Na penúltima
semana de outubro, sobretudo as televisões, fartaram-se de falar de futebóis,
de políticos bizarros e dos concelhos mais pobres do país. E, imitando os
concelhos considerados mais pobres do país, incluem as regiões de Trás-os-Montes,
interior do Douro, Tâmega, Sousa, e Algarve.
Passei a vida
inteira a defender o boi do povo da minha aldeia, que era o símbolo da
população e também o orgulho dos lavradores, que o mantinham para cobrir
as vacas.
Cedo comecei a ir
às chegas e a relatar, para a imprensa regional, os ambientes que esses
bois públicos geravam, nesses dias de descanso e festa popular.
Recorro a este
símbolo para confessar que o papel do boi do povo me serviu de
inspiração humana, para construir o meu protótipo comunitário no seio das
populações a que pertenço. Comecei pelo jornalismo e, como quase todos os
jovens do meu terrunho, fui pastor desse animal doméstico, tão grato para com
os lavradores, não só pela função reprodutora, para quem vive da comercialização
da vitela e, ainda, pela representação de todos os aldeões que o alimentavam, o
pastoreavam e lhe proporcionavam as vitórias e/ou derrotas com os homófonos
vizinhos.
Com este intróito
pretendo dizer que sempre fui bairrista moderado. Como no desporto. Nunca tive
propensão para o futebol. Mas fui convidado pelo presidente da Câmara de
Chaves, Agostinho Pizarro, a formar, na época de 1972/1973, a direção do
Desportivo; e esse clube, pela 1ª vez na vida, subiu para a 2ª divisão, onde
agora está. Sou autor da letra do hino desse clube. Em 1986/1990 fui vereador
da Câmara de Guimarães e, nesses 4 anos, tive o pelouro do desporto, quando o
Chaves já estava na 1ª divisão. Nunca virei a cara ao lado, fosse a quem fosse,
por causa da política. Mas sempre defendi, nos quase 73 anos de jornalismo, a
igualdade social de direitos e deveres. Nunca fiz greve, nunca gostei de
extremos e cheguei à idade que tenho, com a consciência tranquila. Nunca gostei
de ouvir dizer, à minha frente, que Montalegre era pobre e um reino quase
desconhecido.
Quando já tinha regressado da guerra e me transferi para Chaves, constatei, no centro de Emprego que - afinal - Montalegre, Boticas, Valpaços e Ribeira de Pena, eram um mundo diferente daquele que tinha lido, no romance Terra Fria, de Ferreira de Castro, que por ali cirandou em 1934. A lisboeta Guimarães Editores escolheu esse romance para uma reedição especial comemorativa do cinquentenário da sua vida literária. Terra Fria foi o livro que adquiri em Luanda, capital de Angola, onde me abastecia de livros que cito nos meus Contos do tempo da Guerra. Polemizei com ele por tratar a Ermelinda, mulher do peliqueiro Leonardo que ela traiu.
Viver numa aldeia
da Terra Fria, naquele tempo, era uma vida amargurada, pobre, triste. «O
cavalo voltava ao passo lento de fadiga. As patas entravam fundo, na lama das
ruelas, refocilada por quantos porcos se criavam ali e constituíam riqueza de
quem havia de passar o ano a comer a sua carne, pão e batatas que outro manjar
não se cozinha nas aldeias de Barroso. Terra fria, onde não medrava árvore de
fruto, nem se colhia vinho. Tirante o centeio, a batata,os nabais e duas
couvezitas no quinchoso, o resto era uma pobreza. De sorte igual à de outras
aldeolas barrosãs, parecia, no inverno uma grande pocilga. Tudo se apresentava,
ameado negrusco, sujo, enlameado. Nem telha a sorrir, nem pincelada de cal, nem
planta ou janela florida. Terra para raiz só mais abaixo nas margens do rio
(Cávado). Ali, os casinhotos, sem quintal, prantavam-se uns juntos dos outros,
esburacados, velhos de séculos, só conhecendo renovação na palha que os
cobria...»
Na década de
1970/1980 travei contacto com o imortal escritor, através da Associação dos
Amigos de Ferreira de Castro, e parte da nossa correspondência foi tornada
pública, através do Noticias de Chaves, Voz de Chaves e Jornal
do Norte. Na altura trocámos correspondência literária. E cheguei a
propor-lhe que oferecesse à Biblioteca Pública da Câmara de Montalegre o
original do romance Terra Fria. E Ferreira de Castro respondeu-me a informar que já o tinha feito à Biblioteca de Sintra, oferecendo todo o espólio
literário. Que nunca alguém, fosse quem fosse, lhe tinha feito esse pedido, ou
outro espécime do género. Tê-lo-ia feito se o pedido fosse formalizado por
Montalegre antes dessa altura.
Trago hoje esta crónica ao diálogo com os meus habituais leitores de Barroso, para lhes confessar que fiquei triste com a leviandade com que alguns órgãos de informação, mormente televisivos, espalharam aos quatro ventos, como sendo os concelhos do norte os mais pobres do país. Obviamente os quatro ou cinco concelhos que citaram não são ricos. E cito a página quatro do «pórtico» de Terra Fria, do romancista, que Padornelos, Padroso e Cambezes, ao tempo em que ele veio cá para enquadrar, em 1934, se era inverno e só viu telhados de colmo, era normal. Se hoje lá voltasse, nem os porcos refocilavam na calceta das ruelas, nem os telhados eram cobertos de colmo. O colmo era feio quando velho porque, se fosse substituído de X em X anos, não era mais quente, e muito mais barato do que a telha, que hoje está a ser substituída pela sanduíche. E, de sujidade, dão mais nas vistas as lixeiras urbanas do que o feno, a palha, as batatas ou cebolas que são produtos que os animais consomem, aqui ou ali. Não devemos aceitar tudo o que se diz da nossa comunidade, da nossa personalidade e da nossa liberdade cívica, social e moral.
Barroso da Fonte




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