A natureza humana tem tanto de bom como de mau. Tanto de belo como de horrível. Quanto ao horrível não será demais lembrar os aspectos de violência de extermínio de má memória da época moderna [Arménia (1915), Ucrânia (1932/1933), Alemanha/Holocausto (1941/1945), Cambodja (1975/1979), Ruanda (1994), Bósnia (1992/1995)], ou as guerras fratricidas como as do Darfur, Congo, Argélia, Serra Leoa, Nigéria, Somália, etc (cf. Bernard Bruneteau, O Século dos Genocídios, Piaget, 2008). Já no que diz respeito ao belo, caracteriza-se muitas vezes por episódios sublimes, de solidariedade para com o próximo, o seu irmão da sua espécie. Ou mesmo para com indivíduos de outras espécies [os anjos de Leakey e o movimento da faixa verde[1]]. É a humanidade em pleno.
O episódio que abaixo se transcreve, descrito pelo professor Adriano Moreira (A Espuma do Tempo/Memórias do Tempo de Vésperas, Almedina, 2009) revela-nos, em todas as suas dimensões, o aspecto sublime da alma humana.
Estávamos no ano longínquo de 1961. Altura em que o crescimento das economias de Angola e Moçambique, assim como o dos contingentes migratórios, era notório, como explica Cláudia Castelo em Passagens por África/O Povoamento de Angola e Moçambique com Naturais da Metrópole -1920/1974 (ed. Afrontamento, 2007). Aliás como na metrópole cuja economia (PIB) neste período cresceu a uma taxa média de 6,4% ao ano, superior em 2% à taxa de crescimento média da CEE, como é reconhecido pelo Eng.º João Paulo Castelo Branco (cf. José Paulo Rodrigues, Salazar, Memórias para um perfil, Gráfica Europam, 2001) e por numerosos os historiadores da área económica[2].
Mueda (Moçambique) e a Baixa do Cassange (Angola), foram o prelúdio para o assalto à Casa de Reclusão Militar, ao quartel da PSP, e à Emissora, em Luanda, a 4 de Fevereiro e à sublevação no Norte de Angola entre 15 e 21 de Março (cf. José Eduardo Agualusa, A Estação das Chuvas, Dom Quixote, 1997; René Pélisser, História de Angola, Tinta da China, 2009).
Estes acontecimentos coincidiram com a visita que o então Ministro Adriano Moreira realizara às Províncias Ultramarinas, na época. Nas suas memórias o professor escreve: “Não desejo relatar minuciosamente, porque largamente relatada pela imprensa, a minha deslocação a Angola, martirizada pelos acontecimentos que, sobretudo no Congo, demonstraram a selvagem determinação das formações encarregadas de aterrorizar a população, mas algum apontamento é indispensável “ (p.193).
O Ministro foi a todos os lugares, falou com centenas de pessoas, legislou nas mais inesperadas condições. O então Jornal do Congo, crítico severo do regime e onde se destacou Sousa Costa, narrava acerca da viagem do Ministro a Carmona em carrinha de caixa aberta: “A manifestação teve um desfecho imprevisto: não foi o povo que se dirigiu ao ministro, foi o ministro que veio encharcar-se até aos ossos junto do povo…”.
Dos acontecimentos conduzidos com inimagináveis requintes de crueldade (p.196), Adriano Moreira apenas refere Mucaba, 31 de Janeiro, Damba e Nambuangongo [para além da zona de Carmona]. Foi Mucaba que deu origem a este escrito. A sua população tinha sido martirizada pelos ataques terroristas. Na noite de 29 para 30 de Abril, narra, “um grupo de verdadeiros heróis, dirigidos pelo Chefe de Posto Sena, escreveu uma página na História, numa acção seguida por grande parte da população angolana através das telefonias que captavam o posto emissor da povoação. Em 19 de Maio, em Luanda e perante uma multidão de jovens, condecorei-o com a Medalha de Ouro dos Serviços Distintos e Relevantes, sendo depois levado em triunfo, adoptado, naquela emoção colectiva, como inspirador”.
O desamparo em que muitas famílias ficaram, sobretudo crianças, provocou um movimento de solidariedade, do qual Adriano Moreira registou um caso. O Dr. Armelindo Lessa, seu amigo, sempre preocupado com as questões do racismo, pediu-lhe para lhe trazer uma criança abandonada, que desejaria adoptar. O professor deslocou-se ao Hospital Central de Luanda, onde os casos eram numerosos. Porém, um menino de cor, encontrado ferido entre os mortos de Mucaba, despertou-lhe especial atenção. Quando lhe faziam um carinho, relata, “levantava os bracitos e dizia – Viva Portugal”.
Não tinha identificação, os médicos atribuíram-lhe três anos de idade e mandou registá-lo com o nome de João de Mucaba, nascido a 1 de Dezembro, filho de desconhecidos. Foi adoptado como prometido. Hoje chama-se João de Mucaba Lessa, é técnico de saúde, casado, com filhos, tendo ele sido um filho exemplar.
É assim a alma humana. No meio do turbilhão por ela desencadeado, transcende-se. E num tom sublime, no limiar da vida e da morte, a chispa humana alcança o divino.
Nota: atente-se para outros dois episódios semelhantes. Um protagonizado por um alferes português, descrito por Eduardo Agualusa numa narrativa em Estações das Chuvas (pp.157-158); outro por um soldado português narrado por Afonso Eça de Queiroz Cabral em Tempo Flutuante (Difel, 2008, pp. 125-126).
in: Negócios de Valpaços, nº 362, 15 de Maio de 2010
Adriano Moreira – Luanda. A caminho do palácio do Governo, rodeado de
uma vasta mancha de negritude. in: A Espuma do tempo, memórias do tempo
de vésperas.
Armando Palavras
[1] Fundado pelo Dr. Kay Froebel consiste em preservar toda a faixa verde que outrora fazia parte daquilo que foi designado por “cortina de ferro”, após a 2ª Guerra Mundial.
[2] Na obra coordenada pelo Doutor Fernando Rosas (Portugal e o Estado Novo – 1930/1960 (Lisboa, Presença, 1992), Nunes e Brito documentam o crescimento económico num período de duas décadas (de 1953 a 1973). Afiançam (pp. 335-336) que neste período o produto interno de Portugal cresceu a uma média de 6,3% ao ano, a um ritmo sempre crescente (4,7% em 1953-58; 6,1% em 1959-64; 6,3% em 1965-67; 8% em 1968-73). Superior ao dos Estados Unidos da América, Inglaterra e França. E sobre este período o historiador António José Saraiva escreveu um artigo no jornal Expresso (22-4-89). Que o Doutor Pulido Valente nos seus ensaios de Politica e História (Altheia, 2010) considera uma sabujice. Sobre outros aspectos, Hipólito de la Torre Gomez (O Estado Novo de Salazar, Texto, 2010) escreve: “ Após quarenta anos de crise, o liberalismo português foi definitivamente substituído por um modelo político, híbrido em termos formais mas efectivamente antidemocrático, que embora fazendo parte da vaga histórica do fascismo, mostrava também importantes diferenças em relação às ditaduras dessa natureza” (p. 25).
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