Resumo:
O
presente artigo elaborado em conjunto por Carlos Ferreira e Júlio Meirinhos,
pretende ser um contributo de divulgação sobre a temática da Terra de Miranda,
enquanto espaço diferenciado dentro do rectângulo português, nas suas vertentes
histórica, antropológica e geográfica, assim como na vertente cultural, de onde
destacamos a língua mirandesa, enquanto elemento cristalizador e aglutinador
dessa mesma diferenciação cultural.
Relatar
o longo e arrojado processo político que culminou com a aprovação da Lei 7/99
de 29 de Janeiro, conhecida como Lei do Mirandês, na Assembleia de República,
parece-nos constituir substância de relevo, enquanto coroamento de uma luta por
um Portugal mais respeitador da sua diversidade multicultural e portanto mais
democrático.
A
Terra de Miranda[1]
situa-se no canto Nordeste do rectângulo Português, com uma latitude dentro do
paralelo 41ºN (entre os 10’
e os 40’ )
e uma longitude dentro do meridiano 6°W (entre os 10’ e 50’ ).
Embora seja alvo
de alguma controvérsia que não iremos aqui discutir, a Terra de Miranda, tomando como
referência a sua delimitação medieval, constitui uma sub-região natural vs.
homogénea do Nordeste Transmontano, assumindo-se essa homogeneidade como uma
transição, em relação aos espaços que prolonga ou delimita.
Em termos dos cambiantes físicos da
paisagem (geográficos, geológicos, ecológicos), basta uma mirada de relance
sobre uma imagem de satélite, para percebermos que a Terra de Miranda, em longitude
e latitude, constitui uma região de transição,[2] materializando-se em
termos humanos numa velha região de fronteira.[3] Em longitude faz a
transição geomorfológica entre a submeseta norte castelhana aplanada e
monótona, com rede hidrográfica pouco ou nada encaixada e os planaltos do
nordeste Português de relevo já mais movimentado e com a rede fluvial muito
encaixada. Em latitude faz a transição entre os cimos aplanados das fraldas sul
da cordilheira Cantábrica e os planaltos mais baixos do nordeste português. Em
termos geológicos faz a transição entre a imensidão avermelhada dos depósitos
recentes da meseta e a mistura de rochas granitoides, xistentas e quartziticas,
por vezes também recobertas de depósitos cenozóicos, dos planaltos do nordeste
português. Em termos climáticos faz a transição entre o clima de feições
marcadamente continentais da meseta e o clima marcadamente atlântico dos montes
de Leão e Sanábria, para um clima de feições mistas dos planaltos do nordeste
português, multiplicando-se frequentemente em variadíssimos microclimas,
originados pelo encaixe da rede fluvial e pela exposição das encostas a ela
adjacentes. Reflectindo o clima, em termos florísticos faz a transição entre os
azinhais (Quercus ilex ssp. Rotundifolia) da meseta e os bosques de carvalho negral (Quercus
pyrenaica Willd) do maciço Cantábrico, para os
bosques mistos do planalto e dos vales encaixados dos rios, onde a vinha e a
oliveira encontram alargada expressão. Como alguns botânicos têm apontado, a
transição significa riqueza em biodiversidade.
Dentro dos cambiantes humanos
da paisagem, podemos destacar a transição entre o grande campo cerealífero e
aberto (openfield) da meseta e o pequeno campo fechado (bocage)
dos Montes de Leão e Sanábria, para uma estrutura fundiária mista de
enclausures e campo aberto nos planaltos do nordeste transmontano, onde os
lameiros (cerrados) assumem a maior expressão de identidade na paisagem
da Terra de Miranda. Sendo a geologia diferente, os materiais empregues na
construção das casas e o tipo de arquitectura, também vêm neles reflectida a
transição. Também aqui, ao longo de toda a história, as práticas e produções
agrícolas tiveram maior diversificação, que na meseta castelhana.
Por fim é necessário dizer que
a transição que se vai efectuando na
Terra de Miranda, além de se ver no relevo, na geologia, no encaixe dos rios,
no clima, no tipo de vegetação, na estruturação da paisagem, no tipo de
actividades agrícolas, no tipo de povoamento e na etnografia, vê-se também na
língua, o leonês, língua de transição segundo Menedez Pidal,[4]
que evoluindo a partir do latim popular foi durando nesta região, mas que cedo
começou a perder vigor frente aos ataques do castelhano e do galaico-português,
depois da independência do reino de Portugal e da aglutinação do reino de Leão
pelo reino de Castela, (JIMÉNEZ, A. C.(2001)420-428).
