Dos mandeus aos yazidis: Religiões sob ameaça
Coptas, drusos, mandeus, kalashas, samaritanos, yazidis e zoroastras são minorias perseguidas, do Nilo ao Hindu Kush. Com teologias secretas e incapacidade de organização, o exílio pode ser a única forma de sobreviverem. Entrevista com Gerard Russell, autor de Heirs to Forgotten Kingdoms, obra que tem merecido elogios unânimes pela singularidade e erudição: (Ler mais | Read more…)
Em Fevereiro e Março, várias esculturas do antigo Império Assírio (2500-605 a.C.) foram despedaçadas por martelos de forja e pneumáticos num museu de Mossul, no Norte do Iraque. Dias antes, “cerca de dez mil livros e mais de 700 manuscritos raros” haviam sido queimados na biblioteca nacional da cidade.
Estes actos de destruição ignara foram levados a cabo pelo autoproclamado “estado islâmico” (Daesh) num país onde as minorias religiosas enfrentam agora a maior ameaça existencial.
Os que mais correm “o risco de se extinguirem” são os mandeus, disse-me, numa entrevista por Skype, Gerard Russell, autor de uma obra que tem merecido elogios unânimes pela singularidade e erudição: Heirs to Forgotten Kingdoms: Journeys into the Disappearing Religions of the Middle East (“Herdeiros de Reinos Esquecidos: Viagens pelas Religiões em Vias de Desaparecimento no Médio Oriente”).
Em 2006, quando o católico britânico-americano Russel, na altura diplomata em Bagdad, foi convidado a visitar o Xeque Sattar, sumo-sacerdote dos mandeus, estes totalizavam “menos de cem mil”. Quando o livro estava prestes a ser concluído, “90% tinham sido assassinados ou forçados a exílio”. O Xeque Sattar foi um dos que teve de procurar refúgio, na Austrália.
Para os terroristas do Daesh, as minorias religiosas são “infiéis” e tudo que esteja associado à sua história constitui “heresia”. Escudam-se em Maomé, profeta do Islão, para “justificar” actos desumanos. No entanto, salientou Russell, “foi no Médio Oriente muçulmano que sobreviveram as religiões mais antigas e não na Europa cristã, onde não há vestígios de crenças equivalentes”.
Uma das razões, explicou, tem a ver com o facto de “as religiões no Médio Oriente serem mais sofisticadas do que as religiões pré-cristãs na Europa”.
Por exemplo, “enquanto os cristãos não tiveram grande dificuldade em dominar a fé dos celtas, muitos pagãos no Médio Oriente – profundamente conhecedores da filosofia grega e astronomia da Babilónia, e detentores de uma teologia complexa – garantiram a sua continuidade.”
Também é importante o facto de, embora Maomé ter tentado pôr fim à veneração de divindades pagãs, o Corão “ser relativamente benigno em relação às religiões monoteístas”, não apenas os “Povos do Livro” – judeus e cristãos –, mas também zoroastras e sabeus, ainda que estes fossem tratados como “legalmente inferiores”.
Só quando os muçulmanos se tornavam dominantes nos territórios que conquistavam e passaram a considerar as minorias como “forças subversivas” é que as perseguições se acentuaram. Os maniqueus, seguidores de Mani, quase se extinguiram no século XII (restará apenas uma pequena comunidade no Leste da China).
O austero pregador que via o mundo como “uma luta entre um mundo espiritual de luz e um mundo material de escuridão”, foi executado pelo xá sassânida Bahram I, em 276 d.C., no Irão.
“O conflito entre muçulmanos e outros crentes – os cruzados no Ocidente e os invasores mongóis no Oriente – minaram ainda mais a tolerância”, afirmou Russell.
“Só a partir do século XIX, é que os governos do Médio Oriente começaram a mudar de atitude em relação às suas minorias, talvez devido a pressões ocidentais ou inspirados por ideais progressistas.
O Império Otomano garantiu aos seus cidadãos um estatuto de quase igualdade. O mesmo aconteceu, entre 1860 e 1910, aos cristãos coptas no Egipto [reprimidos violentamente no século IX quando se insurgiram contra o peso dos impostos].
A revolução iraniana de 1906 [que aprovou a primeira Constituição da antiga Pérsia] deu aos zoroastras um lugar no Parlamento.”
Russell, que demorou quatro anos a escrever o seu livro, já era um conhecedor do Médio Oriente quando foi ao encontro das minorias em risco – falhou os alauitas, poder absoluto em Damasco até à guerra civil de 2011, mas diz que espera vir a falar deles, e também dos Bahá’ís (perseguidos no Irão), por exemplo, numa obra posterior.
Nascido nos EUA, em 1973, filho de pais ingleses, estudou línguas clássicas e filosofia na Universidade de Oxford. Trabalhou para o Foreign Office britânico e para a ONU no Cairo, Bagdad, Jidá (Arábia Saudita) e Cabul. É fluente em árabe, farsi e dari (um dos idiomas oficiais no Afeganistão).
“Tivessem as religiões antigas dominado o mundo moderno”, salientou Russel, “e seria o maniqueísmo, não o cristianismo, a ser disseminado na Europa pelo Império Romano”. Sebastianus, discípulo de Mani (que também cativou Santo Agostinho), quase se tornou imperador de Roma, em meados do século IV.
Mani admirava os mandeus, que se descrevem como “a religião mais antiga do mundo, descendente de Adão”. Contudo, enquanto ele incorporava elementos do judaísmo, cristianismo e budismo, os mandeus rejeitam Jesus e Abraão.
Adoram um só Deus, “A Grande Vida”, veneram João Baptista como “o maior profeta” e, por isso, praticam o baptismo em várias cerimónias.
