Alberto Gonçalves
Observador (17/7/2021)
A História não engana.
Com escassas excepções, onde há tiranos ou aspirantes a tiranos capazes de
horrorizar nações “normais”, a esquerda aparece logo a venerá-los. E até
dispensa o socialismo estrito.
Haverá tontinhos convictos da inocência do regime cubano. Mas a maioria, entre os que vemos por aí a exaltar a herança de Fidel, sabe. Eles sabem da opressão, da miséria, da fome, das perseguições, da censura, do racismo, da homofobia, das prisões, dos homicídios e do sangue. Sabem e não se importam. E não se importam porque acham necessário. E acham necessário porque para eles a vida humana é uma abstração secundária face ao que tomam pela realidade fundamental: a defesa de uma ideia a que se convencionou chamar socialismo. Trata-se, claro, do mundo ao contrário, e de uma ironia pesada. A existência – e o sofrimento – das pessoas é para eles descartável, e em larga medida imaginária. Já uma alucinação teórica com resultados comprovadamente catastróficos é a verdade palpável, e a única que lhes interessa.
A História não engana.
Com escassas excepções, onde há tiranos ou aspirantes a tiranos capazes de
horrorizar nações “normais”, a esquerda aparece logo a venerá-los. Em rigor, a
esquerda até dispensa o socialismo estrito: seja de que variante forem, os
espíritos totalitários tendem a aproximar-se. Na República de Weimar, os
comunistas consideravam os nazis um aliado tácito contra os sociais-democratas.
Na crise das Falkland, a Argentina protofascista foi nitidamente preferida em
detrimento do Reino Unido da sra. Thatcher. O Iraque de Saddam Hussein passou a
ser visto com simpatia a partir do momento em que, com a invasão do Koweit,
provocou a reacção militar dos EUA. E não consta que o Irão ou Gaza sejam
governados a partir dos escritos de Engels ou Mao. A ideologia é afinal de
somenos: o critério essencial para suscitar a admiração da esquerda é a
ausência de democracia. Se há representatividade e legitimidade, a esquerda
desata de imediato a uivar em prol dos oprimidos. Se há oprimidos a sério, a
esquerda quer que os ditos se lixem e aplaude, nas ruas ou em recato, a
respectiva opressão. É absurdo? Não é por acaso que o absurdo e a esquerda são
sinónimos.
Regressando a Cuba, salvo
seja, a brutal hipocrisia da esquerda não sobrevive ao Teste da Jangada. Não é
um teste complicado. De um lado, temos um país de onde as pessoas fogem em
condições pavorosas da prisão provável e da indigência garantida. Do outro,
temos um país que os recebe e lhes permite prosperar de acordo com o seu
empenho, a sua habilidade ou a sua sorte. Adivinhem qual o país que a esquerda
adora e qual o que a esquerda abomina (para os idiotas terminais, esclareço que
o ponto de origem é Havana é o ponto de chegada é Miami – apesar das bazófias,
nem idiotas terminais fariam o percurso inverso). O teste não termina aqui.
Visto que falamos de refugiados, infelizes ao Deus dará que no “contexto”
correcto encheriam as manchetes com sentimentalismo, é de presumir que a
esquerda demonstre ao menos um vestígio de apreço pela sociedade que os acolhe
e, por coerência, condene a sociedade que os afugentou. Nada disso. A esquerda
detesta com indisfarçado vigor os cubanos da Flórida, na medida em que a
liberdade de que beneficiam na América torna mais evidente a falta de liberdade
em Cuba. Nas Caraíbas e em toda a parte, o pobre deixa de ser útil para a
esquerda quando deixa de ser pobre. O Teste da Jangada não se limita a revelar
hipocrisia: revela os abismos de selvajaria a que a humanidade pode descer.
Há meses, aproveitei uma
destas crónicas para explicar a um amigo da direita “ecuménica” o motivo pelo
qual não sou amigo de criaturas de esquerda: o ecumenismo não é recíproco. Se
me pedirem para desenvolver, desenvolvo e aplico a cada indivíduo a noção que
alguns sábios do século XX aplicaram colectivamente ao comunismo e ao fascismo:
o totalitarismo não é consequência do sistema, mas o sistema propriamente dito.
É chato tomar café com alguém que, nas condições propícias, não hesitaria em
enfiar-me num calabouço para efeitos pedagógicos. Nas condições vigentes,
comparativamente suaves, não hesitou em exigir que nos fechassem em casa, a mim
e aos restantes portugueses que não integram a oligarquia. E agora prepara-se
para exigir a abolição de direitos a quem, vacinado ou não, resistir ao
apartheid em curso.
A Covid, por exemplo a Covid, mostrou o que move o esquerdismo se despido do ligeiríssimo verniz social: proibir, denunciar, castigar, discriminar, afinal desprezar com religioso fervor os homens e as mulheres reais. Os assassinos que mandam em Cuba não precisam do verniz nem da Covid: ali, e não tarda aqui, o desprezo é lei. Convinha que fosse crime. O esquerdismo é um crime de ódio.
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