Nos termos proto-históricos e
históricos[5] da ocupação humana da
Terra de Miranda, antes das invasões romanas chegarem à Península
Ibérica, o território Zoela, espaço cultural das tribos celtas[6]
pertencentes ao povo Astur, ocupava uma região que delimitava os seus contornos
da seguinte forma: partindo do ponto de confluência entre o rio Esla e o Douro,
continuava para N/NE pelos cimos da Serra da Culebra, para NO pela cumeada da
serra de Montesinho, para O e SO pela linha de cumeada das Serras de Nogueira e
Bornes, servindo o vale jusante do Sabor e a serra do Reboredo como fecho até
ao vale do Douro quando este entra em território português e daí sobe até
encontrar novamente a foz do rio Esla, (MARTÍNEZ, S. M. G.(1999)18). No limite O da submeseta norte castelhana, o
rio Esla com orientação norte-sul e o talvegue profundamente encaixado do rio
Douro, com orientação NE - SO, serviam de eixo vertebrador na divisão entre os populi
dos Astures Cismontanos, dos Callaeci, dos Lusitani, dos Vaccei
e dos Vettones, (ALARCÃO, J.(2002)31-33). Este ponto de encontro
entre Esla e Douro, serviu depois para estabelecer os limites entre as
províncias romanas da Lusitânia e Tarraconensis. Durante o domínio
romano, embora muitos estudos se tenham debruçado sobre os limites dos dois
conventos nomeadamente Joaquim Neto (NETO,
J. M.(1975), ressalta que a Terra de Miranda se integrou no convento de Asturica Augusta em determinados períodos e no de
Bracara Augusta noutros períodos. Dentro do próprio topónimo Miranda[7]
encontramos também esta ideia de transição e fronteira que segundo Garcia Árias[8]
se explica a partir do céltico MIRO-RANDA
com sentido de limite ou fronteira. Segundo Juan Zapatero, estamos claramente perante um território de
velhos “limites, fronteiras e transições”, (ZAPATERO, J. G. A.(1985)22). A este respeito também
refere Valentín Cabero:
“algunos topónimos como
Muga de Sayago, San Felices de los Gallegos o Vilarinho dos Gallegos, por
ejemplo, son un testimonio más de las raíces comunes, y contribuyen a entender
la identidad de un espacio regional fronterizo, calificado de marginal y
extremo.”, (CABERO DIÉGUEZ, V.(1998)198).
in: Trás-os-Montes e Alto Douro, mosaico de Ciência e Cultura (2011)
(Continua)
[1]
Confunde-se amiúde Terra de Miranda e Planalto Mirandês, mas a primeira
designação é mais abrangente. Francisco de Sande Lemos considera três
sub-unidades geográficas para a Terra de Miranda: o planalto de Miranda, o
planalto de Algoso-Vimioso e o planalto de Argoselo-Outeiro, (LEMOS,
F.S.(1993)I.a. 139-140).
[2]
Ver Valentín Cabero que
refere: “Es precisamente en las fronteras, en las márgenes del territorio, en
estos lugares de encuentro y de encrucijada, en estos espacios de transición y
de alternancia, donde las identidades territoriales se muestran con mayor
complejidad y pluralidad”, (CABERO DIÉGUEZ, V.(1998)197).
[3]
Situados ligeiramente a norte de Zamora, a localização da velha cidade medieval
de Castrotorafe, hoje em
ruínas e a localização do convento cisterciense de Santa Maria de Moreruela,
também em ruínas, bem como o convento de San Martín de Catañeda na Sanábria,
constituem excelentes marcas políticas de interface por parte do reino de Leão,
para intervir e assegurar uma velha área de transição. Sobre a questão ver
(ANTON, I. A.(1986)49-58) e (PRADA, M. F.(1998)1117). Já mais tarde, o reino de
Portugal em 1545 através de D. João III e o Papa Paulo III (MOURINHO, A.
R.(1995)65), em sentido inverso, com a criação da diocese de Miranda, toma uma
decisão para enfraquecer o poder dos mosteiros de Moreruela e San Martin de
Castañeda, ambos em território espanhol, mas controlando boa parte das terras
do nordeste transmontano. Quando os velhos mosteiros e castelos medievais
entraram em decadência, a elevação de Miranda do Douro a cidade, a criação da
diocese e a edificação da Sé vieram trazer remédio à falta de autoridade forte
na região. Por outro lado é centralizada a propriedade de todos os bens da
Igreja na região do Nordeste Transmontano e tirados todos os bens de mosteiros
espanhóis situados do outro lado da fronteira. Desta forma a criação da diocese
de Miranda é acompanhada de uma certa visão política, para definitivamente
controlar e consolidar todos os territórios da coroa portuguesa a leste de Mirandela.
Continuando o processo de estabilização desta vasta área de transição, a
diocese apressa-se a instalar seminários em toda a linha de fronteira da raia
seca (Vinhais, Bragança e Miranda). É interessante notar, que dentro dos
domínios dos mosteiros povoadores, por exemplo Moreruela, os seus domínios e
igrejas estendem-se até à serra de Nogueira e até à linha de cumeada das serras
de Montesinho-Nogueira-Bornes-Reboredo, que é o limite do território Zoela.
