quarta-feira, 27 de julho de 2011

ATerra de Duas Línguas

Como o prometido é devido, aqui deixamos a intervenção do Professor Adriano Moreira aquando do lançamento da antologia A Terra de Duas Línguas.




Adriano Moreira
A publicação deste livro – A Terra de Duas Línguas – verifica-se numa data em que o tema dos regionalismos, quando o processo da unidade europeia sofre desafios severos, assume a maior das importâncias. Começarei por referir o que me parece serem os elementos identificadores da circunstância em que nos encontramos na Europa, para ajudar a salientar o significado da iniciativa que nos reúne nesta nossa Casa de Trás-os-Montes, lembrando desde já que o processo regionalista europeu atinge por vezes a unidade dos países, como acontece em Espanha, na Bélgica, na Inglaterra, mesmo na França, e assim por diante.

A circulação descontrolada das populações, fugindo de péssimas condições de vida, em busca de acolhimento em sociedades frequentemente mais atraentes pela imagem do que pela realidade, aconselha a repensar o pluralismo que subitamente desafia patrimónios imateriais que pareciam consolidados. Não se trata das minorias tradicionais, de que o direito internacional se ocupou com pouca eficácia em relação à fixação de fronteiras em regra criadas pela guerra, e de que a Europa está amargamente recordada. As novas migrações, muito condicionadas pelos mercados de trabalho, falhas de amparo jurídico com uma frequência inquietante, estão a ser abrangidas por uma doutrinação que muitas vezes confunde o multiculturalismo deste século com o cosmopolitismo de outras épocas. As actuais minorias precisam sobretudo de ser olhadas com um critério, ainda assim revisitado, de pluralismo. Isto porque os migrantes, sobretudo depois do processo da descolonização, possuem uma nacionalidade de origem, e por isso não é sempre e seguramente a integração na cidadania dos países de destino que necessariamente será procurada com convicção. Não são apenas as antigas metrópoles colonizadoras que se preocupam com as diásporas respectivas, dedicando-lhe responsabilidades ministeriais e instâncias de acompanhamento nos lugares do destino. A Inglaterra, a França, a Espanha, e Portugal, designadamente, praticam essa política de manutenção dos laços dos emigrantes e dos seus descendentes com as origens nacionais e familiares. Esta questão tem exigido atenção especial, e legislação cuidada, designadamente da Espanha que tem a especificidade das praças do Norte de África, o que não simplifica a distinção, por vezes culturalmente difícil de efectuar, entre emigrantes que procuram circular com a sua nacionalidade espanhola bem estabelecida, e os emigrantes que a não possuem, embora os laços culturais, incluindo a religião, estabeleçam naturais solidariedades. Ainda quando tais solidariedades não existem, a identificação social pode tender para não distinguir entre eles na vida de uma sociedade civil inquieta com o multiculturalismo crescente. Quando o clima de confronto, alimentado pela memória das guerras de colonização, mesmo que a independência possa estar consolidada, é agravado pelas respostas agressivas do terrorismo local ou internacional, a vida habitual, nos locais de destino, não tende para distinguir entre cidadãos e simples emigrantes, agravando todas as disfunções. Nos dias actuais são os muçulmanos os que mais frequentemente são envolvidos por estas inquietantes situações, que sobretudo os Estados que tiveram o poder colonial nessas áreas, onde de regra são originadas as migrações, enfrentam com dificuldades crescentes no seu território, tal como animam derivas dos confrontos para os territórios vizinhos, quando a acção agressiva se organiza em cadeia. Na América do Sul, a questão tornou-se premente em muitos dos países, quer porque o sentimento de fraternidade hispânica tem variações no que respeita às migrações recíprocas, quer porque os nativos que foram submetidos cresceram em capacidade de revisitar o passado e exigir um futuro específico. Revisitar a problemática do pluralismo das populações passou a ser uma das urgências mais desafiantes dos nossos tempos, porque o estatuto tradicional das minorias, que ganhara alguma estabilidade na Europa do século passado, tem agora novas componentes que mais respondem a excepções do que aos normativos legais elaborados para tempos que não regressam. Os regionalismos que se multiplicam, e tendem para institucionalizar-se em várias latitudes, designadamente para falar com voz própria nas organizações internacionais, vão exigir nova doutrina, nova legislação, e novas atitudes recíprocas, de povos que tendem para serem uma soma de comunidades exigentes de especificidade reconhecida. Fazer coexistir a igualdade de direitos com a protecção e reconhecimento das diferenças, vai ser uma exigência crescente à medida que as definições políticas regionais se multipliquem.
Ernesto Rodrigues

