quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Lá fora, naquela noite gelada...

MONDIM CENTRO
 

Por Maria da Graça

 

Antigamente cedo se reservava um toro de oliveira velha e um molho de vides enleado com vencelhos, para a noite de consoada. As mulheres iam à venda e arrecadavam mercearias. Os homens iam às tronchas do quintal, aos ovos do galinheiro, às pinhas dos pinheiros mansos, ao fruto das nogueiras a aos favos dos cortiços, carregados do mel nacarado que refletia a luz do sol. Depois o mundo transvestia-se de branco, enquanto uma surda inquietude nos beijava às escondidas.


casa do Ginho
Cristina Matos

Como deusas matriarcais as mulheres planavam, de avental de chita e de colher de pau, por sobre tachos, potes e panelas, quando o odor forte a canela e a bolinhos de bacalhau inundava a casa cheia e suscitava apetites antecipados. Fervia a canja, a aletria e os pontos de caramelo. Inchavam os sonhos, as filhoses e as rabanadas douradas. Uma nuvem de fumo branco ascendia, como se fosse litúrgico incenso, do pote do bacalhau, das batatas, da troncha e dos ovos a cozer. Entravam pela porta dentro os tropas regressados dos quarteis, as mocinhas de servir que tinham viajado com as suas gigas na Auto-Mondinense, os estudantes que iniciavam as férias tão ansiadas. Parecia um bando de filhos pródigos regressados que vinham beijar a mão do pai. 

Antes que caísse a noite visitavam-se os doentes, os presos da cadeia e os vizinhos desamparados, com cestas de vime tapadas com panos de linho imaculado que exalavam odores celestiais, trocavam-se miminhos com os amigos mais chegados e pagavam-se as contas do ano com francos de entre-o-milho, travessas de aletria e rabanadas a fumegar. E depois sim, lá estavam todos reunidos, os presentes, os ausentes, que seriam alvo duma emotiva  evocação e também aqueles que, por agora, eram tão só uma estrelinha pequenina a piscar no ventre das futuras mães. Todos à volta da mesa de carvalho carcomida pelo bicho da madeira e ornada com a mais nobre das toalhas que a mãe guardava, religiosamente, na arca dos bragais de linho. Bacalhau cozido com todos, polvo, ou até uma pescadinha de Vigo. Rabanadas, aletria, mexidos, e uma terrina de sonhos a esbordar. Vinho velho, vinho fino e a lareira chamava para os escanos aconchegados com gordas mantas de trapos. Contos, lendas, adivinhas e partidas intermináveis do par e do pernão ou do rapa dos judeus com pinhões contabilizados. Escancaravam-se as portas da casa  e a família abafada com samarras, capotes e xailes entrelaçados rasgava as brumas do nevoeiro, a caminho da Missa do Galo. O incenso inebriava, os sinos repenicavam, o coro exultava no "Glória a Deus nas alturas" e todos beijocavam, demoradamente, aquele Menino rechonchdo que dormitava na manjedoura dum presépio de deslumbramento. 

No regresso reocupavam-se os escanos e bebiam-se cálices de vinho tratado, as crianças traziam as botas cardadas, as socas e as chancas para junto do rubor da lareira e iam sonhar, durante toda a noite, com as prendinhas do Menino Jesus que, apesar de singelas e insignificantes, valiam muitíssimo mais que todos os tesouros do universo. 

Lá fora, naquela noite gelada, misteriosa e santa, em que o reino de Deus e o reino dos homens se aproximam tanto que até se conseguem tocar, explodiam luxuriantes as galáxias siderais.

 

Luís Jales de Oliveira -Mondim de Basto

 

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