpríamos o ritual de tocar com a toalha, do altar, nos nossos
olhos, e pedir a respetiva proteção. Mesmo porque tive como professora primária
a Dona Aninhas Castro, irmã do ilustre e erudito Monsenhor José de Castro, de
que continuo a ler a obra literária.
Quis o destino que uma moça de nome Maria Ermelinda
Correia, século XIX?, natural de Vila Nova, fosse trabalhar para o Convento de
Santa Clara, em Vila Real de Trás-os-Montes. Acabaria por tomar o hábito
daquela Casa depois de um noviciado atribulado a servir entre a cozinha e o
atendimento a doentes que se acolhiam na área hospitalar do convento. Maria
Ermelinda tinha um prazer, pecado, assumido que era a sua gulodice. O convento
seria uma forma disciplinar de expiar esse prazer não aceite para quem iria
assumir uma dedicação monástica. Conhecido que era essa vontade devoradora por
doces, rapidamente foi proibida desse consumo e passou a ser vigiada, mesmo
trabalhando na cozinha onde os produtos pareciam facilitadores. Habituada que
estava já à vida do convento, começou a dedicar devoção a Santa Luzia, “orago
dos cegos e padroeira das coisas da vista”, segundo Juvenal Cardápio. Nunca se
soube da verdadeira razão da devoção a Santa Luzia. Ou pelo facto da Madre
Abadessa sofrer de visão ou se por essa razão se ter lembrado da inspiração
para a criação dos famosos “pitos” batizados de Santa Luzia.
Consta que Maria Ermelinda, e possivelmente inspirada no
famoso Milagre das Rosas, invocando Santa Luzia se lembrou de preparar os ditos
doces associados a curas ou tratamentos para os olhos, habitualmente umas
compressas com papas de linhaça. Estas compressas consistiam num quadrado de
panos cru e no centro colocavam-se papas de linhaça. Para que este creme não
verte-se dobravam-se as pontas de forma a obter um quadrado mais pequeno.
Então, com esta inspiração vai rapidamente para a cozinha, sendo certo que
tinha acesso a poucas mercadorias e não poderia dar nas vistas. Assim começa
por preparar uma massa com farinha e água, bem amassada. Depois de estendida,
corta em quadrados. De
seguida prepara, num tacho, uma compota de abóbora coma aparas desta que tinha
sobrado da cozinha e com apenas a sua ração de açúcar. Deixa reduzir e fica um
creme espesso. Sobre os quadrados de massa coloca um pouco do doce e dobra as
pontas exatamente como faria às compressas. O pana cru era a massa, as papas de
linhaça o doce de abóbora. Depois vão ao forno e ficam uns quadrados como podem
ver nas fotos, neste caso confecionados na maravilhosa catedral de doces que é
a Casa Lapão, em Vila
Real. No caminho da cozinha para a sua cela, cruzou-se com a
Madre Abadessa que lhe perguntou o que ela transportava e, a noviça Maria
Ermelinda terá respondido que eram papos de linhaça que no dia seguinte viriam
para os tratamentos. Para que continuou a fazer estes doces em pequenas
quantidades, para satisfação da sua gulodice, mesmo depois de ter professado e
s ter transformado na Irmã Imaculada de Jesus.
Começou a tradição a querer que se comecem estes doces em
dia de Santa Luzia, ou também se oferecessem a quem se ficava à espera da
retribuição com as “Ganchas de São Brás”. Pois que a santidade continue a
alimentar os nossos prazeres.
Já encontrei em Turquel uns “Pitos de Santa Luzia” mas
confecionados com doce de gila em vez de doce de abóbora.
© Virgílio Nogueiro Gomes
Um doce de partilha, e fácil de confecionar:
Pitos de Santa Luzia
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