Aniceto Afonso
Às oito horas da manhã do dia 2
de Janeiro de 1845, o capitão de Engenharia Belchior José Garcês Sobral[1]
iniciava o reconhecimento do “Itinerário da Barca do Pocinho à cidade de
Miranda, passando pela vila de Moncorvo, aldeias de Carviçais, Lagoaça, Sendim
e outros pontos notáveis, fazendo parte da grande e antiga estrada denominada
hoje ‘Mourisca’ que conduz de Portugal a diferentes partes de Espanha”. No
título do seu relatório, feito no quartel de Bragança e datado de 2 de
Fevereiro de 1845, o capitão Sobral acrescentava: “Esta estrada é real e de
muito trânsito”[2]
Porque fazia o Exército este
reconhecimento? Havia duas tarefas que decorriam desde há muito anos, a que o
Exército se encontrava ligado – a Carta Geral do Reino e o Plano Geral de
Defesa do Reino. Muitos trabalhos de campo, como os reconhecimentos, poderiam
ser úteis aos dois projectos.
Sem mencionar preocupações anteriores,
foi a partir de 1788 que a Academia das Ciências de Lisboa começou a discutir
mais profundamente a forma de levar a efeito os trabalhos necessários à
realização de uma Carta Geral do Reino. Custódio Gomes Vilas Boas[3] foi a
pessoa a quem a Academia pediu a elaboração de um parecer sobre o assunto. As
suas preocupações confluíram em duas direcções – por um lado, a determinação da
posição geográfica de uma rede de pontos para apoio dos levantamentos
topográficos, e por outro, o levantamento da configuração do terreno, a
realizar por comarcas, com posterior uniformização[4]. Mas
quem iniciou os trabalhos foi Francisco António Ciera[5],
eminente matemático, que entre 1790 e 1791 percorreu Portugal e escolheu uma
série de pontos que, entre si, constituíssem um adequado sistema de
triangulação, como base dos trabalhos geodésicos da Carta. Depois de uma viagem
ao Sul, partiu para o Norte em Abril de 1791, para uma missão de dois meses,
ficando a sul do rio Douro[6].
Completou o reconhecimento no final do ano, entre Outubro e Novembro, em que
visitou a Galiza, acompanhado de oficiais espanhóis, e Trás-os-Montes. Vários
engenheiros militares estiveram ligados a estes trabalhos, que prosseguiram até
1804, altura em que foram interrompidos, pelas dificuldades que o país
atravessava.
Em consequência dos
acontecimentos políticos ocorridos em Portugal, desde as Invasões Francesas até
às Lutas Liberais, só terminadas em 1834, bem como os conflitos internos que se
prolongaram até à década de quarenta, os trabalhos da Carta Geral do Reino só
muito tardiamente foram retomados, ainda assim de forma muito incipiente. Na
década de trinta, Filipe Folque[7] e
Pedro Folque[8] iniciaram os trabalhos de
triangulação, de levantamento e reconhecimento do terreno, prosseguindo depois
os trabalhos, até à realização da primeira carta de Portugal, a Carta
Geográfica de Portugal de 1865, na escala 1/500.000.
Para esta realização tinham
também contribuído os estudos feitos por uma comissão nomeada em Dezembro de
1843, constituída por engenheiros militares (João José Ferreira de Sousa,
Filipe Folque e Luís Herculano Ferreira) a fim de que “propusesse um sistema
geral de Escalas, de Convenções e de Desenho Topográfico para servir de norma
nos trabalhos da Carta do Reino, a fim de os tornar mais fáceis, uniformes e
homogéneos”[9].
Por outro lado, o Plano Geral de
Defesa do Reino era também uma preocupação antiga, que o Conde de Lippe, a
partir de 1762, o Príncipe Waldeck, nos anos de 1797 e 1798, ambos comandantes
do Exército Português e outros comandantes portugueses tinham recomendado e
mesmo realizado, através de longos reconhecimentos territoriais e reorganização
das forças militares de Portugal.
Mas foram as Invasões Francesas
que tornaram urgente a realização dos estudos e dos reconhecimentos para o
estabelecimento do Plano de Defesa. Neste campo, e apesar de todos os trabalhos
que entretanto se foram realizando, é notável o documento elaborado pelo
brigadeiro José Maria das Neves Costa[10], em
resposta a uma portaria de 11 de Abril de 1838 e datado de 1841, ano da sua
morte[11].
Nestas Observações, escreve o autor:
“Desenvolvendo mais as precedentes ideias, observamos que, não havendo
actualmente quem tenha conhecimento geral e exacto da natureza geográfica do
nosso território, precisamos conhecer ao menos aproximadamente os seus
principais Rios e Montanhas que formam outros tantos dos principais obstáculos
naturais, que especialmente dificultam as operações de guerra”. E acrescenta:
“A respeito dos mencionados obstáculos naturais, observaremos também que ainda
quando os pudéssemos conhecer percorrendo toda a superfície terrestre do Reino,
não dispensaria isso a redacção de uma carta militar aonde eles se achassem
representados, pois seria esse o melhor modo pelo qual poderíamos perceber as
mútuas relações de grandeza, posição e distâncias dos referidos obstáculos
entre si, e a respeito daqueles terrenos mais acessíveis ou transitáveis que
entre eles mediassem e pelos quais, com mais probabilidade se devam esperar as
operações da guerra”. O que Neves Costa queria dizer é que os trabalhos da
Carta e os trabalhos do Plano de Defesa podiam apoiar-se mutuamente e seguir
simultâneos ou paralelos, já que nem um nem outro tinham conhecido grandes
progressos nos últimos tempos. No fundo, os reconhecimentos no terreno serviam
não só para estudar os obstáculos, mas também para recolher as informações e as
medidas topográficas e geodésicas. Parece, no entanto, não ter sido isso que
aconteceu, já que os trabalhos de reconhecimento para o Plano de Defesa estavam
no terreno dois aos depois e os trabalhos do levantamento e dos estudos
cartográficos só vão iniciar-se em 1859.