[4]
Ramón Menedez Pidal (Las Origenes del
Español) citado por José Matoso (org) (1992), “Portugal no Reino
Asturiano-Leonês”, in História de
Portugal, Círculo de Leitores, vol. I, 511: “O idioma romance encontrava-se
durante o século X no seu período de origem ou de formação, e o que mais
essencialmente distinguia a linguagem dessa época da que se seguiu depois era a
falta de uma norma linguística fixa. Várias normas lutavam entre si, cada qual
sem força suficiente para vencer rapidamente a sua oposta (...) A fala vulgar
da corte de Leão no século X tinha uma grande debilidade constitutiva: a sua
vacilante indecisão. Nela concorriam tendências vindas da Galiza, com o grande
prestígio da cultura, riqueza e grande densidade de população dessa terra
ocidental; tendências vindas das Astúrias, antiga sede da monarquia; tendências
vindas de Castela, região que já então se distinguia por uma firme orientação
linguística, muito diferente das grandes vacilações leonesas. Leão gozou o seu
grande prestígio político numa época em que a qualidade da corte a prejudicava linguisticamente
pela mistura de gentes e influências muito diversas que a ela concorriam e na
qual não existia ainda uma literatura romance capaz de reduzir a uma harmónica
unidade essas várias tendências.”
Também
Orlando Ribeiro cita Menéndez Pidal, referindo: “MENÉNDEZ PIDAL, por sua vez,
notara como a cunha asturicense na Terra de Miranda explica a persistência de
um falar leonês no território de Portugal.”, (RIBEIRO, O.(2001)78). Esta ideia
de cunha encravada de que nos fala Minéndez de Pidal, mostra não apenas a
fragilidade política em “aguentar” os territórios que a ladeiam, mas mostra
sobretudo a ideia de transição que está subjacente a este espaço.
[5]
Sobre a história da Terra de Miranda, Cidade e Diocese, consultar vários
documentos na obra do Abade de Baçal, nomeadamente (ALVES, F. M.(1910)I. e IV),
a obra de Artur Carlos Alves (ALVES, A. C.(1973), (ALVES, A. C.(1974) e (ALVES,
A. C.(1978), (MOURINHO, A. M.(1980), (MOURINHO, A. R.(1995) e (FERNANDES, M. C.
C(2001).
[6] Anselmo Jiménez refere sobre os
celtas no reino de Leão: “Los celtas, procedentes de Europa, entraron en
oleadas sucesivas principalmente en el siglo VIII a.C. Ellos trajeron su
lengua, el cultivo cerealista de secano, una ganadería bastante desarrollada y
extendieron el uso del hierro. Los que se establecieron en la parte oriental de
la meseta fueron muy influidos por la cultura de los iberos.”, (JIMÉNEZ, A.
C.(2001)42).
[7] Pensamos que o topónimo Miranda
antes de se fixar no nome da localidade, devia referenciar o nome de uma
região, ainda mais vasta que o espaço atribuído pelos primeiros reis
portugueses à Terra de Miranda. Teria sido primeiro a “reconquista cristã” e
depois o início da nacionalidade, com todas as querelas político-militares
ligadas ao processo de independência, que teriam fragmentado esse espaço
original mais vasto. O facto de na região, três importantes reinos (Leão,
Castela e Portugal), se terem guerreado, aglutinado, dividido, feito alianças e
tornados independentes, não favoreceu a continuidade política regional.
Num
documento de 1358, emitido pelo rei D. Pedro de Portugal faz-se referência a
“(...) miranda a nova de Riba de doiro (...)”, (FERNANDES, H. P.(1996)I.
53). Por aqui podemos verificar que a vila de Miranda tem uma fundação que
nasce para estabilizar os limites da nacionalidade emergente.
[8]
Ver (GARCÍA ARIAS, J. L. (2000) Miranda) e também (ZAPATERO, J. G. A.(1985).
José Leite de Vasconcellos (VASCONCELLOS, J. L.(1900)33-35) e o Abade de Baçal
(ALVES, F. M.(1910)X. 131), referem ambos que a palavra Miranda vem do
adjectivo-particípio latino miranda, do verbo miror, e significa
«digna de admiração», e, por ampliação de sentido, «evidente», ou ideia
análoga; na mesma ordem de ideias: mirar, mirante, miradoiro.
Não estamos completamente de acordo com estes nobres autores. Por um lado
pensamos que a palavra miranda se reportava a uma região e será muito
mais antiga que a localidade, por isso o que seria ali digno de admiração se
não havia localidade? Por outro se Miranda do Douro fica localizada num
miradouro frente ao rio, a mesma coisa já não se pode dizer de Mirandela que
fica numa depressão. A Verdade é que ambas referenciam faixas de fronteira
físico paisagísticas. Da mesma forma que José Leite de Vasconcelos baptizou a
língua leonêsa destas terras, apelidada aqui por “nuossa fala” por
Mirandês, também os “fundadores” de Miranda teriam cristalizado o nome da
região para designar a localidade.
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