MONDIM CENTRO |
Por Maria da Graça
Antigamente cedo se reservava um toro de oliveira velha e um molho de vides enleado com vencelhos, para a noite de consoada. As mulheres iam à venda e arrecadavam mercearias. Os homens iam às tronchas do quintal, aos ovos do galinheiro, às pinhas dos pinheiros mansos, ao fruto das nogueiras a aos favos dos cortiços, carregados do mel nacarado que refletia a luz do sol. Depois o mundo transvestia-se de branco, enquanto uma surda inquietude nos beijava às escondidas.
casa do Ginho Cristina Matos |
Como deusas matriarcais as
mulheres planavam, de avental de chita e de colher de pau, por sobre tachos,
potes e panelas, quando o odor forte a canela e a bolinhos de bacalhau inundava
a casa cheia e suscitava apetites antecipados. Fervia a canja, a aletria e os
pontos de caramelo. Inchavam os sonhos, as filhoses e as rabanadas douradas.
Uma nuvem de fumo branco ascendia, como se fosse litúrgico incenso, do pote do
bacalhau, das batatas, da troncha e dos ovos a cozer. Entravam pela porta
dentro os tropas regressados dos quarteis, as mocinhas de servir que tinham
viajado com as suas gigas na Auto-Mondinense, os estudantes que iniciavam as
férias tão ansiadas. Parecia um bando de filhos pródigos regressados que vinham
beijar a mão do pai.
Antes que caísse a noite
visitavam-se os doentes, os presos da cadeia e os vizinhos desamparados, com
cestas de vime tapadas com panos de linho imaculado que exalavam odores
celestiais, trocavam-se miminhos com os amigos mais chegados e pagavam-se as
contas do ano com francos de entre-o-milho, travessas de aletria e rabanadas a
fumegar. E depois sim, lá estavam todos reunidos, os presentes, os ausentes,
que seriam alvo duma emotiva evocação e também aqueles que, por agora,
eram tão só uma estrelinha pequenina a piscar no ventre das futuras mães. Todos
à volta da mesa de carvalho carcomida pelo bicho da madeira e ornada com a mais
nobre das toalhas que a mãe guardava, religiosamente, na arca dos
bragais de linho. Bacalhau cozido com todos, polvo, ou até uma pescadinha
de Vigo. Rabanadas, aletria, mexidos, e uma terrina de sonhos a esbordar. Vinho
velho, vinho fino e a lareira chamava para os escanos aconchegados com gordas
mantas de trapos. Contos, lendas, adivinhas e partidas intermináveis do par e
do pernão ou do rapa dos judeus com pinhões contabilizados. Escancaravam-se as
portas da casa e a família abafada com samarras, capotes e xailes
entrelaçados rasgava as brumas do nevoeiro, a caminho da Missa do Galo. O
incenso inebriava, os sinos repenicavam, o coro exultava no "Glória a Deus
nas alturas" e todos beijocavam, demoradamente, aquele Menino
rechonchdo que dormitava na manjedoura dum presépio de
deslumbramento.
No regresso reocupavam-se
os escanos e bebiam-se cálices de vinho tratado, as crianças traziam as botas
cardadas, as socas e as chancas para junto do rubor da lareira e iam sonhar,
durante toda a noite, com as prendinhas do Menino Jesus que, apesar de singelas
e insignificantes, valiam muitíssimo mais que todos os tesouros do
universo.
Lá fora, naquela noite
gelada, misteriosa e santa, em que o reino de Deus e o reino dos homens se
aproximam tanto que até se conseguem tocar, explodiam luxuriantes as galáxias
siderais.
Luís Jales de Oliveira -Mondim de Basto
Sem comentários:
Enviar um comentário