quinta-feira, 3 de maio de 2012

Carlos Ferreira /Júlio Meirinhos - A Terra de Miranda e a Lei da Lhégua Mirandesa (1)

Trabalho conjunto de Carlos Ferreira e Júlio Meirinhos

Resumo:

O presente artigo elaborado em conjunto por Carlos Ferreira e Júlio Meirinhos, pretende ser um contributo de divulgação sobre a temática da Terra de Miranda, enquanto espaço diferenciado dentro do rectângulo português, nas suas vertentes histórica, antropológica e geográfica, assim como na vertente cultural, de onde destacamos a língua mirandesa, enquanto elemento cristalizador e aglutinador dessa mesma diferenciação cultural.
Relatar o longo e arrojado processo político que culminou com a aprovação da Lei 7/99 de 29 de Janeiro, conhecida como Lei do Mirandês, na Assembleia de República, parece-nos constituir substância de relevo, enquanto coroamento de uma luta por um Portugal mais respeitador da sua diversidade multicultural e portanto mais democrático.

1. A denominação Terra de Miranda (Carlos Ferreira)

A Terra de Miranda[1] situa-se no canto Nordeste do rectângulo Português, com uma latitude dentro do paralelo 41ºN (entre os 10’ e os 40’) e uma longitude dentro do meridiano 6°W (entre os 10’ e 50’).
Embora seja alvo de alguma controvérsia que não iremos aqui discutir, a Terra de Miranda, tomando como referência a sua delimitação medieval, constitui uma sub-região natural vs. homogénea do Nordeste Transmontano, assumindo-se essa homogeneidade como uma transição, em relação aos espaços que prolonga ou delimita.
Em termos dos cambiantes físicos da paisagem (geográficos, geológicos, ecológicos), basta uma mirada de relance sobre uma imagem de satélite, para percebermos que a Terra de Miranda, em longitude e latitude, constitui uma região de transição,[2] materializando-se em termos humanos numa velha região de fronteira.[3] Em longitude faz a transição geomorfológica entre a submeseta norte castelhana aplanada e monótona, com rede hidrográfica pouco ou nada encaixada e os planaltos do nordeste Português de relevo já mais movimentado e com a rede fluvial muito encaixada. Em latitude faz a transição entre os cimos aplanados das fraldas sul da cordilheira Cantábrica e os planaltos mais baixos do nordeste português. Em termos geológicos faz a transição entre a imensidão avermelhada dos depósitos recentes da meseta e a mistura de rochas granitoides, xistentas e quartziticas, por vezes também recobertas de depósitos cenozóicos, dos planaltos do nordeste português. Em termos climáticos faz a transição entre o clima de feições marcadamente continentais da meseta e o clima marcadamente atlântico dos montes de Leão e Sanábria, para um clima de feições mistas dos planaltos do nordeste português, multiplicando-se frequentemente em variadíssimos microclimas, originados pelo encaixe da rede fluvial e pela exposição das encostas a ela adjacentes. Reflectindo o clima, em termos florísticos faz a transição entre os azinhais (Quercus ilex ssp. Rotundifolia) da meseta e os bosques de carvalho negral (Quercus pyrenaica Willd) do maciço Cantábrico, para os bosques mistos do planalto e dos vales encaixados dos rios, onde a vinha e a oliveira encontram alargada expressão. Como alguns botânicos têm apontado, a transição significa riqueza em biodiversidade.
Dentro dos cambiantes humanos da paisagem, podemos destacar a transição entre o grande campo cerealífero e aberto (openfield) da meseta e o pequeno campo fechado (bocage) dos Montes de Leão e Sanábria, para uma estrutura fundiária mista de enclausures e campo aberto nos planaltos do nordeste transmontano, onde os lameiros (cerrados) assumem a maior expressão de identidade na paisagem da Terra de Miranda. Sendo a geologia diferente, os materiais empregues na construção das casas e o tipo de arquitectura, também vêm neles reflectida a transição. Também aqui, ao longo de toda a história, as práticas e produções agrícolas tiveram maior diversificação, que na meseta castelhana.
Por fim é necessário dizer que a transição que se vai efectuando na Terra de Miranda, além de se ver no relevo, na geologia, no encaixe dos rios, no clima, no tipo de vegetação, na estruturação da paisagem, no tipo de actividades agrícolas, no tipo de povoamento e na etnografia, vê-se também na língua, o leonês, língua de transição segundo Menedez Pidal,[4] que evoluindo a partir do latim popular foi durando nesta região, mas que cedo começou a perder vigor frente aos ataques do castelhano e do galaico-português, depois da independência do reino de Portugal e da aglutinação do reino de Leão pelo reino de Castela, (JIMÉNEZ, A. C.(2001)420-428).
Nos termos proto-históricos e históricos[5] da ocupação humana da Terra de Miranda, antes das invasões romanas chegarem à Península Ibérica, o território Zoela, espaço cultural das tribos celtas[6] pertencentes ao povo Astur, ocupava uma região que delimitava os seus contornos da seguinte forma: partindo do ponto de confluência entre o rio Esla e o Douro, continuava para N/NE pelos cimos da Serra da Culebra, para NO pela cumeada da serra de Montesinho, para O e SO pela linha de cumeada das Serras de Nogueira e Bornes, servindo o vale jusante do Sabor e a serra do Reboredo como fecho até ao vale do Douro quando este entra em território português e daí sobe até encontrar novamente a foz do rio Esla, (MARTÍNEZ, S. M. G.(1999)18). No limite O da submeseta norte castelhana, o rio Esla com orientação norte-sul e o talvegue profundamente encaixado do rio Douro, com orientação NE - SO, serviam de eixo vertebrador na divisão entre os populi dos Astures Cismontanos, dos Callaeci, dos Lusitani, dos Vaccei e dos Vettones, (ALARCÃO, J.(2002)31-33). Este ponto de encontro entre Esla e Douro, serviu depois para estabelecer os limites entre as províncias romanas da Lusitânia e Tarraconensis. Durante o domínio romano, embora muitos estudos se tenham debruçado sobre os limites dos dois conventos nomeadamente Joaquim Neto (NETO, J. M.(1975), ressalta que a Terra de Miranda se integrou no convento de Asturica Augusta em determinados períodos e no de Bracara Augusta noutros períodos. Dentro do próprio topónimo Miranda[7] encontramos também esta ideia de transição e fronteira que segundo Garcia Árias[8] se explica a partir do céltico MIRO-RANDA com sentido de limite ou fronteira. Segundo Juan Zapatero, estamos claramente perante um território de velhos “limites, fronteiras e transições”, (ZAPATERO, J. G. A.(1985)22). A este respeito também refere Valentín Cabero:

