É sempre com agrado que se lê um escritor como J. Rentes de Carvalho. No seu blogue (TEMPO CONTADO: Quartos de hotel (4)) tempo contado lemos esta pequena história que se segue. Não por ser quem é a sua figura central (fosse outra e acharíamos graça na mesma), mas pela própria história. Essencialmente pelo seu epílogo (fecho), ou melhor, pelo seu remate.
Terça-feira, Abril 17
Quartos de hotel (4)
Seria longo detalhar as razões da
minha antipatia por Mário Soares como figura política. Datam de Paris, no
começo dos anos 60, e permanecem. Tenho também pouco apreço pelos que, ingénuos
ou ignorantes da História, e dizendo-se eternamente gratos, se lhe referem como
"o homem que nos trouxe a Democracia." Não trouxe. As peripécias são
outras e menos simples.
Mário Soares desagrada-me ainda
como pessoa, pois simboliza aquilo que detesto e de que desdenho na burguesia
portuguesa: a falsa pachorra, a jovialidade de pechisbeque, o modo paternal, o
sorriso pronto, a mãozada, os Ora viva!, a festinha aos humildes; por detrás de
tudo isso a ganância, o cálculo frio, o desprezo do semelhante, a presunção, o
sentimento bacoco de casta, os rapapés, a mediocridade.
O senhor Mário Soares sabe o que
dele penso. Isso, contudo, parece não obstar, pois tenho recebido os seus
livros, autografados, e surpreendeu-me um Natal, enviando um retrato seu,
dedicado "Ao meu caro amigo J. Rentes de Carvalho".
Surpresa tive-a também um dia em
1998, quando o competente e muito amável João Rosa Lã, então nosso embaixador
em Haia, me telefonou anunciando:
- O Mário Soares vem cá almoçar e
pediu que o convidasse, pois quer muito falar consigo.
Lá fui. Seríamos cinco ou seis,
mas o cordial ex-presidente como que se apoderou de mim e, esquecendo os
outros, esmiuçou longamente, miudamente, a sua visão da política portuguesa.
Fui ouvindo, e em determinado
momento, para rebater o que ele afirmava disse-lhe:
- Mas isso, senhor presidente…
- Já não sou presidente! Chame-me
Mário.
Agradeci, recusei, disse-lhe que
da minha parte acharia indecorosa a familiaridade, se bem que...
- Se bem que?
- Dá-se o caso que o senhor
presidente e eu já dormimos na mesma cama.
Contei-lhe depois a história,
resumindo os detalhes e escondendo o remate.
Deve ter sido em Setembro de
1948, os dezoito anos feitos, que o Dr. Armando Pimentel , amigo e mentor, me
convidou para um jantar em Macedo de Cavaleiros, onde padres ricos e
proprietários abastados iam festejar a excepcional colheita de trigo e centeio
desse Verão.
De Estevais a Macedo leva-se uma
hora, naquele tempo dava a ideia de se ter feito grande viagem. Amesendámos na
então já nomeada Estalagem do Caçador. Éramos muitos, eu o único jovem, sei que
se começou com alheiras e chouriças, a seguir perdiz, borrego, leitão. O resto
sumiu-se da memória.
Uns trinta anos depois
aconteceu-me passar por Macedo, almocei na Estalagem, iniciando uma espécie de
ritual, e desde então vezes sem conta lá comemos e pernoitámos, criando boa
amizade com a D. Maria Manuela, que com simpatia e perícia dirigia o
estabelecimento.
É ela que nos acolhe uma tarde de
muito calor, manda preparar uns refrescos e, enquanto beberricamos e
coscuvilhamos, diz que nos reservou um quarto especial.
Sobe connosco, abre a porta, e
anuncia com maliciosa solenidade:
- O Mário Soares dormiu aqui
ontem!
No fundo achamos desagradável a
nova, é como se as exalações do corpo e da personalidade do homem ainda flutuem
no aposento, mas sorrimos, dizemos umas palavras de circunstância, a D. Maria
Manuela despede-se.
A empregada, transmontana,
retornada de Angola, espera que a patroa desça, encosta a porta, e rosna,
truculenta, ao mesmo tempo que nos agarra pelos braços:
- É verdade! O filho da puta
dormiu aqui! Mas estejam descansados, que já desinfectei!
(Continua)
O último livro (2ª edição) de J. Rentes de Carvalho, já se encontra nas livrarias
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