quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Aspectos de Ontem - A Rainha Jinga e a escravatura



A escravatura e o tráfico de escravos foram práticas correntes em todos os tempos. Thomas More n’ A Utopia[1] não se lhes opõe. Da mesma forma a imortal Politica[2] de Aristóteles opina sobre a fundamentação da escravatura na natureza. E os negreiros portugueses não foram, na essência, diferentes dos demais de outras potências coloniais. A recente (2009) descoberta arqueológica em Lagos – as ossadas de 155 indivíduos africanos do tempo das descobertas – assim o indica[3]. E o relato de Eanes Gomes de Zurara, no Cap. XXIV da sua Crónica dos Descobrimentos e Conquista da Guiné (1451), também. Tema bem tratado por Isabel Castro Henriques em A Herança Africana em Portugal[4].
Robert Guest em África, Continente acorrentado, afirma: “A escravatura não foi introduzida em África pelos europeus. Os caçadores de escravos árabes chegaram antes dos portugueses, britânicos e franceses e os africanos eram escravizados num século ou noutro mesmo antes de chegarem os árabes “ (p.17).
Em Senhores do sol e do vento (1999), diz-nos José Bento Duarte: “Na época em que os Portugueses aportaram ao Zaire, a escravatura já se achava solidamente implantada entre a maioria dos povos africanos. Expedições de árabes internavam-se até aos mercados especializados dos Estados negros em busca de escravos e ouro. As caravanas iam sobretudo pelos homens destinados ao trabalho forçado” (p.25).
O tão afamado episódio da rainha angolana N’zinga – popularmente conhecida por rainha Jinga[5], não deixa dúvidas. A sua história recentemente romanceada por Manuel Ricardo Miranda em Ginga, Rainha de Angola (2008), foi, no entanto, tratada por historiadores conceituados como René Pélissier[6]. E por pessoas eternamente fascinadas por aquele país situado na orla ocidental do continente negro. É disso exemplo a recente publicação coordenada por Anacoreta Correia: Do Kunene a Cabinda[7].
Filha do Ngola Kiluanje, o poderoso senhor do Ndongo, Pátria dos povos ambundos, com capital na lendária Kabassa, Jinga tinha mais quatro irmãos: dois irmãos (Ngola Mbandi e outro cujo nome desconhecemos) e duas irmãs (Funji e Kambo).
Segundo algumas versões, Kiluanje faleceu nos alvores de 1617, assassinado por chefes do seu exército junto às margens do rio Lucala. Sucedeu-lhe Ngola Mbandi que abriu caminho para o poder do Ndongo através de um mar de sangue, liquidando quem lhe pudesse provocar estorvo. O que fez aos seus familiares próximos está documentado.
Jinga (ainda princesa) começa a notabilizar-se por volta do ano de 1622, no reinado do seu irmão. Chegada a Luanda nesse mesmo ano como embaixatriz do irmão Ngola Mbandi, ao tempo com cerca de 40 anos, esta bela e invulgar mulher exerceu um estranho fascínio sobre os Portugueses. O governador João Correia de Sousa dispensou-lhe uma recepção espaventosa. Orgulhosa e destemida, Jinga encarou as homenagens com naturalidade. Só aceitaria negociar em pé de igualdade. E isso ficou bem patente no início das sessões com o célebre episódio da cadeira. Quando a ainda princesa rodeada de escravas, coberta de gemas preciosas, penetrou com porte majestoso na sala reservada às conversações, observou que no lugar de honra apenas se encontrava uma cadeira de veludo reservada ao governador. Para ela, como era costume, estavam preparadas duas almofadas de veludo dourado sobre um tapete. Com um aceno de Jinga, uma das escravas ajoelhou-se com as mãos espalmadas no chão. O seu dorso serviu de assento da princesa. Perante a estupefacção da assistência europeia, manteve-se assim durante toda a sessão. Como a escrava assim se mantivesse acabada a mesma, Jinga foi interpolada. A princesa, contudo, retorquiu. Não se tratava de uma distracção. A serva ficava para trás, simplesmente, porque uma fidalga da sua estirpe não podia voltar a utilizar o mesmo assento!

In: Negócios de Valpaços, nº 373, 15 de Novembro de 2010   

Armando Palavras


[1] Rés-Editora, 2010, p. 97.
[2] Vega, 1998.
[3] National Geographic, Portugal, Maio, 2010.
[4] CTT, Correios de Portugal, 2009. São numerosos os livros que abordam o tema da escravatura [La traite des Noirs et ses acteurs africains de Tidiane Diakité, (Berg, Paris) trata da participação de “líderes” africanos na captura e venda de escravos; Peter Linebaugh e Marcus Rediker em A Hidra de muitas cabeças, tratam das revoltas atlânticas e James Walvin conta-nos Uma História da Escravatura. Le Clézio em Raga (2008), descreve-nos pormenores selváticos das revoltas de escravos das ilhas do Pacífico, nos Mares do Sul; na Balada do Níger (2007), Amílcar Correia conta-nos que na Mauritânia a escravatura (negra), apenas foi abolida em 1980! Contudo, o autor de Disposable People, New Slavery in the Global Economy (1999), Kevin Bales, afirma que esta aí continua a existir de forma velada]. Assim como os romances com ela como pano de fundo [A mulata Solidão de André Schwarz-Bart (Cavalo de Ferro, 2005), descreve-nos, na América Central do século XVIII, a aventura da mulher que se tornou lendária ao liderar uma revolta contra a escravatura. A Ilha debaixo do mar (Inapa, 2009) de Isabel Allende, narra a revolta de escravos, no século XVIII, no actual Haiti, outrora ilha de São Domingos, colonizada pelos franceses. Destaquem-se ainda Vozes do Vento de Maria Isabel Barata (Sextante Editora, 2009) e A Dama Negra da ilha dos escravos de Ana Cristina Silva (Presença, 2009).]. Para além das narrativas romanceadas, citem-se, por exemplo, livros como “Notas de História da África Ocidental, ISCP, Universidade Técnica de Lisboa, 1998 (José Manuel Vitorino; Maria da Cruz e Maria de Lucena); ou “A Última Oportunidade do Homem” (Guimarães Editores, Lisboa, 1990) de Bertrand Russell (Cap. XII – Antagonismo Racial). Para a História da África Portuguesa, concretamente de Angola, além de René Pélissier, citado acima, pode consultar-se, por exemplo, Descrição Histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola, Junta de Investigação do Ultramar, Lisboa, 1965, Vol II, do Pe. João António de Montecúccolo Cavazzi.
[5] Abordado ligeiramente por Jonuel Gonçalves, África 21, nº 30.
[6] As Campanhas Coloniais de Portugal (ed. Estampa, 2006) e História de Angola – coadjuvado por Douglas Wheeler – (Tinta da China, 2009)
[7] Pangeia/Chá de Caxinde (2009).

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