Sigamos então as informações do
relatório do capitão Sobral. Ele sai da Barca do Pocinho no dia 2 de Janeiro de
1845, como dissemos, às oito horas da manhã. A estrada tem a direcção NE-SO e o
terreno é montanhoso. O caminho até Moncorvo faz-se por uma estrada com 28
palmos de largura no início, que diminui para 12 palmos junto da foz do Sabor,
chegando-se à dita vila em 124 minutos exactos, como o relator anota[1].
Sobral continua a sua viagem referindo os pontos notáveis, como subidas,
descidas, quintas, ribeiros, entre Moncorvo e Cabeço da Mua, trajecto em que a
estrada tem sempre cerca de 20 palmos de largura. Segue a meia encosta na Serra
de Reboredo, vendo-se à esquerda, um vale com algumas quintas, que têm
oliveiras, amendoeiras e onde se cultivam cereais. A serra tem duas léguas de
extensão. Até Cabeço da Mua passaram-se mais 113 minutos, num total de 237
minutos desde a saída.
O reconhecimento segue agora para
Carviçais, com passagem por um caminho que vai para Mós. Carviçais é uma
“povoação rica e de importância do concelho de Moncorvo; tem 295 fogos e
recursos de víveres e forragens e alojamento: pode comodamente alojar 600
homens e 100 cavalos”. Foram mais 60 minutos, exactamente, uma hora. O
itinerário, medido em minutos, já leva 297, quase cinco horas.
Finalmente, o caminho segue para
Lagoaça. Logo à saída de Carviçais há uma ramificação para Mogadouro, um mau
caminho de quatro léguas, que passa por Estevais, Quinta das Quebradas, Castelo
Branco e Vale de Porco, antes de chegar a Mogadouro. É claro, poder-se-ia
seguir este caminho para Miranda, mas “a estrada do presente itinerário é
sempre preferida”. Ou seja, por Lagoaça é melhor caminho!
No caminho para Lagoaça passa-se
por Fornos, que é uma pequena aldeia a quatro léguas e meia do Pocinho. Pouco
depois surge então Lagoaça, à direita da estrada, “grande e rica aldeia”, a
cinco léguas do início. De Carviçais são mais 142 minutos, 479 minutos depois
da saída do Pocinho.
Sobre Lagoaça diz o capitão
Sobral: “Esta aldeia tem 240 fogos e pertence ao concelho de Freixo de Espada à
Cinta; é povoação moderna e que tem engrandecido pela sua agricultura e
comércio com o Reino vizinho. Tem comodidades para 600 praças e está situada a
meia légua do Douro”.
Depois de Lagoaça, o itinerário
prossegue para Nordeste, com uma ramificação para Vilarinho (“cabeça duma
freguesia de 116 fogos que pertence ao concelho de Mogadouro, situada a pouca
distância do rio Douro”), sendo que, desde o início até às imediações deste
ponto o terreno é de textura xistosa e “deste ponto até às proximidades de
Miranda é o terreno granítico”.
Oficial Engenheiro - 1806 (Revista Defesa Nacional) |
Seguindo o itinerário, há
ramificações à esquerda para a aldeia de Castelo Branco e à direita para Bruçó,
alcançando-se uma portela na serra da Garjopa (?), de onde se avista a vila de
Mogadouro, à esquerda, a cerca de légua e meia. Mogadouro “tem 160 fogos, é
cabeça de concelho e uma das mais antigas vilas do Reino; tem um castelo
arruinado, aonde aparecem ainda os restos do palácio dos antigos Távoras”.
Há depois outras ramificações
para Vilar de Rei, Vilarinho, Paçó, até chegar a Vila de Ala, Tó, Brunhosinho e
finalmente Sendim, num total de 909 minutos desde a saída do Pocinho, mais de
15 horas, portanto. Sendim fica já no concelho de Miranda, sendo “uma grande e
rica aldeia (…) muito maior e mais importante do que a cidade! Tem 225 fogos e
além da sua avantajada colheita de produtos agrícolas, tem grande comércio, e
uma importante feira mensal; está a meia légua do Douro e fronteira a
Fermoselho (sic), grande vila espanhola, d’além Douro”.
O itinerário prossegue ainda até
Miranda, onde se chega após 1.118 minutos de caminho, ou seja, nada menos que
18 horas e 38 minutos, como anota o capitão Sobral. Miranda é uma cidade
fortificada, mas “está votada à penúria, não possuindo actualmente senão
gloriosas reminiscências da sua antiga grandeza”. Isto tudo pelas seguintes
razões: “A posição (…) fora de estrada alguma seguida; o abandono em que ficou
desde a saída da Mitra, Autoridades e tropa para Bragança; os seus poucos
capitais e nenhuma indústria”.
Ficava assim reconhecido este
itinerário, da Barca do Pocinho a Miranda, com anotações preciosas sobre o
terreno, os obstáculos, as aldeias e vilas e alguns elementos de natureza
militar. Mas o capitão Sobral já efectuara, no ano anterior, um outro
reconhecimento do itinerário de Mesão Frio a Freixo de Espada à Cinta, numa
extensão total de 1.799 minutos, cujo relatório foi assinado em Bragança, no
dia 1 de Dezembro de 1844. Relativamente a Freixo, o capitão assinalava que a
vila tinha 436 fogos, era cabeça de concelho e era “notável pela riqueza e
produção do seu solo, que abunda em azeite, amêndoa, pasto, e todo o género de
frutos que geralmente se colhem em Trás-os-Montes”[2].