O seu dia santo é o domingo, e tudo isto fez com que missionários europeus no século XVI os considerassem “uma seita cristã”. A realidade é diferente: “Eles acreditam no Céu, mas chamam-lhe ‘Mundo de Luz’ , e no Inferno, que não é Satanás mas uma mulher chamada ‘Ruha’.”
“O seu livro sagrado, Ginza Rabba (‘Grande Tesouro’) é diferente da Bíblia e do Corão, embora em cada página exista ‘uma espécie de cruz’, símbolo da imersão no rio Tigre, o rito mais santificado.” O nome “mandeus” deriva da palavra “manda”, que significa “sabedoria”, na sua própria língua.
Os mandeus, “pacifistas que recusam a guerra mesmo se forem atacados”, são os que correm mais perigo de vida – “a sua existência no Iraque é quase insustentável, embora haja uma pequena comunidade protegida no Irão”, sublinhou Russell.
“Outro grupo sob ameaça é o dos yazidis mas, em termos numéricos, estes são muito mais. Centenas de milhares ainda vivem no Curdistão [Norte do Iraque] e também na Síria. Irão, Arménia e Geórgia. Provavelmente aqui permanecerão.”
Depois que conquistou Mosul, em Junho de 2014, o Daesh colocou os yazidis sob cerco e pressão impiedosos. Homens e rapazes são mortos de forma vil, degolados ou fuzilados, os seus órgãos vendidos para obter fundos (outras formas de financiamento são assaltos a bancos e tráfico de antiguidades). Mulheres e crianças são raptadas, violadas e escravizadas.
Com origens que remontam a cerca de 4000 anos e raízes no Zoroastrismo, os yazidis têm sido perseguidos devido a muitas das suas tradições, sobretudo por acreditarem na reencarnação e adorarem um anjo na forma de pavão (“um demónio arrependido cujas lágrimas secaram o Inferno”), Melek Taoos, “o verdadeiro senhor do Mundo, porque Deus tem uma forma abstracta”.
Na cordilheira do Hindu Kush, na fronteira entre o Afeganistão e Paquistão, Russell identificou outra “minoria indefesa”, uma das principais vítimas da “lei da blasfémia”, imposta pela primeira-ministra Benazir Bhutto (1953-207): os kalashas.
Louros, olhos azuis e tez clara, como muitos yaziditas, chamam-lhes frequentemente “descendentes de Alexandre, o Grande” ou dos soldados do general macedónio quando aqui se instalaram.
Uma comunidade onde as mulheres têm imensa liberdade, surpreendeu Russell que muitas delas aceitassem a conversão – voluntária (e não forçada pelos Taliban) – ao Islão. Uma das razões é a pobreza. Um casamento ou um funeral muçulmanos são menos onerosos do que os dos kalashas.
Algumas mulheres também se casam com polícias ou militares e, com isso, elevam o seu estatuto. Algo semelhante ao que se passa com convertidos ao cristianismo, que antes eram hindus da casta dos intocáveis.
Além dos mandeus, yazidis e kalashas, Russell incluiu também no seu livro os coptas, os drusos, os samaritanos e os zoroastras. Uns em situação de maior debilidade do que outros, alguns partilhando costumes (não explicados) como não usar a cor azul ou não comer alface, o que caracteriza quase todos é o secretismo das suas crenças, o facto de não possuírem textos escritos e acessíveis aos fiéis, mas também, por outro lado, “um grande sentimento de identidade”.
Um dos yaziditas que o autor encontrou era ateu, mas não abdicava da pertença à sua comunidade, mais importante do que identificar-se como iraquiano.
“Há um outro problema”, explicou Russell. “Quando estas minorias emigram para a Europa, América ou Austrália, sociedades que são seculares, na sua maioria, é difícil manter a fé porque não existem manuais de Teologia.”
“Existir é um grande desafio. Isso pode ser feito, mas exigirá a criação de redes eficientes, sociais e económicas, para que as comunidades se mantenham unidas. Há um forte sentido de identidade, é certo, mas falta-lhes um sólido sentido de teologia.”
“Não creio que haja percepção, entre os ocidentais, de que estas religiões sejam problemáticas, mas elas têm de se dar a conhecer melhor”, aconselhou Russell. “Os cristãos do Médio Oriente na América, por exemplo, têm sido bons em criar centros comunitários, mas os yaziditas, os drusos e outros ainda não estão preparados.”
Repare-se a má reacção de alguns drusos ao casamento da famosa advogada de direitos humanos Amal Alamuddin com o não menos célebre actor George Clooney, por ser “uma união com um estranho”.
Terminemos com uma especulação de Russell: “Como seria diferente o mundo se o imperador Constantino não se tivesse convertido em 312, acontecimento que levou o Império [Romano] a adoptar o Cristianismo como religião oficial? Ainda haveria, certamente, muitos cristãos, embora em menor número devido a perseguições.”
“O Judaísmo seria uma grande religião, com base no Iraque, competindo com os samaritanos (que totalizariam milhões, dominando o que é hoje Israel e talvez o Sul da Síria. Os filósofos gregos não seriam apenas lidos, mas reverenciados. Quanto a nós, talvez seguíssemos uma religião misteriosa, conhecida apenas por selectos anciães.”
Este artigo, agora actualizado, foi publicado originalmente na edição de Abril de 2015 da revista ALÉM-MAR” | This article, now updated, was originally published in the Portuguese magazine ALÉM-MAR, April 2015 edition
FONTE: https://margaridasantoslopes.com/2015/04/01/medio-oriente-as-religioes-ameacadas/
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