quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Carta do Abade de Baçal ao Padre Abel Varzim

                                     Abade de Baçal                                           Padre Abel Varzim

Há uns dias publicou-se neste espaço um artigo de Eduardo Jorge Madureira Lopes, saído no Diário do Minho. Tratava do padre Abel Varzim. Nele observámos um comentário feito pelo Coronel Jorge Golias, que também nos enviou esta carta original
“de difícil leitura e tem passagens com uma escrita pessoal nem sempre subordinada ao português de lei. Por isso o Prof. Doutor Telmo Verdelho fez esta interpretação (…), com todas as possíveis leituras…”:


 

Carta do Abade de Baçal ao Padre Abel Varzim

Mestre, Amigo, Irmão, Mártir,

Concordo absolutamente com a vossa carta, que guardo como relíquia veneranda, e sempre assim pensei, como se mostra no Preambulo dos Judeus, no vol. VII, p. 144 e 911 e[no] IX, pg 312, 424, 429 e várias outras. Sempre clamei contra os exibicionismos, teatralidades, preciosismos e paradas espalhafatosas ostentadoras de valimentos físicos à minga dos morais e mentais; contra a exploração do ingénuo sob pretexto religioso, civil ou político.

Mas há que contar com os factores étnicos. As paradas são de todos os tempos, até os romanos, em pleno poderio, sem ninguém que lhes fosse à mão, não dispensaram os famosos cortejos das honras do triunfo; os outros povos antigos e modernos fizeram e fazem o mesmo. São de todas as corporações sociais quer religiosas, quer civis ou militares; são do exército, da marinha, da aviação, da magistratura, da governança política, das Universidades, das Escolas e até as Academias, que tanto deviam estar acima destas frioleiras banais, as estimam com aperitivos de penduricalhos e respectiva indumentária.

É que a ideia, seja ela qual for, [não marcha?] sem lhe engendrarem uma mística própria creadora de uma atmosfera propícia à sua vista [vida], de contrário definha e morre. E, como as paradas são de primeiríssima para embasbacar papalvos… Todavia convém advertir que nihil est in intellectum quin prim [prius] fuerit in sensu.

Depois surge em volta da ideia a malta dos adesivos, dos que aderem; a turba multa dos aventureiros, pescadores de águas turvas sem mais preocupações do que saciar o egoísmo, a barriga, explorando o próximo sob todos os pretextos e feitios, donde o descrédito das instituições por mais ideais que sejam.

Na corporação sacerdotal há disto infelizmente e o caso torna-se mais revoltante  //2// à primeira vista, pelo mercadejamento da fé; mas se há o sacerdócio da magistratura, da imprensa, do magistério, da justiça, da governança pública, enfim o sacerdócio do diabo a quatro, não deverá medir-se tudo pela mesma bitola e correr a chicote a matulagem adesiva só atraída por intuitos egoístas?

Se tudo neste mundo se reduz a “comer e ser comido” como diz Campoamor ou a “busca pão” segundo o nosso Vieira; se o próprio Cristo, idealista como era e fundador de uma religião, reconheceu que devia viver do altar quem para o altar trabalha, e Moisés, e Mahomé, igualmente fundadores de credos religiosos, ensinaram o mesmo, e o mesmo provavelmente, disseram todos os mais colegas; se da militança, magistratura, professorado, etc., etc., vivem quantos laboram nestes campos, é lógico reconhecer igual direito, ou como deva dizer-se, a todas as corporações.

Certamente que o ideal seria não precisar desta coisa banal que é comer. Lá o diz a canção popular:

Toda a moça janota

Por mais janota que seja

Não devia / deixa de molhar

Dois, três pelos quando meja

 

Ó que corpo tão lindo!

Ó que palmito de cara!

Ó que beleza de anjo,

Se não comera, nem cagára.

 

Muitas vezes tenho dito ao clero e escrito que devia abandonar os preciosismos formatistas formalistas que dá com o divinais e não passam de frioleiras de parada vindas de outras religiões; que não devia ligar a questão religiosa à política, donde lhe vem o ódio dos partidos e as represálias sangrentas na mudança das instituições, porque o clero, habituado à instabilidade estabilitado (?)// estabilidade do dogma, anda cem anos atrasado e só abraça os novos princípios quando já assentes, donde a bordoada que levou dos constitucionais em 1834, por se ficar a suspirar pelos miguelistas; a que levou em 1910, quando já de cama e pucarinha / pucarinho com aqueles, resistiu à república, e a que há-de levar amanhã, quando venha outra coisa, e só não vê quem/que há-de vir, quem seja cego.

O ideal seria banir a ideia de pátria, de meu e teu, fecundíssimo viveiro das maiores calamidades memoradas na História, pois é nelas que assenta a função da estática clerizacea, a função //3// de mula de reforço bajulada pelos que triunfam logo convertidos de avançados em conservadores, para que pregueje a aceitação dos factos consumados, afim de lhe garantirem o socego giboiano da exploração dos vencidos; mas não vejo maneira de o realizar, porque este mundio é mais torto e inviezado que os cornos de um carneiro, tanto mais retorcidos quanto mais crescidos. De resto, as nacionalidades surgem a par dum credo religioso e caem quando este se esfrangalha. Já Horácio o advertiu.

Em face do exposto o melhor será vós os químicos arranjardes um gaz que esterilize as fêmeas ou um explosivo que estilhace toda esta borundanga, porque não tem concerto e o mal é sem remédio, pois a barbaridade iniqua do comer, fazendo sofrer os outros, ou a do ser comido, são inevitáveis. Mas, enquanto lá não chegais, intento/entendo que no momento só há três caminhos: o dos idealistas, que vêem as coisas como deviam ser, mas não metem em conta a diferença entre a teoria e a prática, donde o insucesso dos seus planos e o quixotismo das/de suas teorias; o dos materializados, que só vêem egoísmo interesseiro, donde os abomináveis e ascosos Sanchos Panças tipificados por Cervantes. O terceiro marcha entre estes dois caminhos e é o que dá algo de tolerável, embora incompleto neste maldito mundo de misérias, descalabros e injustiças revoltantes.

E, se tal como está, pois outro concerto não tem, o melhor modo de o passar é o ter sempre algo a fazer, algo a amar e algo a esperar, para os tristes que esperam na outra vida o reparo das injustiças desta, sempre algo lhes aproveita a crença de lenitivo principalmente se a lavarem/caiarem duns polvrilhos / polvilhos do  

No olvistes / olvides que es comedia nuestra vida

Y teatro de farza al / el mundo todo

 

quevedeano.

Mas, só agora reparo: queria escrever uma carta e saíu-me uma sermôa //4// em que fui parte/padre de mais, porém vós que sois Mestre, Amigo, Irmão e Mártir tomareis a coisa como da mão de quem vai, ficando apenas certo do muito que vos admira e estima o vosso admirador,

10-1-1930 / 1936                                    Pe. Francisco Manuel Alvez

                                                      Baçal

                                                       Bragança

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