JORGE GOLIAS
Assim, o doente da cama
junto à parede todos os dias se levantava e contava para o outro o que dizia
ver através da janela, que dava para um jardim.
Bonito era ouvir este relato
num dia de festa em que no jardim lá em baixo se juntava muita gente com ar
festivo, junto de barraquinhas onde se vendia um pouco de tudo, sobretudo
farturas, bolas de algodão, gelados e bebidas frescas, que o calor já apertava
naquele dia de Verão.
O relato era minucioso e bom
de ouvir e de sentir os sons da festa da cidade naquele jardim de grandes e
frondosas árvores, com canteiros floridos e sombras generosas que as pessoas
fruíam nos bancos de madeira às ripas.
A área mais frequentada era
a que estava perto do coreto onde uma banda de música tocava trechos de músicas
populares ao som das quais alguns pares de adultos e de crianças dançavam
alegremente.
O doente da cama ao lado,
ouvia com muita atenção toda esta apresentação feita por alguém com muito amor
pelo próximo, deixando algumas vezes verter uma lágrima de emoção porque em
breves momentos sentia o pulsar da vida saudável que ele em dias melhores pôde
fruir.
Passado o Verão e chegado o
princípio do tempo frio, o doente da cama do lado da parede, ainda assim se
levantava e explicava ao amigo (porque, entretanto, assim se fizeram) que
também no Outono e no Inverno havia encantos, contando com sentimento o cair
das folhas, desnudando as árvores e pintando o chão de uma palete de cores que
dava ao ambiente um toque romântico e convidativo ao namoro. Então lá apareciam
alguns casais de namorados de mãos dadas, dando beijos furtivos, passeando, e
jurando amores eternos, inspirados. Mas o namoro não tem idade e também vinham
os casais de velhinhos fruindo a generosidade da natureza num fim de tarde
outonal.
Num dia de maior inspiração
o doente contador cantou um pouco das canções que a instalação sonora do jardim
ia passando e o doente ouvidor sorria e olhava agradecido o amigo tenor desta triste
e leda e circunstância.
Um dia, o doente da cama
junto à parede teve uma grave recaída, deixou de se levantar e contar, acabando
por morrer!
Acabaram os dias felizes de
dois homens que se estimavam e que se habituaram um ao outro como se de um
casal de tratasse. E tratava. Um casal especial.
Entretanto, o doente da cama
ao lado ia melhorando, também por ajuda da terapia diária do amigo contador,
até que um dia se levantou.
Então pediu à enfermeira que
o levasse até à janela porque queria muito ver o jardim. A enfermeira, que já
se tinha apercebido desta história de amor ao próximo, disse-lhe que não havia
ali nenhuma janela! O doente ficou perplexo e perguntou: - então e o jardim? A
enfermeira respondeu que também não havia nenhum jardim. E fez mais uma
pergunta: - então e o meu amigo contador? E a enfermeira respondeu: - Um bom
coração e um bom contador. Era cego!
Nota – Este conto é a
maneira como recordo um conto que li algures, faz muito tempo. Decidi então
tentar reproduzi-lo chamando-o de Conto Fantástico, porque assim se deixaram as
letras alinhar quando o titulava.
Carnaxide, Julho de 2024
JG83
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