Observador, 19 Março 2021, 06:50 /premium
Em 2003, quando ainda a procissão e o
milénio iam no adro, Anthony Browne, um licenciado em Matemática por Cambridge,
escritor, jornalista e colaborador do Times, publicou The
Retreat of Reason – Political Correctness and the Corruption of Public Debate
in Modern Britain. E a título de exemplo, começava por denunciar a
cortina de silêncio com que, por puro pudor e paternalismo ideológico, a
imprensa britânica tinha velado a incidência de HIV nas comunidades de migrantes
africanos. E isso era só um vislumbre: a Grã-Bretanha, que “durante séculos
tinha sido um farol da liberdade de pensamento, de credo e de expressão”, via
agora “a sua vida intelectual e política acorrentada”, com “vastas áreas de
conhecimento” excluídas do debate pelos novos moralistas.
Browne resumia depois a Longa Marcha do
marxismo cultural, da escola de Frankfurt à contracultura euro-americana dos
anos 60, e daí até à hegemonia académica, sobretudo nas Ciências Sociais e,
mais especificamente, nos “Estudos” sectoriais, que as universidades
norte-americanas irradiavam para o mundo.
E os “Estudos”, pós-coloniais,
feministas, interseccionais, proto-LGBTQ+ – que, no seu melhor, começaram por
ser sedutoras “paranóias de tipo interpretativo” com “a força e a estreiteza da
loucura” (para usar a definição de Pessoa do “critério psicológico de Freud”),
capazes de nos alertarem para realidades encobertas, de acordarem outros
sentidos nas obras literárias, historiográficas ou filosóficas, de abrirem
caminhos e campos de investigação e de criaram novas oportunidades de trabalho
– foram tomados de assalto por zelotas.
Aconteceu também que o zelo destes
zelotas, com o seu vocabulário esotérico (tanto mais complexo, sofisticado e
“científico” na forma, quanto mais oco, medíocre e manipulador no conteúdo), se
foi sobrepondo a tudo o resto… E foi seduzindo fundações burguesas e governos
que, quais aristocratas francesas acarinhando nos seus salões as iluminadas
ideias que haviam de cortar o pescoço aos seus filhos e netos, se foram
rendendo ao charme discreto dos novos “sábios dos oprimidos”.
E assim os “Estudos” cresceram e
multiplicaram-se, enchendo e dominando a academia e reinando sobre todos os
animais exóticos da terra. E desdobraram-se em Centros, Fóruns, Iniciativas e
Observatórios, subjugando aqui, domesticando ali, preservando acolá, mas
observando sempre.
E eis que, em incansável demanda por
opressores e oprimidos, por macro e micro agressões, por visões alternativas e
por subvenções, os zelotas que, do alto dos seus observatórios de marfim,
tinham começado por promover a nova moral, passaram a perseguir os
recalcitrantes – passados, presentes e futuros. Cada tique de linguagem, cada
acto, palavra ou omissão, cada desvio do pensamento correcto, neutro e inclusivo,
cada cisco, por mais ínfimo, no olho de um “opressor”, ou de um autor
consagrado ou de uma figura histórica celebrada, era escrupulosamente
observado, pesado, medido, condenado. E não se pense que os “oprimidos”
conheciam melhor sorte: a eles também se exigia que não saíssem do redil e que
se cingissem à identidade em que os novos moralistas os encurralavam… É que se
não parassem quietos e se não se deixassem ficar oprimidos como lhes competia,
se começassem a pensar e a reivindicar individualidades e especificidades, como
é que queriam que os detentores da nova verdade e da nova moral os libertassem,
lhes arranjassem subsídios e empregos nos Centros, Fóruns, Iniciativas e
Observatórios que eles controlavam e os sustentam?
“Pensamento correcto” foi uma expressão
abundantemente usada pelos partidos comunistas nos anos 20 e 30; Mao Tsé-Tung
repetiu-a incessantemente nos seus escritos. Correcto, era todo o pensamento
que estava de acordo com a linha do Partido ou que batia certo com as
categorias históricas e sociopolíticas cientificamente estipuladas pelo Grande
Timoneiro. Fora dessa correcção, não podia haver pensamento – mas não deixava
de haver consequências.
Do pensamento correcto ao pensamento neutro e inclusivo
Dir-se-á que agora, com o actual “pensamento
neutro e inclusivo”, que actua essencialmente no condicionamento da linguagem,
não há consequências. Ou não as haverá tão imediatamente brutais e fatais. Mas
não deixa de haver supressão do pensamento “incorrecto”, ou seja, inibição do
pensamento. E se a nova ortodoxia parece não aspirar já a um tradicional
“assalto ao poder”, é só porque a influência constante e progressiva nas
mentalidades, traduzida depois em leis e regulamentos, tornou o velho “assalto”
irrelevante.
