Escrevo-vos
para vos dar nota que a livraria já reabriu. Relembro que a livraria
continua a funcionar apenas por marcação.
O próximo catálogo será publicado na próxima semana (no dia 28).
Entretanto, caso não tenham mais nada para fazer, convido-vos a ler o
artigo "O Ciclo dos Livros" que publiquei há cerca de um
ano.
Melhores cumprimentos,
Francisco Brito www.colofon.pt
colofon.pt@gmail.com | colofon@colofon.pt
+351 919 565 452
Francisco Pinto dos Santos Brito, ENI - NIF 238939103
Rua de Santo António nº 137 R/C.
4800-162 Guimarães.
Portugal
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O ciclo dos livros
“Contra a Amazon e outros ensaios sobre a humanidade dos livros”
(Quetzal, 2023) é uma interessante obra de Jorge Carrión em que, entre
outras coisas, é denunciada a ditadura do algoritmo que comanda a mais
poderosa plataforma de venda de livros online. O autor admite usar
sites como a Amazon, Abebooks ou Iberlibro (todos propriedade de Bezos)
para as suas compras. Contudo, não sendo ingénuo, conhece os perigos do
algoritmo e a perda da capacidade de escolha que o leitor enfrenta ao
comprar nestas livrarias online onde quase não há lugar para os
livreiros…O alerta faz sentido e todos os leitores devem estar atentos
a esta elaborada armadilha.
Na mesma obra, há um capítulo intitulado “Alfarrabistas vs. Livrarias”
em que Carrión conversa com o escritor Luigi Amara sobre estes dois
mundos que aparentemente coexistem em paralelo, sendo que um (a
livraria) na longa duração alimenta inevitavelmente o outro (o
alfarrabista). Amara não esconde a sua paixão pelos alfarrabistas. Já
Carrión manifesta algumas reservas. Considera o autor que as livrarias
são “mais democráticas” que os alfarrabistas, que não lhe agrada a
ideia que os seus livros possam vir a ter uma segunda vida
(proporcionada pelo alfarrabismo) e, talvez por não ter sido educado na
“arte da bibliomania”, admite ter alguma dificuldade em simpatizar com
os luxos e com as “joias bibliográficas” existentes nas livrarias
antiquárias, ainda que reconheça que maior parte do alfarrábio é mais
barato do que os livros que por norma se encontram à venda nas livrarias
convencionais.
Esta aparente incompreensão de Jorge Cárrion leva-me a entrar na
conversa para tentar explicar uma parte do ciclo dos livros. Desde que
o livro impresso se massificou (e até antes desse período) há uma
relação entre editores, livreiros e livreiros antiquários ou
alfarrabistas. Os livros são editados, vendidos pelos editores ou
livreiros, comprados por leitores, colecionadores, investigadores ou
bibliófilos e, finda esta que é a primeira fase do seu ciclo, acabam
destruídos, esquecidos, doados (a bibliotecas ou particulares) ou
vendidos a alfarrabistas. A livraria alfarrabista é um dos lugares onde
começa a segunda fase do ciclo dos livros. Ali os livros ganham uma
outra vida e, não raras vezes já velhos, chegam a novos leitores. Esta
segunda vida tem um processo próprio e caminhos distintos. Numa
livraria onde se vendem livros antigos e usados vamos encontrar não só
obras que podem ser vendidas a um preço muito acessível (e por isso
muito democrático), mas também as “joias” a que Carrión se refere e
que, de facto, podem atingir preços que não estão ao alcance do comum
dos mortais. Mas mesmo no mais exclusivo livreiro antiquário será quase
sempre possível encontrar um desses cobiçados diamantes bibliográficos
em ameno convívio com obras de menor valor (mas de igual interesse).
Quem conhecer ou visitar os sites dos grandes livreiros ingleses,
franceses e americanos poderá facilmente confirmar esta afirmação. Mas
qual o motivo pelo qual isto acontece? Porque convive o exclusivo com o
popular? Não consigo responder de forma cabal a esta questão, mas posso
avançar com três explicações:
- Alguns diamantes estão incrustados em bijuteria: isto é, há livros
raros que se encontram em bibliotecas com livros comuns e o livreiro é
obrigado a comprar todos os livros, colocando alguns na sua loja e
vendendo a baixo preço os mais comuns (a clientes e a outros colegas, o
que permite uma grande circulação de livros baratos).