O reconhecimento do itinerário do
Pocinho a Miranda efectuado pelo capitão Sobral em 1845 inseria-se num conjunto
de trabalhos relacionados mais com o Plano do que com a Carta, embora os
respectivos relatórios pudessem vir a ter interesse topográfico. Neves Costa já
o tinha referido: “Finalmente concluiremos este nosso trabalho com algumas
considerações relativas a vários melhoramentos da nossa topografia militar, sem
os quais julgamos mui difícil que possam realizar-se, nem tornar-se
verdadeiramente úteis, os trabalhos topográficos, que para a defesa do Reino
queiram ou hajam algum dia de empreender-se”. Levantando então várias hipóteses
relativamente ao avanço do inimigo em direcção a Lisboa, seu principal
objectivo, Neves Costa escreve as seguintes observações, no que respeita à
passagem do Douro, a partir de Trás-os-Montes: “Se o inimigo, estando de posse
da Província de Trás-os-Montes, se resolvesse a passar o Douro, para penetrar
para qualquer fim que seja, no interior da Província da Beira Alta e
Estremadura Portuguesa, e isto, ou do lado de Torre de Moncorvo, ou do lado de
Vila Real e Peso da Régua sobre Lamego, é evidente a necessidade de conhecermos
a margem esquerda do dito Rio, ao menos na proximidade dos mencionados pontos
de passagem; e, a poder ser, desde a foz do Côa até à foz da ribeira da Póvoa,
e mesmo o terreno mais para o interior, porque sendo ele inteiramente
desconhecido, talvez ali se encontrem posições vantajosas e mui influentes no
sistema geral de defesa do Reino”. Ou seja, as zonas junto do Douro superior,
quer na sua margem esquerda, quer mais para o interior, eram nesta altura
inteiramente desconhecidas do ponto de vista estratégico, tanto na sua
topografia, como sob o ponto de vista militar. Urgia então iniciar os
respectivos reconhecimentos. Foi essa a missão do capitão Sobral, a partir,
pelo menos, de 1844.
in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)
(Continua)
[1]
Belchior José Garcês Sobral, oficial do Real Corpo de Engenheiros do Exército.
[2] Ver o
original no Arquivo Histórico Militar (AHM), cota 3/1/19/7.
[3]
Custódio Gomes Vilas Boas, oficial engenheiro do Exército e membro da Academia
das Ciências de Lisboa. Fez vários levantamentos topográficos do território
português e publicou várias obras científicas de Astronomia, Geografia e
outras.
[4] Maria Helena Dias, “As explorações geográficas dos
finais de Setecentos e a grande aventura da Carta Geral do Reino de Portugal”. Revista da Faculdade de Letras, Porto,
2003, p. 384-385.
[5]
Francisco António Ciera, eminente matemático, astrónomo e cartógrafo português
(1763-1814), foi o criador do telégrafo óptico português, instrumento inovador
para a sua época.
[6]
Francisco António Ciera, Viagem
geográfica e astronómica pelo Reino de Portugal para a construção da carta
topográfica e determinação do grau do meridiano (AHM, cota 4/1/16/21).
[7]
Filipe Folque, General engenheiro do Exército e Doutor em Matemática por
Coimbra (1800-1874). Em 1843 recebeu a incumbência de realizar a carta
topográfica de Portugal na escala 1/1000.000, juntamente com seu pai, Pedro
Folque.
[8] Pedro
Folque, General engenheiro do Exército (1744-1848) distinguiu-se em várias
missões ao serviço de Portugal, tendo trabalhado na década de noventa do século
XVIII com Francisco António Ciera na Carta Geográfica do Reino. Várias vezes
encarregado de trabalhos geodésicos fundamentais, chegou a ser comandante do
Real Corpo de Engenheiros entre 1835
a 1848.
[9] Ver o
respectivo relatório no AHM, cota 3/1/13/21.
[10] José
Maria das Neves Costa foi oficial do Real Corpo de Engenheiros (1774-1841), fez
inúmeros trabalhos topográficos no início do século XIX, entre os quais a
organização das Linhas de Torres Vedras durante a 3ª invasão francesa. Nunca
deixou de trabalhar e escrever sobre o terreno, a topografia, a cartografia e a
defesa.
[11] José Maria das Neves Costa, Considerações
militares tendentes a mostrar quais sejam no território português os terrenos
cuja topografia ainda falta conhecer para servir de base a um sistema defensivo
do Reino, que seja conforme com a sua natureza geográfica e com os princípios
gerais da ciência da guerra, 1841 (Ver o
original no AHM, cota 3/1/13/7).
Sem comentários:
Enviar um comentário