Carta do Abade de Baçal
ao Padre Abel Varzim
Mestre, Amigo, Irmão, Mártir,
Concordo absolutamente com a vossa carta, que guardo como
relíquia veneranda, e sempre assim pensei, como se mostra no Preambulo dos
Judeus, no vol. VII, p. 144 e 911 e …[no] IX, pg 312,
424, 429 e várias outras. Sempre clamei contra os exibicionismos,
teatralidades, preciosismos e paradas espalhafatosas ostentadoras de valimentos
físicos à minga dos morais e mentais; contra a exploração do ingénuo sob
pretexto religioso, civil ou político.
Mas há que contar com os factores étnicos. As paradas são de
todos os tempos, até os romanos, em pleno poderio, sem ninguém que lhes fosse à
mão, não dispensaram os famosos cortejos das honras do triunfo; os outros povos
antigos e modernos fizeram e fazem o mesmo. São de todas as corporações sociais
quer religiosas, quer civis ou militares; são do exército, da marinha, da
aviação, da magistratura, da governança política, das Universidades, das
Escolas e até as Academias, que tanto deviam estar acima destas frioleiras
banais, as estimam com aperitivos de penduricalhos e respectiva indumentária.
É que a ideia, seja ela qual for, [não marcha?] sem lhe engendrarem uma
mística própria creadora de uma atmosfera propícia à sua vista [vida], de
contrário definha e morre. E, como as paradas são de primeiríssima para
embasbacar papalvos… Todavia convém advertir que nihil est in intellectum quin prim [prius] fuerit in sensu.
Depois surge em volta da ideia a malta dos adesivos, dos
que aderem; a turba multa dos aventureiros, pescadores de águas turvas sem mais
preocupações do que saciar o egoísmo, a barriga, explorando o próximo sob todos
os pretextos e feitios,
donde o descrédito das instituições por mais ideais que sejam.
Na corporação sacerdotal há disto infelizmente e o caso
torna-se mais revoltante //2// à
primeira vista, pelo mercadejamento da fé; mas se há o sacerdócio da
magistratura, da imprensa, do magistério, da justiça, da governança pública,
enfim o sacerdócio do diabo a quatro, não deverá medir-se tudo pela mesma
bitola e correr a chicote a matulagem adesiva só atraída por intuitos egoístas?
Se tudo neste mundo se reduz a “comer e ser comido” como diz Campoamor ou a “busca
pão” segundo o nosso Vieira; se o próprio Cristo, idealista como era e fundador
de uma religião,
reconheceu que devia viver do altar quem para o altar trabalha, e Moisés, e
Mahomé, igualmente fundadores de credos religiosos, ensinaram o mesmo, e o
mesmo provavelmente, disseram todos os mais colegas; se da militança,
magistratura, professorado, etc., etc., vivem quantos laboram nestes campos, é
lógico reconhecer igual direito, ou como deva dizer-se, a todas as corporações.
Certamente que o ideal seria não precisar desta coisa banal
que é comer. Lá o diz a canção popular:
Toda a moça janota
Por mais janota que seja
Não devia / deixa de molhar
Dois, três pelos quando meja
Ó que corpo tão lindo!
Ó que palmito de cara!
Ó que beleza de anjo,
Se não comera, nem cagára.
Muitas vezes tenho dito ao clero e escrito que devia
abandonar os preciosismos formatistas formalistas que dá com o divinais e não passam de
frioleiras de parada vindas de outras religiões; que não devia ligar a questão
religiosa à política, donde lhe vem o ódio dos partidos e as represálias
sangrentas na mudança das instituições, porque o clero, habituado à instabilidade estabilitado (?)// estabilidade do
dogma, anda cem anos atrasado e só abraça os novos princípios quando já
assentes, donde a bordoada que levou dos constitucionais em 1834, por se ficar
a suspirar pelos miguelistas; a que levou em 1910, quando já de cama e pucarinha / pucarinho com
aqueles, resistiu à república, e a que há-de levar amanhã, quando venha outra
coisa, e só não vê quem/que
há-de vir, quem seja cego.
O ideal seria banir a ideia de pátria, de meu e teu,
fecundíssimo viveiro das maiores calamidades memoradas
na História, pois é nelas que assenta a função da estática
clerizacea, a função //3// de mula de reforço bajulada pelos que
triunfam logo convertidos de avançados em conservadores, para que pregueje a aceitação dos factos consumados, afim de
lhe garantirem o socego giboiano da exploração dos vencidos; mas não vejo
maneira de o realizar, porque este mundio é mais torto e inviezado que os
cornos de um carneiro, tanto mais retorcidos quanto mais crescidos. De resto, as nacionalidades
surgem a par dum credo religioso e caem quando este se esfrangalha. Já Horácio
o advertiu.
Em face do exposto o melhor será vós os químicos arranjardes um
gaz que esterilize as fêmeas ou um explosivo que estilhace toda esta borundanga, porque não tem concerto e o mal é sem
remédio, pois a barbaridade iniqua do comer, fazendo sofrer os outros, ou a do
ser comido, são inevitáveis. Mas, enquanto lá não chegais, intento/entendo que no
momento só há três caminhos: o dos idealistas, que vêem as coisas como deviam
ser, mas não metem em conta a diferença entre a teoria e a prática, donde o
insucesso dos seus planos e o quixotismo das/de suas teorias; o dos materializados, que só
vêem egoísmo interesseiro, donde os abomináveis e ascosos Sanchos Panças
tipificados por Cervantes. O terceiro marcha entre estes dois caminhos e é o
que dá algo de tolerável, embora incompleto neste maldito mundo de misérias,
descalabros e injustiças revoltantes.
E, se tal como está, pois outro concerto não tem, o melhor
modo de o passar é o
ter sempre algo a fazer, algo a amar e algo a esperar, para os tristes que
esperam na outra vida o reparo das injustiças desta, sempre algo lhes aproveita
a crença de lenitivo principalmente se a lavarem/caiarem duns polvrilhos / polvilhos do
No olvistes /
olvides que es comedia nuestra vida
Y teatro de farza al
/ el mundo todo
quevedeano.
Mas, só agora reparo: queria escrever uma carta e saíu-me uma
sermôa //4// em que fui parte/padre
de mais, porém vós que sois Mestre, Amigo, Irmão e Mártir tomareis a coisa como
da mão de quem vai, ficando apenas certo do muito que vos admira e estima o
vosso admirador,
10-1-1930 / 1936 Pe.
Francisco Manuel Alvez
Baçal
Bragança
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