terça-feira, 24 de abril de 2012

Aniceto Afonso - Notas sobre um reconhecimento militar que passou por Lagoaça no ano de 1845


Aniceto Afonso


Às oito horas da manhã do dia 2 de Janeiro de 1845, o capitão de Engenharia Belchior José Garcês Sobral[1] iniciava o reconhecimento do “Itinerário da Barca do Pocinho à cidade de Miranda, passando pela vila de Moncorvo, aldeias de Carviçais, Lagoaça, Sendim e outros pontos notáveis, fazendo parte da grande e antiga estrada denominada hoje ‘Mourisca’ que conduz de Portugal a diferentes partes de Espanha”. No título do seu relatório, feito no quartel de Bragança e datado de 2 de Fevereiro de 1845, o capitão Sobral acrescentava: “Esta estrada é real e de muito trânsito”[2]
Porque fazia o Exército este reconhecimento? Havia duas tarefas que decorriam desde há muito anos, a que o Exército se encontrava ligado – a Carta Geral do Reino e o Plano Geral de Defesa do Reino. Muitos trabalhos de campo, como os reconhecimentos, poderiam ser úteis aos dois projectos. 
Sem mencionar preocupações anteriores, foi a partir de 1788 que a Academia das Ciências de Lisboa começou a discutir mais profundamente a forma de levar a efeito os trabalhos necessários à realização de uma Carta Geral do Reino. Custódio Gomes Vilas Boas[3] foi a pessoa a quem a Academia pediu a elaboração de um parecer sobre o assunto. As suas preocupações confluíram em duas direcções – por um lado, a determinação da posição geográfica de uma rede de pontos para apoio dos levantamentos topográficos, e por outro, o levantamento da configuração do terreno, a realizar por comarcas, com posterior uniformização[4]. Mas quem iniciou os trabalhos foi Francisco António Ciera[5], eminente matemático, que entre 1790 e 1791 percorreu Portugal e escolheu uma série de pontos que, entre si, constituíssem um adequado sistema de triangulação, como base dos trabalhos geodésicos da Carta. Depois de uma viagem ao Sul, partiu para o Norte em Abril de 1791, para uma missão de dois meses, ficando a sul do rio Douro[6]. Completou o reconhecimento no final do ano, entre Outubro e Novembro, em que visitou a Galiza, acompanhado de oficiais espanhóis, e Trás-os-Montes. Vários engenheiros militares estiveram ligados a estes trabalhos, que prosseguiram até 1804, altura em que foram interrompidos, pelas dificuldades que o país atravessava.
Em consequência dos acontecimentos políticos ocorridos em Portugal, desde as Invasões Francesas até às Lutas Liberais, só terminadas em 1834, bem como os conflitos internos que se prolongaram até à década de quarenta, os trabalhos da Carta Geral do Reino só muito tardiamente foram retomados, ainda assim de forma muito incipiente. Na década de trinta, Filipe Folque[7] e Pedro Folque[8] iniciaram os trabalhos de triangulação, de levantamento e reconhecimento do terreno, prosseguindo depois os trabalhos, até à realização da primeira carta de Portugal, a Carta Geográfica de Portugal de 1865, na escala 1/500.000.
Para esta realização tinham também contribuído os estudos feitos por uma comissão nomeada em Dezembro de 1843, constituída por engenheiros militares (João José Ferreira de Sousa, Filipe Folque e Luís Herculano Ferreira) a fim de que “propusesse um sistema geral de Escalas, de Convenções e de Desenho Topográfico para servir de norma nos trabalhos da Carta do Reino, a fim de os tornar mais fáceis, uniformes e homogéneos”[9].
Por outro lado, o Plano Geral de Defesa do Reino era também uma preocupação antiga, que o Conde de Lippe, a partir de 1762, o Príncipe Waldeck, nos anos de 1797 e 1798, ambos comandantes do Exército Português e outros comandantes portugueses tinham recomendado e mesmo realizado, através de longos reconhecimentos territoriais e reorganização das forças militares de Portugal.
Mas foram as Invasões Francesas que tornaram urgente a realização dos estudos e dos reconhecimentos para o estabelecimento do Plano de Defesa. Neste campo, e apesar de todos os trabalhos que entretanto se foram realizando, é notável o documento elaborado pelo brigadeiro José Maria das Neves Costa[10], em resposta a uma portaria de 11 de Abril de 1838 e datado de 1841, ano da sua morte[11]. Nestas Observações, escreve o autor: “Desenvolvendo mais as precedentes ideias, observamos que, não havendo actualmente quem tenha conhecimento geral e exacto da natureza geográfica do nosso território, precisamos conhecer ao menos aproximadamente os seus principais Rios e Montanhas que formam outros tantos dos principais obstáculos naturais, que especialmente dificultam as operações de guerra”. E acrescenta: “A respeito dos mencionados obstáculos naturais, observaremos também que ainda quando os pudéssemos conhecer percorrendo toda a superfície terrestre do Reino, não dispensaria isso a redacção de uma carta militar aonde eles se achassem representados, pois seria esse o melhor modo pelo qual poderíamos perceber as mútuas relações de grandeza, posição e distâncias dos referidos obstáculos entre si, e a respeito daqueles terrenos mais acessíveis ou transitáveis que entre eles mediassem e pelos quais, com mais probabilidade se devam esperar as operações da guerra”. O que Neves Costa queria dizer é que os trabalhos da Carta e os trabalhos do Plano de Defesa podiam apoiar-se mutuamente e seguir simultâneos ou paralelos, já que nem um nem outro tinham conhecido grandes progressos nos últimos tempos. No fundo, os reconhecimentos no terreno serviam não só para estudar os obstáculos, mas também para recolher as informações e as medidas topográficas e geodésicas. Parece, no entanto, não ter sido isso que aconteceu, já que os trabalhos de reconhecimento para o Plano de Defesa estavam no terreno dois aos depois e os trabalhos do levantamento e dos estudos cartográficos só vão iniciar-se em 1859.
O reconhecimento do itinerário do Pocinho a Miranda efectuado pelo capitão Sobral em 1845 inseria-se num conjunto de trabalhos relacionados mais com o Plano do que com a Carta, embora os respectivos relatórios pudessem vir a ter interesse topográfico. Neves Costa já o tinha referido: “Finalmente concluiremos este nosso trabalho com algumas considerações relativas a vários melhoramentos da nossa topografia militar, sem os quais julgamos mui difícil que possam realizar-se, nem tornar-se verdadeiramente úteis, os trabalhos topográficos, que para a defesa do Reino queiram ou hajam algum dia de empreender-se”. Levantando então várias hipóteses relativamente ao avanço do inimigo em direcção a Lisboa, seu principal objectivo, Neves Costa escreve as seguintes observações, no que respeita à passagem do Douro, a partir de Trás-os-Montes: “Se o inimigo, estando de posse da Província de Trás-os-Montes, se resolvesse a passar o Douro, para penetrar para qualquer fim que seja, no interior da Província da Beira Alta e Estremadura Portuguesa, e isto, ou do lado de Torre de Moncorvo, ou do lado de Vila Real e Peso da Régua sobre Lamego, é evidente a necessidade de conhecermos a margem esquerda do dito Rio, ao menos na proximidade dos mencionados pontos de passagem; e, a poder ser, desde a foz do Côa até à foz da ribeira da Póvoa, e mesmo o terreno mais para o interior, porque sendo ele inteiramente desconhecido, talvez ali se encontrem posições vantajosas e mui influentes no sistema geral de defesa do Reino”. Ou seja, as zonas junto do Douro superior, quer na sua margem esquerda, quer mais para o interior, eram nesta altura inteiramente desconhecidas do ponto de vista estratégico, tanto na sua topografia, como sob o ponto de vista militar. Urgia então iniciar os respectivos reconhecimentos. Foi essa a missão do capitão Sobral, a partir, pelo menos, de 1844.