Os reconhecimentos militares do
terreno, normalmente a cargo dos engenheiros pertencentes ao Real Corpo de
Engenheiros do Exército nunca deixaram de se fazer, mas a campanha iniciada na
década de 40 do século XIX prosseguiu por toda a década de 50 e para além dela,
havendo relatórios até finais dos anos 70. Eles permitiram um conhecimento mais
profundo de Trás-os-Montes e de outras províncias, em especial das terras mais
distantes e menos visitadas. Muitos dos trabalhos foram aproveitados para a
elaboração da Carta Geográfica de Portugal publicada em 1865, na escala
1/500.000, primeira carta topográfica do território português, em toda a sua
extensão. Ao mesmo tempo, e com início em 1852 elaborava-se a Carta Corográfica
(Carta Geral do Reino) na escala 1/100.000. As suas 37 folhas foram publicadas
entre 1862 e 1904. Ambas as Cartas tiveram o general engenheiro Filipe Folque
como principal responsável e impulsionador, em especial no desempenho das
funções de Director Geral dos Trabalhos Geodésicos e Cartográficos do Reino,
entre 1844 e 1871.
Nesta época, em pleno século XIX,
o Exército tinha responsabilidades muito abrangentes, tanto no que respeitava
ao conhecimento do território como das suas populações e riquezas. Isto
justifica que, depois de um longo período de intensos e prolongados conflitos em que Portugal esteve
envolvido na primeira metade do século, o Exército tivesse necessidade de
proceder a um profundo reconhecimento territorial, o que incluiu, em 1860, um
recenseamento populacional, que antecedeu, em quatro anos, o que seria feito
pela administração pública em 1864, conhecido como o primeiro recenseamento
sistemático da população portuguesa.
A verdade é que o Exército fez
esse trabalho de campo em 1860, do qual elaborou os respectivos “Mapas
Estatísticos”, segundo um modelo único, e com informações sobre a população, os
edifícios, as subsistências, os transportes e as profissões. Relativamente a
Lagoaça existe um “Mapa estatístico da Paróquia de Lagoaça, concelho de Freixo,
distrito administrativo de Bragança”[3]. A
povoação tinha 340 fogos, sendo a sua população constituída por 685 homens e
740 mulheres, num total de 1425. Os principais recursos eram constituídos por
(mencionados segundo a ordem do mapa) 5.000 alqueires de trigo e 7.000 de
centeio, 3.000 moios de batata, 400 almudes de vinho e outros 400 de azeite.
Quanto a cabeças de gado havia 190 vacum, 3.700 lanígero, 700 cabrum e 200
suíno. No que respeita a águas, havia três fontes públicas e em relação a
transportes, contavam-se 200 bestas de carga, 40 carros de bois e um barco de
passagem, que podia transportar 12 pessoas. A povoação estava bem servida de
profissões, pois havia cinco alfaiates, seis sapateiros, um chapeleiro, cinco
carpinteiros, dois ferreiros e três ferradores.
Com os imensos trabalhos de
reconhecimento do território levados a efeito pelo Exército na década de 40 e
em toda a segunda metade do século XIX, Portugal tornou-se mais conhecido e bem
podemos recordar o que o general Neves Costa afirmava no seu relatório de 1841:
“Depois que, pelas precedentes diversas considerações, tivermos reconhecido em
geral alguns dos terrenos cuja topografia deve interessar à nossa defesa, e que
por isso hajam de entrar a formar parte da indicação do que temos de fazer,
passaremos então a examinar quais sejam as direcções de ataques mais ou menos
prováveis, e que possam ter lugar contra o nosso País; e por consequência,
quais sejam os terrenos que, nessas direcções, mais particularmente pareçam
interessar e cujo exame e conhecimento topográfico se torne por tal motivo
necessário, para esclarecer quaisquer dúvidas ou confirmar quaisquer opiniões
que acerca do futuro e definitivo Plano de Defesa do Reino possam suscitar-se a
respeito dos sobreditos terrenos cuja indicação satisfará igualmente ao fim
especial do trabalho de que fomos encarregados”[4].
Lisboa, Março de 2011
in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de
Ciência e Cultura (2011)
O autor
Aniceto Afonso - Coronel de
Artilharia na situação de reforma, nasceu em Vinhais. Membro da
Comissão Portuguesa de História Militar e investigador do Instituto de História
Contemporânea /Universidade Nova de Lisboa. Antigo director do
Arquivo Histórico Militar. Mestre em História Contemporânea
Portuguesa. Autor de: Portugal
e a Grande Guerra, 2010 (1ª ed., 2003); Anos
da Guerra Colonial, 2009; e Guerra
Colonial - Angola, Guiné, Moçambique, 1997-1998 (todos com Carlos de Matos
Gomes); O Meu Avô Africano, 2009; Portugal e a Grande Guerra, 1914-1918, 2006;
História de uma conspiração. Sinel de Cordes e o 28 de Maio, 2001; e Diário da Liberdade, 1995. Colaborou na História de Portugal, 1993; e na História Contemporânea de Portugal, 1986
(ambas dirigidas por João
Medina ).
(Em colaboração com o coronel Carlos de Matos Gomes) |
[1] As
distâncias referidas no relatório são medidas a pé (as chamadas horas de
marcha), embora fosse habitual as equipas de reconhecimento deslocarem-se a
cavalo. O modelo de informação é comum a outros relatórios de reconhecimento
militar.
[2] Belchior
José Garcês Sobral, Reconhecimento do
itinerário de Mesão Frio a Freixo de Espada à Cinta, 1844 (AHM, cota 3/1/18/7).
[3] Ver o
original no AHM, cota 3/1/70/44.
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