“algunos topónimos como Muga de Sayago, San Felices de los Gallegos o Vilarinho dos Gallegos, por ejemplo, son un testimonio más de las raíces comunes, y contribuyen a entender la identidad de un espacio regional fronterizo, calificado de marginal y extremo.”, (CABERO DIÉGUEZ, V.(1998)198).

in: Trás-os-Montes e Alto Douro, mosaico de Ciência e Cultura (2011)

(Continua)

[1] Confunde-se amiúde Terra de Miranda e Planalto Mirandês, mas a primeira designação é mais abrangente. Francisco de Sande Lemos considera três sub-unidades geográficas para a Terra de Miranda: o planalto de Miranda, o planalto de Algoso-Vimioso e o planalto de Argoselo-Outeiro, (LEMOS, F.S.(1993)I.a. 139-140).
[2] Ver Valentín Cabero que refere: “Es precisamente en las fronteras, en las márgenes del territorio, en estos lugares de encuentro y de encrucijada, en estos espacios de transición y de alternancia, donde las identidades territoriales se muestran con mayor complejidad y pluralidad”, (CABERO DIÉGUEZ, V.(1998)197).
[3] Situados ligeiramente a norte de Zamora, a localização da velha cidade medieval de Castrotorafe, hoje em ruínas e a localização do convento cisterciense de Santa Maria de Moreruela, também em ruínas, bem como o convento de San Martín de Catañeda na Sanábria, constituem excelentes marcas políticas de interface por parte do reino de Leão, para intervir e assegurar uma velha área de transição. Sobre a questão ver (ANTON, I. A.(1986)49-58) e (PRADA, M. F.(1998)1117). Já mais tarde, o reino de Portugal em 1545 através de D. João III e o Papa Paulo III (MOURINHO, A. R.(1995)65), em sentido inverso, com a criação da diocese de Miranda, toma uma decisão para enfraquecer o poder dos mosteiros de Moreruela e San Martin de Castañeda, ambos em território espanhol, mas controlando boa parte das terras do nordeste transmontano. Quando os velhos mosteiros e castelos medievais entraram em decadência, a elevação de Miranda do Douro a cidade, a criação da diocese e a edificação da Sé vieram trazer remédio à falta de autoridade forte na região. Por outro lado é centralizada a propriedade de todos os bens da Igreja na região do Nordeste Transmontano e tirados todos os bens de mosteiros espanhóis situados do outro lado da fronteira. Desta forma a criação da diocese de Miranda é acompanhada de uma certa visão política, para definitivamente controlar e consolidar todos os territórios da coroa portuguesa a leste de Mirandela. Continuando o processo de estabilização desta vasta área de transição, a diocese apressa-se a instalar seminários em toda a linha de fronteira da raia seca (Vinhais, Bragança e Miranda). É interessante notar, que dentro dos domínios dos mosteiros povoadores, por exemplo Moreruela, os seus domínios e igrejas estendem-se até à serra de Nogueira e até à linha de cumeada das serras de Montesinho-Nogueira-Bornes-Reboredo, que é o limite do território Zoela.
[4] Ramón Menedez Pidal (Las Origenes del Español) citado por José Matoso (org) (1992), “Portugal no Reino Asturiano-Leonês”, in História de Portugal, Círculo de Leitores, vol. I, 511: “O idioma romance encontrava-se durante o século X no seu período de origem ou de formação, e o que mais essencialmente distinguia a linguagem dessa época da que se seguiu depois era a falta de uma norma linguística fixa. Várias normas lutavam entre si, cada qual sem força suficiente para vencer rapidamente a sua oposta (...) A fala vulgar da corte de Leão no século X tinha uma grande debilidade constitutiva: a sua vacilante indecisão. Nela concorriam tendências vindas da Galiza, com o grande prestígio da cultura, riqueza e grande densidade de população dessa terra ocidental; tendências vindas das Astúrias, antiga sede da monarquia; tendências vindas de Castela, região que já então se distinguia por uma firme orientação linguística, muito diferente das grandes vacilações leonesas. Leão gozou o seu grande prestígio político numa época em que a qualidade da corte a prejudicava linguisticamente pela mistura de gentes e influências muito diversas que a ela concorriam e na qual não existia ainda uma literatura romance capaz de reduzir a uma harmónica unidade essas várias tendências.”