- A “síndrome da oportunidade”: uma doença que se manifesta em maior ou
menor grau em todos os alfarrabistas e que consiste em não resistir a
uma boa compra, ainda que já se tenha um stock de dezenas ou centenas
de milhares de livros. Esta doença leva a que se disponibilizem aos
clientes uma enorme quantidade de livros baratos (e que talvez se peneirem
algumas raridades). Por vezes é a venda de uma raridade que permite ao
livreiro ter a liquidez suficiente para não deixar escapar (mais uma)
boa oportunidade.
- Afinidades electivas: os livros relacionam-se e convivem de formas
aparentemente perigosas, caóticas e insondáveis para quem está de fora
do processo que esteve na génese de uma determinada escolha. Por vezes
a desordem parece imperar mesmo para quem colocou dois livros lado a
lado, dando lugar ao mistério… Uma marca de posse, o tipo de papel, a
naturalidade de um autor, o simples acaso, uma remota ligação temática
ou outros aspectos (mais ou menos evidentes) podem explicar o motivo
pelo qual encontramos na estante de um livreiro obras com um valor
completamente díspar.
Portanto a “joia bibliográfica”, sendo por si só um símbolo de
estatuto, gosto e exclusividade é, no grande plano, uma das principais
alavancas do mercado alfarrabista e a chave para que muitos outros
livros usados fiquem disponíveis a bom preço para o grande público. E é
assim que nos alfarrabistas se concretiza uma parte do ciclo dos livros
que, deste modo, vão ressuscitando (reencarnando em si próprios,
segundo alguns sábios) e dando vida aqueles que os procuram.
Carrión diz ainda que os alfarrabistas são lugares de morte: “São os
leitores desaparecidos, as heranças delapidadas, a pobreza, as casas
esvaziadas e cujas bibliotecas se vendem a peso, o saque (…). Nos
alfarrabistas estão, lado a lado, em cada volume todas as histórias
trágicas, genocidas, ditatoriais, dos últimos séculos”. Embora seja
possível completar esta afirmação (referindo as vendas cuidadas de
bibliotecas, as histórias felizes, a liberdade que proporcionaram aos
seus possuidores…) não a posso contrariar. Devo até acrescentar que,
por vezes, nos alfarrabistas estão livros que não devemos encontrar. A
este propósito recordo a visita que em tempos um senhor idoso fez à
minha livraria. Queria comprar um determinado volume de uma colecção
que há muitos anos procurava completar. Sem grande esperança em poder
ser útil acedi ao seu pedido e fui verificar. Por milagre, tinha
precisamente o número que lhe faltava! Custava apenas dois ou três
euros. O cliente pegou no livro. Olhou-o com calma e com uma expressão
que não fui capaz de decifrar. Disse-me que “ia pensar” e não o levou.
Na altura achei um absurdo. Mais tarde percebi que o senhor não deveria
nunca terminar aquela colecção. Era a busca por aquele volume em falta
que o fazia continuar a frequentar os alfarrabistas. E era isso que o
mantinha vivo.
Na conversa com Jorge Carrión, Luigi Amara afirma que um alfarrabista
pode ser um “refúgio, um ponto de referência” onde nos podemos por a
“salvo da esmagadora catarata de novidades (…)”. Acrescenta que “esses
livros empoeirados, carcomidos pelas traças, estão (…) carregados de
futuro”. Subscrevo as palavras de Amara. Num folheto picado pela traça,
na segunda vida de um velho livro, numa preciosidade bibliográfica ou
no próprio processo de busca por todas estas coisas existe uma
possibilidade de futuro. E esse futuro está nos alfarrabistas.
Imagem retirada de Emblematum Libellos (1534) de Alciato
Artigo publicado originalmente no Jornal de Guimarães
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