JORGE LAGE
No jornal anterior abordaram-se
aspectos da vida de Camões, desde a paternidade, nascimento em Nantes (Vilar de
Nantes/Chaves), estadia em Coimbra (depois Ceuta), a prisão na cadeia do Tronco
(Lisboa) e a pena comutada para servir como soldado, embarcando para o Oriente
em 1553 e por lá penou até embarcar para Moçambique, onde o encontrou Diogo
Couto (1567).
Lá vivia na completa pobreza, com o criado Jau, que trouxe de
Java. Sem dinheiro para regressar, trabalha na finalização d’«Os Lusíadas» e
compõe o «Parnaso» (esta obra roubaram-lha
e perdeu-se). A leitura da obra «Luís de Camões», de António José Saraiva (AJS
– ed. Gradiva), para divulgar o pensamento camoniano no «V Centenário»
enriqueceu-nos.
AJS fá-lo com mestria e um grande fôlego crítico bem
documentado, parte do petrarquismo para um romantismo mais sensorial. Note-se que
grandes homens das artes e letras, passam, geralmente, por imensas dificuldades
materiais ou sentimentais. Por exemplo, Cervantes e Camões, e até Pessoa, se
dispusessem de bens para uma vida de abundância não se tornariam tão imortais. Curioso
é que Camões tem um impulso sentimental bem português, partindo de amor
petrarquiano, cria a sua Vénus, não tanto do Olimpo, mais de Coimbra, de Lisboa
e de Chaves/Monte Rey (A Biolante). Até, quando está em Macau, há uma bela
chinesa Di Na Men (Dinamen) que o inspira e o deixa destroçado com a sua perda
no naufrágio. A criação da Ilha dos Amores é esse pairar (ou o descer à terra e
ser-se de carne e osso) acima do amor platónico, precisamos da parte animal
(que todos somos), até para perpetuarmos a nossa parte biológica. Os que somos
capazes de olhar para o cume da montanha da vida, rejeitamos as luras nauseabundas
da extinção da espécie. Nesta ideia pode estar a explicação de uma certa
esquerda antidemocrática (democratas são os que aceitam as diferentes ideias de
outros) que quis apagar Camões no seu V Centenário. Mas, países como a China
(ZHANG n.º 6922) ou a França o celebraram. Voltando ao livro, «Luís de Camões»,
parte da tese que o amor mata o amor, ou seja, entra no realismo «puro da vida»
e caminha até ao amor terrestre e humano. Tão bela pode ser a Vénus divinizada
como a Vénus de carne e osso. E aí estará, em parte, o que nos distingue dos
demais animais. Uma fronteira (ou equilíbrio) entre o «contentamento» e o
descontentamento: «Erros meus, má Fortuna, Amor ardente// em minha perdição
se conjuraram.// Os erros e a Fortuna sobejaram,// que para mim bastava o Amor
somente» (soneto).
O sabermos dizer sim ou não, neste desconcerto do mundo. Sobre a Índia em que
viveu, uns 15 anos, diz que «é mãe de vilões ruins e madrasta de homens
honrados». Curioso é verificarmos que se hoje fosse vivo poderia dizer,
assertivamente, o mesmo de Portugal. Quase todos temos a nossa Babilónia que
nos faz voar no desejo para Sião, ou seja, a verdade bíblica (Salmo 136/137).
Sobre os feitos dos Portugueses, cantados n’Os Lusíadas, Camões procura um
equilíbrio entre o mandar e o humanismo que se deve ter, como refere AJS na
contracapa do seu livro. O Velho do Restelo é o seu alter ego, contrapondo ao belicismo
cavaleiresco da nobreza o humanismo da civilização europeia (que hoje tanta «comichão»
faz aos movimentos antidemocráticos de esquerda): «E julgareis qual é mais
excelente// se ser do mundo rei, se desta gente». A leitura do livro «Luís
de Camões», de AJS, é de uma profundidade tal que revela bem a imensa cultura e
criatividade deste grande pensador e democrata. Se ler «Luís de Camões», de AJS
(ed. Gradiva), pegue num lápis e vá sublinhando o que achar de melhor ou uma
caneta e transcreva. Vale a pena uma leitura atenta. Como vale a pena espreitarmos
para a viagem de regresso a Portugal de Camões (chegou a Goa em Setembro de
1553 e os amigos conseguiram que embarcasse de regresso a Portugal, em 1568, na
Nau de Pedro Barreto, irmão do Vice-Rei Francisco Barreto). Na ilha de
Moçambique, o Feitor da Fortaleza, Pero Barreio, não deixou embarcar Camões
para Portugal, por este ter dívidas por adiantamentos. Diogo Couto encontra-o a
viver de amigos, na absoluta pobreza, angaria entre amigos roupa e comida para
Camões e consegue que em 1570 chegue a Lisboa. Depois de 17 anos de ausência, a
mãe, Ana de Sá, espera-o na Mouraria, um bairro pobre da Lisboa quinhentista.
