Acílio Estanqueiro Rocha
Diário do Minho - 5/9/2020
O estado de espírito ante a epidemia, que
alterou bruscamente comportamentos e rotinas, insta-nos à redescoberta do
essencial – o valor da vida; num ápice, passámos do acalorado debate
em pôr termo à vida – a eutanásia – ao volte-face de a defender a todo o custo,
seja qual for a idade.
Assim, eis-nos brutalmente perante uma
situação desconhecida, cujos perigos, para além da saúde, se repercutem também
na sociedade, na economia, portanto na política, já que esta é essencialmente a
arte de traduzir na prática a nossa existência colectiva. Do choque da situação
que persiste, e dada a vulnerabilidade humana, um plexo de questões
naturalmente despontam:
Quem somos? Para onde vamos?
2. Num artigo anterior
– “Pandemia e vulnerabilidade humana” –, escrevi que a nossa fragilidade é
vista “como obstáculo ao potencial inabarcável do indivíduo.
Um exemplo paroxístico dessa tendência é
o discurso de muitos trans-humanistas que consideram a velhice como uma doença
superável ou o corpo como uma prisão para a mente, atribuindo à tecnologia e
robotização generalizada um papel prevalecente para nos libertarmos da condição
humana, pois esta é demasiado humana”.
Ora, um leitor amigo, ao cruzar-se
comigo, interrogou-me sobre o trans-humanismo, e sobre o tema conversámos com
vagar; prometi prosa atinente, pois trata- se de controversa doutrina sobre o
melhoramento biotecnológico da natureza humana para aumentar a capacidade
cognitiva e superar limitações físicas e psicológicas, podendo alcançar-se,
para os mais radicais, um “futuro pós-humano”; na base desta concepção está o
recurso à ciência e tecnologia (biotecnologia, nanotecnologia e inteligência
artificial), qual “Iluminismo humanista de raízes biológicas” – na linguagem trans-humanista.
Se o respaldo do humanismo clássico está
na educação e na cultura como factores de transformação, para o pós-humanismo
isso já não serve: a evolução far-se-á com base biotecnológica. Aliás, no sítio
“Humanity Plus”
(H+, símbolo do
trans-humanismo), podem visualizar-se conteúdos afins ao projecto, sob o signo
– “não limite os seus desafios, desafie os seus limites”. Aí pode ler-se a
“Declaração Trans-humanista” – manifesto da Associação Trans-humanista Mundial
(1998).
De facto, o progresso biotecnológico
abriu promissoras sendas para minorar o sofrimento e a debilidade humana,
algumas já realidade; todavia, há outras, na fronteira da natureza humana, cuja
superação pode ser tal que nos force à interrogação: somos ainda sapiens? Transferir, por ex., cérebros biológicos – moldados pela
evolução biológica ao longo de milénios – para robôs, suscita questões de ordem
ética, desde as ligadas à minha identidade (quem sou?), ao ponderoso tema mente/corpo, à capacidade de interacção do sujeito com o mundo, à ausência de emoções e paixões; ademais,
a interrogação adensa-se, se o cérebro não carece dum corpo (sistema biológico)
para interagir e responder à variedade de estímulos externos, impossível de
processar-se num robô. Parece-nos que importa obviar a uma capacidade
irrestrita da técnica, pois nem tudo o que se pode fazer, se deve fazer!
3. Quando escrevi o
artigo mencionado, estava mais a pensar em Yuval Noah Harari, professor e
historiador na Universidade Hebraica de Jerusalém, escritor hoje famoso pelo
seu aliciante ‘best-seller’ – Sapiens (de animais a deuses): história
breve da humanidade (2014) –, onde
analisa as principais mutações desde o passado (Idade da Pedra) aos maiores
avanços do século actual, e pelo livro que se seguiu, Homo Deus: história breve do amanhã (2015), onde
descortina o devir da Humanidade; aí, quando o Homo Sapiens, à beira da
extinção, dá lugar a uma nova espécie, pós-humana, ainda
conjectura: “o que será da nossa sociedade, da nossa política e da nossa vida
quotidiana, se algoritmos não conscientes, mas mais altamente inteligentes, nos
conhecerem melhor do que nós mesmos?” Na sua espiral futurística, será possível
os humanos alcançarem a imortalidade e desfrutarem da felicidade,
assemelhando-se aos deuses; mas adverte, quando o Homo Sapiens desaparecer,
qual algoritmo obsoleto e descartável, em vez de deus poderá tornar-se
irrelevante, mero apêndice da tecnologia prevalecente!
4. No início, o autor
proclama – o se já se mostrou falso –, em arrebate optimista: os humanos controlam
os três maiores males experimentados pela humanidade – fome, pestes e guerra: “Pela
primeira vez na história, mais pessoas morrem hoje por comer demais do que por
comer de menos; mais pessoas morrem de velhice do que de doenças infecciosas; e
mais pessoas cometem suicídio do que são mortas por soldados, terroristas e criminosos”.
Recentemente, em entrevista ao Público, a terapêutica para
a pandemia resume-se à cooperação e fronteiras abertas: “Os humanos são agora
muito mais poderosos do que o vírus”, acrescentando: “Se confiarmos na ciência
e se os países cooperarem efectivamente, não há dúvida que venceremos isto”.
Tudo isso é verdade, mas é muito pouco para quem tão minuciosamente dissertou
sobre os pós-humanos! Mas, sobre o assunto, há mais a dizer…
O autor não segue o denominado acordo ortográfico
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