Também Orlando Ribeiro cita Menéndez Pidal, referindo: “MENÉNDEZ PIDAL, por sua vez, notara como a cunha asturicense na Terra de Miranda explica a persistência de um falar leonês no território de Portugal.”, (RIBEIRO, O.(2001)78). Esta ideia de cunha encravada de que nos fala Minéndez de Pidal, mostra não apenas a fragilidade política em “aguentar” os territórios que a ladeiam, mas mostra sobretudo a ideia de transição que está subjacente a este espaço.
[5] Sobre a história da Terra de Miranda, Cidade e Diocese, consultar vários documentos na obra do Abade de Baçal, nomeadamente (ALVES, F. M.(1910)I. e IV), a obra de Artur Carlos Alves (ALVES, A. C.(1973), (ALVES, A. C.(1974) e (ALVES, A. C.(1978), (MOURINHO, A. M.(1980), (MOURINHO, A. R.(1995) e (FERNANDES, M. C. C(2001).
[6] Anselmo Jiménez refere sobre os celtas no reino de Leão: “Los celtas, procedentes de Europa, entraron en oleadas sucesivas principalmente en el siglo VIII a.C. Ellos trajeron su lengua, el cultivo cerealista de secano, una ganadería bastante desarrollada y extendieron el uso del hierro. Los que se establecieron en la parte oriental de la meseta fueron muy influidos por la cultura de los iberos.”, (JIMÉNEZ, A. C.(2001)42).
[7] Pensamos que o topónimo Miranda antes de se fixar no nome da localidade, devia referenciar o nome de uma região, ainda mais vasta que o espaço atribuído pelos primeiros reis portugueses à Terra de Miranda. Teria sido primeiro a “reconquista cristã” e depois o início da nacionalidade, com todas as querelas político-militares ligadas ao processo de independência, que teriam fragmentado esse espaço original mais vasto. O facto de na região, três importantes reinos (Leão, Castela e Portugal), se terem guerreado, aglutinado, dividido, feito alianças e tornados independentes, não favoreceu a continuidade política regional.
Num documento de 1358, emitido pelo rei D. Pedro de Portugal faz-se referência a “(...) miranda a nova de Riba de doiro (...)”, (FERNANDES, H. P.(1996)I. 53). Por aqui podemos verificar que a vila de Miranda tem uma fundação que nasce para estabilizar os limites da nacionalidade emergente.
[8] Ver (GARCÍA ARIAS, J. L. (2000) Miranda) e também (ZAPATERO, J. G. A.(1985). José Leite de Vasconcellos (VASCONCELLOS, J. L.(1900)33-35) e o Abade de Baçal (ALVES, F. M.(1910)X. 131), referem ambos que a palavra Miranda vem do adjectivo-particípio latino miranda, do verbo miror, e significa «digna de admiração», e, por ampliação de sentido, «evidente», ou ideia análoga; na mesma ordem de ideias: mirar, mirante, miradoiro. Não estamos completamente de acordo com estes nobres autores. Por um lado pensamos que a palavra miranda se reportava a uma região e será muito mais antiga que a localidade, por isso o que seria ali digno de admiração se não havia localidade? Por outro se Miranda do Douro fica localizada num miradouro frente ao rio, a mesma coisa já não se pode dizer de Mirandela que fica numa depressão. A Verdade é que ambas referenciam faixas de fronteira físico paisagísticas. Da mesma forma que José Leite de Vasconcelos baptizou a língua leonêsa destas terras, apelidada aqui por “nuossa fala” por Mirandês, também os “fundadores” de Miranda teriam cristalizado o nome da região para designar a localidade.


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