in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)
(Continua)


[1] Belchior José Garcês Sobral, oficial do Real Corpo de Engenheiros do Exército.
[2] Ver o original no Arquivo Histórico Militar (AHM), cota 3/1/19/7.
[3] Custódio Gomes Vilas Boas, oficial engenheiro do Exército e membro da Academia das Ciências de Lisboa. Fez vários levantamentos topográficos do território português e publicou várias obras científicas de Astronomia, Geografia e outras.
[4] Maria Helena Dias, “As explorações geográficas dos finais de Setecentos e a grande aventura da Carta Geral do Reino de Portugal”. Revista da Faculdade de Letras, Porto, 2003, p. 384-385.
[5] Francisco António Ciera, eminente matemático, astrónomo e cartógrafo português (1763-1814), foi o criador do telégrafo óptico português, instrumento inovador para a sua época.
[6] Francisco António Ciera, Viagem geográfica e astronómica pelo Reino de Portugal para a construção da carta topográfica e determinação do grau do meridiano (AHM, cota 4/1/16/21).
[7] Filipe Folque, General engenheiro do Exército e Doutor em Matemática por Coimbra (1800-1874). Em 1843 recebeu a incumbência de realizar a carta topográfica de Portugal na escala 1/1000.000, juntamente com seu pai, Pedro Folque.
[8] Pedro Folque, General engenheiro do Exército (1744-1848) distinguiu-se em várias missões ao serviço de Portugal, tendo trabalhado na década de noventa do século XVIII com Francisco António Ciera na Carta Geográfica do Reino. Várias vezes encarregado de trabalhos geodésicos fundamentais, chegou a ser comandante do Real Corpo de Engenheiros entre 1835 a 1848.
[9] Ver o respectivo relatório no AHM, cota 3/1/13/21.
[10] José Maria das Neves Costa foi oficial do Real Corpo de Engenheiros (1774-1841), fez inúmeros trabalhos topográficos no início do século XIX, entre os quais a organização das Linhas de Torres Vedras durante a 3ª invasão francesa. Nunca deixou de trabalhar e escrever sobre o terreno, a topografia, a cartografia e a defesa.
[11] José Maria das Neves Costa, Considerações militares tendentes a mostrar quais sejam no território português os terrenos cuja topografia ainda falta conhecer para servir de base a um sistema defensivo do Reino, que seja conforme com a sua natureza geográfica e com os princípios gerais da ciência da guerra, 1841 (Ver o original no AHM, cota 3/1/13/7).

Sem comentários:

Enviar um comentário

As Bacantes

  As Bacantes eram as sacerdotisas que, na Grécia Antiga, celebravam os mistérios do Deus Baco, ou Dionísios. Esta tragédia, sobre a morte...