Os vagões tristes transportam-me para este lugar.
É desta forma que inicia, em iídiche, o testemunho (um dos últimos) impressionante de indispensável leitura, de Chil Rajchman, que conseguiu sobreviver a Treblinka, um dos campos nazis de extermínio de Judeus (Sou o último Judeu, Teorema, 2009).
Walter Benjamim não teve a mesma sorte. Morreu aos 48 anos, em Portbou, na província de Girona, depois de acossado pelo avanço dos nazis. Não conseguiria chegar a Portugal, depois de atravessar os Pirenéus a pé. Ainda hoje os pormenores do que aconteceu não são claros. Hannah Arendt (Homens em tempos sombrios, Relógio d’Àgua, 1991), contudo, acredita que se tenha suicidado porque não havia ninguém mais isolado do que Benjamim, ninguém tão absolutamente só. O trágico deste episódio é que um dia antes Benjamim teria passado a fronteira sem dificuldade. Só naquele dia era possível a catástrofe, continua a pensadora.
Como no conto de Borges, O Milagre Secreto (Ficções, Teorema, 2009), Jaromir Hladik foi preso. Levaram-no para um quartel asséptico e branco, na margem oposta do Moldau. Não conseguiu rebater nem uma só das acusações da Gestapo, foi condenado à morte porque o seu sangue era judeu.
Na sua autobiografia, Mein Kampf, Hitler descrevia como de repente tinha percebido que os judeus eram responsáveis pelos problemas da Alemanha. Qualquer acto duvidoso, qualquer tipo de grosseria na vida pública estava relacionada com os Judeus, escrevia o carniceiro. Ao espetar uma faca [continuava o monstro] a esta espécie de abcesso descobre-se imediatamente, como uma larva num corpo putrefacto, um judeuzinho que muitas vezes cegava pela luz súbita…[1]
Primo Levi, no seu extraordinário testemunho (Se Isto é um Homem, Teorema, 2008) conta-nos como reuniu coragem para querer sobreviver a Auschwitz, recordando-se do Canto de Ulisses na Divina Comédia de Dante. Só através da arte Levi foi capaz de querer sobreviver ao Inferno! [Já Aleksander Wat em My Century, reconhece que conseguia suportar a Prisão de Lubyanka de Estaline, em Moscovo, quando, numa manhã do início da Primavera, ouviu, à distância, um fragmento da Paixão Segundo São Mateus, de Bach].
Luís Sepúlveda (As Rosas de Atacama, 2000) fala-nos da visita que fez ao campo de concentração de Bergen Belsen, na Alemanha. E no meio do silêncio atroz percorreu as valas comuns em busca de vestígios da sepultura de Anne Frank. Só que, à morte física, diz-nos Sepúlveda, os verdugos juntaram uma segunda morte: a do esquecimento e a do anonimato. Em Bergen Belsen, continua o escritor chileno, o peso da infâmia oprime. E muito próximo do lugar onde se erguiam os infames fornos crematórios, na superfície de uma pedra áspera alguém gravou, com o auxílio de um prego ou uma faca, um apelo dramático: Eu estive aqui e ninguém contará a minha história.
É, pois preciso, para que o mesmo se não repita, usarmos a palavra como esconjuro contra o esquecimento.
Rob Riemen, Director fundador do Nexus Institute, na sua palestra A Cultura enquanto convite (em A Ideia da Europa, de George Steiner - 2005) lembra uma conferência organizada pela revista European Judaism (fundada em 1960), no ano de 1969, na cidade de Amesterdão. Nela George Steiner leu uma comunicação inesquecível. Segundo a conclusão de Steiner, a Europa suicidou-se, ao matar os seus judeus.
Na verdade, diz-nos Riemen, a destruição de seis milhões de judeus europeus, a destruição do mundo de Mahler, Alban Berg, Hofmannsthal, Broch, Kafka, Celan, Karl Kraus, Walter Benjamin – a lista é infindável – foi também a destruição de l’esprit européen, da ideia de Europa.
Para Steiner, culturalmente, a Europa do século XX retrocedeu até à Idade Média. Porque, como nota Dietrich Schwanitz em Cultura (Dom Quixote, 2004): A imaginação recusa-se a trazer diante os seus olhos o que entretanto se convencionou designar pelos termos shoah ou holocausto. Como, por exemplo, os vagões cheios de crianças judias, na estação de Austerlitz, para, como recorda o Prémio Nobel Elie Wiesel (Noite, Texto Editores, 2006) abastecer as câmaras de gás e o crematório. Nas palavras de Hannah Arendt (Responsabilidade e Juízo, Dom Quixote, 2007), monstruosidades que à partida ninguém teria julgado possíveis. Ou, lembrando Raymond Aron (Memórias, Guerra e Paz, 2007), as câmaras de gás, o assassinato industrial de seres humanos, não, confesso, não os imaginei e, como não os podia imaginar, não soube deles. Do mesmo modo se expressa Günter Grass, Prémio Nobel da Literatura (1999), em Escrever depois de Auschwitz (Dom Quixote, 2008): (…) por muito que a missão pedagógica dos Americanos nos obrigasse a ver aquelas imagens documentais a nós, que tínhamos dezassete, dezoito anos, tinha uma só resposta, dita e não dita, como consequência, mas de igual modo inabalável: Nunca os Alemães poderiam ter feito, jamais fizeram uma coisa destas [referindo-se claro está, a Treblinka, Sobibór e Auschwitz].
Em 1935, na Alemanha, cantava-se acerca de Dachau, o primeiro campo de concentração aberto a 20 de Março de 1933: Deus meu, faz-me mudo, mas não permitas que eu seja levado para Dachau (Público 2, 20-03-10, p. 2).
A esperança, porém, nunca abandonou estes deserdados da sorte. O Prémio Nobel da Medicina, o biólogo François Jacob, termina o seu extraordinário ensaio sobre a diversidade do mundo vivo, O Jogo dos Possíveis (Gradiva, 1985), com uma frase de Tristan Bernard quando foi preso pela Gestapo: O tempo do medo acabou. Agora começa o tempo da esperança.
in: Negócios de Valpaços, nº 359, 30 de Março de 2010
(in: Estrelas da Memória, 2005)
…dar-lhes-ei um nome eterno que não será extirpado [Isaías, 56-5]
Bíblia de Jerusalém
Armando Palavras
espectacular.
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