António Magalhães
(em Sheffield )
https://bomdia.lu/Estava até um dia soalheiro.
De vez em quando corria uma suave brisa que nos entrava
pelos vidros abertos, do carro, mesmo que sabendo que a brisa de vez em quando
corresse, eu a não sentisse.
Sou o passageiro que vai sentado no banco que me é
designado. No lugar do condutor, a minha mulher.
Entre o nosso silêncio entrepõe-se um suave e ao mesmo
tempo sereno barulhinho do motor do carro; quase envergonhado de se fazer ouvir
mais do que os pensamentos que cada um de nós leva de si mesmo, à medida que
descemos a encosta. Não consegue – o barulhinho suave e sereno fica atrás de
todos os outros barulhos silenciosos, próprios da jornada em causa.
O carro é comprido e não tem assentos, outros que não
sejam os da frente. Ao invés disso tem uma mala compridíssima onde
transportamos um caixão. O meu caixão.
À medida que descemos a encosta, silenciosos, como que
hipnotizados pela orquestra de pequenos e suaves barulhos; os pensamentos que
cada um traz e não revela, a brisa que não sinto, a encosta agreste que ladeia
a estrada e entra no barulho suave e sereno, como paisagem integrante da
jornada, o barulhinho silencioso do motor do carro (envergonhadíssimo), vou
conformado com o meu destino.
Chegou a minha hora.
É assim a natureza da vida. Do fim dela.
Não há outro remédio. Conformarmo-nos e aceitarmos,
porque de outra maneira não pode ser, é aceitar o que não compreendemos.
Chegamos ao fundo da encosta.
Há um enorme descampado e dezenas de carros similares ao
nosso. Cada um transporta um caixão.
Esposas que trazem os maridos, maridos que trazem as
esposas. Não há uma ordem…um critério de escolha em relação a quem fica e quem
faz o caminho de volta. Quem chega, sempre aos pares, um fica o outro regressa.
Ao fundo do descampado há uma espécie de pedreira.
Tenho que levar o meu caixão para lá. Depois, meto-me
dentro dele e será esse o meu fim.
Outros que já lá estão parecem aceitar o seu destino com
uma estranha tranquilidade. Há uma serenidade neles em aceitar a natureza do
destino final, que eu pensei ter, mas não tenho.
Chegada a hora o pânico apodera-se de mim. Sem saber
como, tão depressa acabei de chegar, como tão depressa estou já ao fundo da
pedreira, dentro do caixão. O pânico aumenta como a trovoada que se ouvia ao
longe e acabou por chegar mais depressa do que a própria tempestade.
Chegou a hora, mas eu não estou preparado.
Enquanto descíamos a encosta tinha toda a serenidade de
quem sabe e aceita que chegada a hora não há como lhe fugir. Mas quando essa
inevitável hora chegou, a serenidade e aceitação transformou-se num grito de
desespero, de medo.
Estou dentro do caixão, mas recuso-me a deitar. – digo –
ainda não é a minha hora. Não estou preparado…
A minha mulher que tinha ficado junto do carro, a uma
distância considerável, respondeu com toda a naturalidade, - Tem que ser. É
assim que as coisas se passam. – Não havia maldade, nem no seu olhar, nem no
tom das suas palavras.
Apesar da distância, ouço-a nitidamente, como se ela
tivesse chegado a sua cara bem perto de mim, só para me responder.
Depois…voltou à distância de onde havia ficado desde que chegamos, e eu, sem
saber como, de repente me vi lá longe, ao fundo da pedreira, com o meu caixão,
com o meu destino final.
Voltei a olhá-la nos olhos. Uma vez mais a distância que
nos separava se fez curta, só para aquele olhar.
- Não quero ir.
- Tem que ser. Chegou a hora.
E nesse curtíssimo diálogo as nossas bocas não se
abriram, os lábios não se mexeram. Foram os nossos olhos que falaram.
- Tem que ser. Não há nada que possamos fazer. Somos
impotentes ao destino que a vida nos reserva no fechar da cortina que é, que
foi, o espetáculo da vida.
Todos me olham com um ar de incompreensão. Que se passa
com ele? Devem ter perguntado a si mesmos. É a lei da vida. A morte. Porque se
recusa a aceitar.
Sinto uma espécie de embaraço pelo olhar recriminador que
todos me lançam. Que vergonha…
Não é a minha vergonha. Não sou eu que me recrimino a mim
mesmo por não aceitar tão fatal destino. São aqueles olhares inquisidores…
O pânico começa a ganhar proporções mais assustadoras do
que o próprio cenário macabro onde estou inserido.
Cresce tanto, é tanto o desespero, o medo…que…de repente
acordo.
Foi um sonho.
Foi apenas um sonho.
Ao meu lado a minha mulher dorme serena.
Depois, fico deitado, de mãos entrelaçadas onde repousa a
nuca, de cabeça enterrada na almofada.
Uma luz que brilha no escuro, e nasce de um canto do teto
do quarto, pinga sobre os pés da cama como que filtrada por um crivo. É dela
que vejo a carcaça do meu Espírito. O corpo. Por uns breves instantes tudo se
torna claro. Eu não sou aquele corpo ali deitado. Sou muito mais do que isso.
No mesmo instante surge-me um pensamento.
“Se por vezes a vida nos é tão miserável…porque temos
tanto medo de morrer?”
Da luz que pinga do teto, como que filtrada por um crivo,
tenho um rápido momento de clarividência. Estou neste corpo para uma breve
passagem neste mundo, porque o verdadeiro eu – Espírito – precisa dessa
aprendizagem; alegrias e tristezas. Conquistas e derrotas. Prazer e sofrimento.
Para continuar o supremo caminho da eternidade, aceitei essa condição muito
antes de voltar ao mundo onde o meu Espírito precisa dessa concha para se
submeter à aprendizagem que me garante a continuidade. Aceitei o sofrimento,
como condição para que viesse a este mundo aprender, muito antes de o sentir na
pele. Onde ele mais doi. Soube-o apenas nesse brevíssimo momento de
clarividência, de revelação. Depressa o irei esquecer. Faz parte da mesma
condição…
Já não sei se continuo a sonhar, ou se tudo isto é como
uma benesse de esperança para os que mais sofrem.
Por muito doloroso que seja o sofrimento, o Espírito irá
libertar-se dele, e dele leva a sua recompensa pelo que aprendeu. Para que o
sofrimento não seja em vão.
Continuo com as mãos entrelaçadas onde repousa a nuca.
Aos poucos, o feixe de luz que desce de um canto do teto e incide aos pés da
cama, como que filtrado por um crivo, vai-se tornando cada vez mais embaciado.
Depois torna-se intermitente; estende-se como uma cortina, onde por detrás dela
me separa uma outra realidade. Depois desaparece.
Fecho os olhos, aperto as pálpebras com força, e as lágrimas
rebentam, escorrendo livremente pela minha cara para se fundirem com a
almofada.
Se calhar…agora sim, vou dormir.
(Dedicado à minha mãe e aos seus 86 anos de poucas alegrias e muito sofrimento. Dedicado ao meu irmão José Joaquim e aos seus 60 anos de incompreensível sofrimento.)
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