Acontece que existe uma outra categoria de regionalismo, que, ao contrário de dividir a unidade nacional, reforça as raízes da comunidade nacional pelo culto das virtudes cívicas que são as traves mestras do património imaterial das nacionalidades. Temos, os transmontanos, a certeza de que o povo das suas terras, que sempre foram do Reino, é uma expressão lídima deste regionalismo. A tarefa a que se dedicaram Ernesto Rodrigues e Amadeu Ferreira, fazendo coincidir a publicação com o XXI Encontro da Associação das Universidades de Língua Portuguesa, realizado em Bragança neste ano de sacrifícios de 2011, já por si uma demonstração da sólida articulação do nosso particularismo com o universalismo que a congregação das Universidades representa. E que as Universidades tenham enquadrado a manifestação de identidade transmontana, parece-me auspicioso anúncio de que a maneira portuguesa de estar no mundo, tão fortemente expressa pelos transmontanos, é uma realidade que ultrapassa a evolução das soberanias, a multiplicação dessas soberanias, todas com as suas especificidades culturais, mas todas reconhecendo a importância, não desvalorizada pela globalização, do amor às pátrias pequenas em que cada uma dessas soberanias é interiormente rica. Por isso esta primeira iniciativa editorial da Academia de Letras de Trás-os-Montes ficará como um notável serviço prestado à lusofonia que une os países da CPLP, todos marítimos, todos lutando pelo crescimento sustentado, todos salvaguardando a sua identidade, mas cada uma solidamente estruturada na unidade de uma língua ela própria mestiça de valores recebidos de todas e cada uma das áreas culturais por onde passaram a colonização, a evangelização, e o comércio. Quando passamos em revista os nomes que o livro das duas línguas comemora, ficamos deslumbrados com o amor à pátria pequena que as lonjuras da emigração não diminuiu, com a fidelidade à maneira portuguesa de estar no mundo que os encontros étnicos e culturais não afectaram, com a vontade cívica que os acidentes não enfraqueceram, com a fidelidade aos valores que não foram abrangidos pelo relativismo que enfraquece a Europa e o Ocidente. E também com o pluralismo interior, que tem a sua manifestação mais expressiva no capítulo do livro que definitivamente, pela intervenção da nossa jovem Academia, consagra a língua mirandesa, com maior significado do que a consagração legislativa.


Amadeu Ferreira

Por fim, de todos os recordados neste livro precioso permito-me destacar Adolfo Correia da Rocha, que viveu entre 1907 e 1995, o qual ficou na história com o nome glorioso de Miguel Torga, e nasceu em São Martinho de Anta (Sabrosa, Vila Real), um dos que lutaram contra a estreiteza conservadora da condição pobre em que ele também nasceu. Foi um combatente contra a estratificada sociedade civil. Por isso recusou a via do Seminário, que era uma porta para a ascensão social por cominhos codificados, logo em 1918, preferindo a emigração para o Brasil (1920-1925), trabalhando na dura agricultura do café nas hoje fascinantes Minas Gerais, vindo dali para a gloriosa Universidade de Coimbra onde se formou em medicina. Claro que a poesia foi a sua primeira inspiração, mas o importante para a memória do tempo dos portugueses dessa época, depois de praticar a arte médica, aprendida na Universidade, na sua terra de origem, está no que escreveu com o pseudónimo de Miguel Torga, reconhecido resistente ao chão duro do seu país como a planta de que recolhia o nome. Permito-me salientar, entre esses escritos, os Contos da Montanha (1941), em que as condições deste Nordeste sacrificado eram retratadas, que, embora perseguido pela censura e pela polícia, não o impediram de escrever os Novos Contos da Montanha (1941), queixando-se de que “ser escritor em Portugal é como estar dentro de um túmulo a garatujar na tampa”. Foi ele quem escreveu em Cântico do Homem (1950): “apetece cantar, mas ninguém canta / Apetece chorar, mas ninguém chora / Apetece gritar, mas ninguém grita / Apetece fugir, mas ninguém foge / Apetece morrer, mas ninguém morre / Apetece matar, mas ninguém mata / Oh! maldição do tempo em que vivemos”. Como que contraditoriamente, inquietou-se com o turbilhão em que desapareceu o império, morrendo inquieto com o novo destino europeu de Portugal, hoje marcado pela fronteira da pobreza que ultrapassou o Mediterrâneo e a todos aflige.

É um serviço patriótico o que mais uma vez o Reino Maravilhoso presta a um Portugal em severa crise, o facto de a nossa Academia de Letras Transmontana poder enviar a Torga, a mensagem de que há quem grite, para garantir a viabilidade respeitada da comunidade portuguesa sobre a terra, sobre o mar, na defesa da maneira portuguesa de estar no mundo.

Comunicação proferida, em Junho,  na Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro de Lisboa


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