Fora do discurso consentido, todo o
discurso poderá facilmente ser denunciado como “discurso de ódio”, ao sabor do
zelo e da criatividade dos sacerdotes do novo credo e do seu Index.
Acresce que esta ortodoxia é tendencialmente elitista, acarinhando os magos e
desprezando os pastores, procurando colonizar preferencialmente, por
doutrinação ou pressão, as elites funcionais – ou, para usar uma linguagem mais
consentânea, “a população em cargos académicos, artísticos, mediáticos e
empresariais”.
Mas se a resistência vem das maiorias que
o pensamento “neutro e inclusivo” discrimina, como as classes médias
profissionais, as massas populares e religiosas e o grosso da população
“binária”; vem também das minorias que o mesmo pensamento cristaliza.
Portugal no bom caminho
É por isso que consideram urgente domar
a linguagem e explicar ao povo e às crianças o novo credo. Para uma educação
neutra, as identidades nacionais devem então ser substituídas por uma
humanidade global, fluída, indistinta, volátil, inclusiva. Bandeiras, só talvez
a do arco-íris, devendo a História nacional ser reavaliada à luz do que foram
“verdadeiramente” os “chamados Descobrimentos”: nada mais do que uma empresa
comercial lucrativa, racista, esclavagista e exploradora dos povos africanos e
ameríndios.
E estamos no bom caminho: temos uma
investigadora que quer anexar notas pedagógicas anti-racistas aos Maias de
Eça de Queiroz, um deputado que quer destruir o Padrão dos Descobrimentos, uns
anónimos que acham que vandalizar a estátua do Padre António Vieira é lutar
contra o racismo, e um Conselho Económico e Social que acha fundamental para a
nossa economia e para a nossa sociedade que se adopte uma nova linguagem. Não
restam dúvidas: entre a profunda ignorância de quem aparentemente pertence à
“população com baixa visão” mas que frequentemente descobrimos como parte da
“população em cargos de gestão”, estamos mesmo no bom caminho.
São tempos estranhos para a razão e para
o senso comum, sob estas acometidas orwellianas, tão apartadas de qualquer
visão minimamente realista da natureza humana, da criatividade humana e do
pensamento e da acção humana que têm tudo para acabar mal.
Segundo o novo código de Hollywood, para
que um filme se candidate aos Óscares, deverá agora ter “pelo menos um actor ou
uma actriz principais de etnias sub-representadas” (asiática, hispânica,
afroamericana, nativa-americana); e o elenco secundário terá de ter, “pelo
menos, 30% de mulheres, LGBTQ+ ou pessoas com incapacidade”, que deverão “estar
também representadas, de alguma forma, no argumento”. Enfim, perante esta sua
sequela gramsciana, empalidece, acabrunhado, o realismo socialista da Rússia de
Estaline (que sempre tinha Dziga Vertov e Sergei Eisenstein).
É todo um novo catecismo laico, mas
promovido com fúrias de Torquemada. Aplicou-se, consciente ou
inconscientemente, um princípio de desconstrução marxista, que passou da
“classe social” para outras determinantes. Onde, na Vulgata, havia Burgueses e
Proletários, Exploradores e Explorados, Patrões e Trabalhadores, há agora o
mais fluído binómio Opressor-Oprimido – ainda que com categorias igualmente
inflexíveis, de raça, de género, de comportamento social e político.
E tal como Marx, Engels, Lenine e
Trotsky, que não eram propriamente proletários, adoptaram “a teoria do Partido
como vanguarda da classe operária” para puderem liderar a revolução,
também os pioneiros da Correcção Política, que, na sua maioria, também
não são propriamente “oprimidos de origem”, adoptam agora a teoria da vanguarda
para poderem guiar e pastorear convenientemente os “novos proletários”. E assim
como Marx e Engels sofriam com a adesão dos operários franceses e alemães ao
bonapartismo ou ao socialismo patriótico, também os novos comissários políticos
sofrem com os trânsfugas das modernas massas “minoritárias” ou
“oprimidas” e sabem que não as podem deixar ao abandono. Têm de ser
educadas e controladas. E, para isso, lá estão os capatazes, os quadros médios
vigilantes, na Academia, no jornal ou na estação televisiva, prontos a seguir,
por convicção, ignorância, ou dependência, a “linha geral” e correcta, a linha
do Partido, e a punir os oposicionistas e os desviacionistas.