Ali conhece o Padre Manuel Correia que o recomenda ao «revedor» do Santo
Ofício, o Dominicano Bartolomeu Ferreira, tendo Camões esclarecido todas as
dúvidas sobre «Os Lusíadas», obteve luz verde e publica a epopeia, a 20 de
Julho de 1572, por Alvará do rei Dom Sebastião. Foi-lhe atribuída a tensa anual
de 10.000 reis, a partir de 12 Fevereiro de 1572. Com a auréola de fama e em
grande pobreza, Camões faleceu a 10 de Junho de 1580, na mais completa pobreza,
e foi sepultado no dia seguinte, junto ao portal da Igreja de Sant’Ana, envolto
num lençol dado pela família do Conde de Vimioso, D. Manuel de Portugal. Neste
V Centenário do seu nascimento vivemos na maior vergonha com este «Herói
Nacional», que nasceu pobre em Trás-os-Montes, viveu pobre e morreu pobre,
embora tenha sido um dos quatro épicos mundiais de todos os tempos. O pecado
maior dele será laudar a nossa História e amar Portugal. As elites culturais,
sociais e ideológicas deste «Reino», no fundo, têm vergonha do génio por as
esmagar na sua pequenez e inventam medos de um Portugal quase milenar. Quem tem
medo dos nossos heróis (estejam ou não no Panteão) e do Portugal Democrático,
também tem medo da Democracia!
Aliás, os franceses cunharam a moeda de 200€,
que se reproduz, e os chineses celebram Camões, com quatro (1992, 1995, 1998 e
2020) traduções d’«Os Lusíadas» e os Sonetos (2014). Segundo a Prof.ª, Sofia
Minfen Zhang, da Univ. de Xangai, num trabalho junto do público leitor
sino-camoniófilo, «Os Lusíadas é um ‘hino à navegação’, um épico
grandioso da Era dos Descobrimentos e, simultaneamente uma criação daquela
época, ‘repleta do espírito humanista de desafiar o destino’».
(Bibl.ª:
Martins, José M. C., Camões e Chaves in Privilégios de Chaves – Colunas
– Camões – Castelo, Chaves: ed. G. C. Aquae Flaviae, 2019, p. 77-165; Sá, Renato, «Camões, o Poeta do “Renascimento” e a
Ilha de Goa onde viveu – Parte 1» in Rev. da Casa de Goa, II Série, n. 27,
Março/Abril de 2024, p. 31-36; Sá, Renato, «Camões, o Poeta do
“Renascimento” e a Ilha de Goa onde viveu – Parte 2» in Rev. da Casa de Goa, II
Série, n. 28, Maio/Junho de 2024, p. 26-31; Sá, Renato, «Camões, o Poeta
do “Renascimento” e a Ilha de Goa onde viveu – Parte 2» in Rev. da Casa de Goa,
II Série, n. 29, Julho/Agosto de 2024, p. 23-25; Saraiva, António J.,
Luís de Camões, ed. Gradiva, 2024); Zhang, Sofia M., «Camões na China:
Traduções e Estudos» in JTM, n.ª 6851, de 29JAN2024, p. 9; Zhang, Sofia
M., «Os Lusíadas vistos por leitores comuns chineses» in JTM, n.ª 6922, de 17MAI2024,
p. 9. Foto de cima, Luís de Camões, cortesia do JTM, n. 6922, com legenda em
chinês; foto a seguir moeda, de 200 € emitida pela França).
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