domingo, 4 de abril de 2021

O meu animal e eu

 

O meu animal e eu

Cristina Torrão, 03.04.21 - DELITO de OPINIÃO

Forsítia 2021.JPG

forsythia, ou forsítia, é um símbolo da Páscoa, na Alemanha. Floresce num amarelo vivo, fazendo lembrar a luz do sol e dando cor a uma época em que a Natureza se encontra ainda em hibernação. É um arbusto abundante, por aqui, pois aguenta frio, neve e gelo, mas também calor e alguma falta de chuva, no Verão.

Temos algumas forsítias no nosso jardim. Esta, ainda pequena, tem um significado especial para nós: as cinzas da nossa cadela Lucy foram espalhadas à sua volta, debaixo das pedrinhas. E agora, com a chegada de mais uma Páscoa confinada, ao deparar com a luminosidade das florinhas, lembrei-me de um texto que escrevi em alemão, sobre a Lucy, cerca de dois meses antes da sua morte. Foi escrito com a intenção de participar num passatempo organizado pelo jornal local de Stade, no Verão de 2019, intitulado Mein Tier und ich (“O meu animal e eu”). Consistia num pequeno texto a ser publicado, assim como a imagem do respectivo animal.

Decidi deitar mãos à obra, pois apanhou-me numa altura difícil, em que prescindíamos voluntariamente de coisas que gostaríamos de fazer, mal sabendo que, num futuro próximo, seríamos obrigados a prescindir de muito mais. Infelizmente, acabei por me distrair com o prazo e não cheguei sequer a enviar o texto.

Fui agora procurá-lo, já nem me lembrava bem do que tinha escrito. E resolvi traduzir para português as palavras gravadas a 11 de Agosto de 2019, quando, apesar das restrições que nos impúnhamos, ainda íamos ao restaurante, visitávamos parentes e amigos e actuávamos com o nosso coro. A Lucy morreria cerca de dois meses mais tarde.

«A nossa Lucy tem 15 anos e 9 meses, está surda e quase cega. Mas isto nem é o pior. O coração dela está muito enfraquecido, o que lhe provoca desmaios. Estes podem acontecer a qualquer momento, também a meio da noite e, por vezes, fazem-na ganir alto, acordando-nos em sobressalto.

A Lucy tem, porém, ainda qualidade de vida. Recuperada dos desmaios, readquire a sua alegria habitual. Come muito bem, não prescinde dos seus pequenos passeios e continua interessada em tudo o que se passa dentro de casa.

O Horst eu estamos muito presos, nem sequer podemos sair nas férias. A Lucy já não aguentaria uma viagem e, deixá-la aos cuidados de alguém, está fora de questão. Ela veio para nossa casa com apenas oito semanas de vida, não conheceu outra família. Além disso, a sua situação exige cuidados especiais. Os comprimidos têm de ser dados a horas certas, os seus desmaios não são fáceis de aguentar e, como toma um diurético, a fim de não acumular líquido nos pulmões, a bexiga funciona com frequência. Tem de se conhecer muito bem o ritmo dela e andar muito atento.

Antigamente, a Lucy era uma cadelinha muito activa e acompanhava-nos nas férias. Conhece meia Europa, viajou muitas vezes de carro entre a Alemanha e Portugal. Mas também nos acompanhou noutros passeios: caminhadas no Parque Nacional do Harz, no vale do Rio Mosela, pelos montes luxemburgueses, além de várias vezes ter andado no ferry-boat do Lago Constança entre a Alemanha, a Suíça e a Áustria.

Agora, que nada disto é possível, não a deixamos sozinha e tentamos tornar-lhe tão agradável quanto possível o tempo que lhe resta. Na sua fragilidade, ela confia totalmente em nós. E uma confiança destas não deve ser nunca traída».

2015-05-18 Macedo - Beim Frühstück 09.JPG

A Páscoa também é confiança. Na vitória da vida sobre a morte.

Boa Páscoa!

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