Para singrar neste mundo “neutro e
inclusivo” há inúmeros filões a explorar, e as figuras e os escritores de
outras épocas abrem toda uma vasta gama de apetecíveis e subsidiáveis
possibilidades. E se ao ler Eça somos imediatamente confrontados com a ausência
– e a necessidade, e a urgência – de notas pedagógicas anti-racistas, o mundo
machista de Camilo, por exemplo, pleno de “discurso de ódio” contra
“brasileiros”, de mulheres que acabam em conventos por paixões contrariadas,
ou, pior ainda, que casam, têm filhos e estão contentes, afigura-se ainda mais
necessitado de delações censórias. E Camões, e Gil Vicente, que riqueza para
denúncias!
Lorena Germán, presidente do National
Council of English Teatcher’s Comittee Against Racism and Bias in Teaching of
English é um exemplo a seguir. À semelhança de Mao, que não gostava de
Shakespeare ou o achava impróprio para as massas e por isso o proibiu durante a
Revolução Cultural, Germán também não morre de amores pelo Bardo. Ou melhor,
concede que “como qualquer outro dramaturgo” Shakespeare até terá um certo
“mérito literário”, mas nada que ofusque a abjecta demonstração de “supremacia
branca e colonialista” que os seus textos, e a importância que se lhes dá,
exalam. E a violência, a misoginia e o racismo que descortina em Shakespeare,
levam a professora a sugerir que se celebrem nas salas de aula “as vozes dos
marginalizados”, até para mostrar aos estudantes “uma sociedade melhor”.
Defende ainda que “é imperativo corrigir a mensagem que os educadores e os
sistemas escolares dão às crianças”: Haverá uma linguagem “superior”? E qual
deverá ser ela? Quais são as histórias verdadeiramente “universais”? Que
História devemos transportar para o futuro?
Cancelar Shakespeare
Shakespeare não será, evidentemente, um
dos eleitos, uma das vozes a transportar para o futuro. Até porque está
longe de reunir os requisitos da nova linguagem e do novo pensamento neutro e
inclusivo. É difícil encontrar um escritor onde a Humanidade, na sua grandeza e
miséria, nos limites do sublime e da queda, no elenco dos sentimentos e dos
sentidos, seja tão intrincada e completamente recriada – e isso, não só não é
bom para as massas, como é, claramente, demais para a simplista e maniqueísta
neutralização do pensamento que nos deverá guiar.
Mas haverá palavras “neutras” para falar
de paixão mais inclusivas do que as que Shakespeare usou em Romeu e
Julieta? Será só de “branquitude” que nos fala quando disseca os caminhos
da tragédia, da ambição e do poder em Júlio César? Ou quando nos
confronta com o ressentimento, a malevolência e o ciúme, em Otelo?
Sim, Otelo, o “Mouro”, ou o “Negro” de Veneza, o condotiere mercenário,
integrado por Desdémona, mas olhado sempre como um “cristão-novo” pelos
patrícios. E a revolta das “minorias”, não estará lá na tirada defensiva de
Shylock, no Mercador de Veneza, ou na sombra de Caliban,
na Tempestade? Pouco importa: deixámos de precisar de Shakespeare,
que só por preconceito e por imposição racista resistiu a séculos de leitura; o
que o mundo e os estudantes agora precisam, o que todos nós precisamos agora, e
urgentemente, é de linguagem neutra e inclusiva.
Marx era um grande leitor e admirador de
Shakespeare, lia-o aos filhos e a família chamava-lhe “O Mouro”, por causa da
sua obsessão por Otelo. Via em Shylock o retrato do explorador
e Timon de Atenas serviu-lhe de ponto de partida para uma
reflexão sobre os paradigmas do ouro e do dinheiro. Mas isso eram outros
tempos, tempos opressores, em que “a cultura” era mais depressa valorizada do
que cancelada, e em que o pensamento não era ainda suficientemente neutro e
inclusivo.
Felizmente, e para desgosto das Lorenas
Germáns deste mundo, não são só as “maiorias opressoras” que reagem… Alguns dos
mais qualificados membros pensantes das “minorias oprimidas” também fogem ao
espartilho imposto, resistindo ainda e sempre à neutralização do
pensamento.
A grande poetiza negra americana, Maya
Angelou, estava bem ciente que Shakespeare era branco, inglês e do
Renascimento, mas, recordando a sua própria condição marginal na Carolina do
Norte dos meados do século XX, escreveu a propósito do Soneto 29 (aquele que
começa “When, in disgrace with fortune and men’s eyes /I all alone beweep my
outcast state”):
Shakespeare escreveu-o para mim, esta é
a condição da mulher negra. Claro, Shakespeare era uma mulher negra. Percebo-o
bem. Ninguém mais o sabe, mas eu sei que Shakespeare era uma “mulher negra”.
Estamos com ela. Resistimos e vamos resistir à neutralização do pensamento. Pelas maiorias e pelas minorias.
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