sábado, 5 de setembro de 2020

“Homo Deus”?



Acílio Estanqueiro Rocha
Diário do Minho - 5/9/2020


1.A crise da covid-19, dada a situação gravíssima cujo fim não se vislumbra (mais de 25 milhões de infectados e de 850 mil mortes, no mundo), confronta-nos com a imprescindibilidade do questionamento existencial.
O estado de espírito ante a epidemia, que alterou bruscamente comportamentos e rotinas, insta-nos à redescoberta do essencial – o valor da vida; num ápice, passámos do acalorado debate em pôr termo à vida – a eutanásia – ao volte-face de a defender a todo o custo, seja qual for a idade.
Assim, eis-nos brutalmente perante uma situação desconhecida, cujos perigos, para além da saúde, se repercutem também na sociedade, na economia, portanto na política, já que esta é essencialmente a arte de traduzir na prática a nossa existência colectiva. Do choque da situação que persiste, e dada a vulnerabilidade humana, um plexo de questões naturalmente despontam:
Quem somos? Para onde vamos?

2. Num artigo anterior – “Pandemia e vulnerabilidade humana” –, escrevi que a nossa fragilidade é vista “como obstáculo ao potencial inabarcável do indivíduo.
Um exemplo paroxístico dessa tendência é o discurso de muitos trans-humanistas que consideram a velhice como uma doença superável ou o corpo como uma prisão para a mente, atribuindo à tecnologia e robotização generalizada um papel prevalecente para nos libertarmos da condição humana, pois esta é demasiado humana”.
Ora, um leitor amigo, ao cruzar-se comigo, interrogou-me sobre o trans-humanismo, e sobre o tema conversámos com vagar; prometi prosa atinente, pois trata- se de controversa doutrina sobre o melhoramento biotecnológico da natureza humana para aumentar a capacidade cognitiva e superar limitações físicas e psicológicas, podendo alcançar-se, para os mais radicais, um “futuro pós-humano”; na base desta concepção está o recurso à ciência e tecnologia (biotecnologia, nanotecnologia e inteligência artificial), qual “Iluminismo humanista de raízes biológicas” – na linguagem trans-humanista.
Se o respaldo do humanismo clássico está na educação e na cultura como factores de transformação, para o pós-humanismo isso já não serve: a evolução far-se-á com base biotecnológica. Aliás, no sítio “Humanity Plus”
(H+, símbolo do trans-humanismo), podem visualizar-se conteúdos afins ao projecto, sob o signo – “não limite os seus desafios, desafie os seus limites”. Aí pode ler-se a “Declaração Trans-humanista” – manifesto da Associação Trans-humanista Mundial (1998).
De facto, o progresso biotecnológico abriu promissoras sendas para minorar o sofrimento e a debilidade humana, algumas já realidade; todavia, há outras, na fronteira da natureza humana, cuja superação pode ser tal que nos force à interrogação: somos ainda sapiens? Transferir, por ex., cérebros biológicos – moldados pela evolução biológica ao longo de milénios – para robôs, suscita questões de ordem ética, desde as ligadas à minha identidade (quem sou?), ao ponderoso tema mente/corpo, à capacidade de interacção do sujeito com o mundo, à ausência de emoções e paixões; ademais, a interrogação adensa-se, se o cérebro não carece dum corpo (sistema biológico) para interagir e responder à variedade de estímulos externos, impossível de processar-se num robô. Parece-nos que importa obviar a uma capacidade irrestrita da técnica, pois nem tudo o que se pode fazer, se deve fazer!

3. Quando escrevi o artigo mencionado, estava mais a pensar em Yuval Noah Harari, professor e historiador na Universidade Hebraica de Jerusalém, escritor hoje famoso pelo seu aliciante ‘best-seller’ – Sapiens (de animais a deuses): história breve da humanidade (2014) –, onde analisa as principais mutações desde o passado (Idade da Pedra) aos maiores avanços do século actual, e pelo livro que se seguiu, Homo Deus: história breve do amanhã (2015), onde descortina o devir da Humanidade; aí, quando o Homo Sapiens, à beira da extinção, dá lugar a uma nova espécie, pós-humana, ainda conjectura: “o que será da nossa sociedade, da nossa política e da nossa vida quotidiana, se algoritmos não conscientes, mas mais altamente inteligentes, nos conhecerem melhor do que nós mesmos?” Na sua espiral futurística, será possível os humanos alcançarem a imortalidade e desfrutarem da felicidade, assemelhando-se aos deuses; mas adverte, quando o Homo Sapiens desaparecer, qual algoritmo obsoleto e descartável, em vez de deus poderá tornar-se irrelevante, mero apêndice da tecnologia prevalecente!

4. No início, o autor proclama – o se já se mostrou falso –, em arrebate optimista: os humanos controlam os três maiores males experimentados pela humanidade – fome, pestes e guerra: “Pela primeira vez na história, mais pessoas morrem hoje por comer demais do que por comer de menos; mais pessoas morrem de velhice do que de doenças infecciosas; e mais pessoas cometem suicídio do que são mortas por soldados, terroristas e criminosos”. Recentemente, em entrevista ao Público, a terapêutica para a pandemia resume-se à cooperação e fronteiras abertas: “Os humanos são agora muito mais poderosos do que o vírus”, acrescentando: “Se confiarmos na ciência e se os países cooperarem efectivamente, não há dúvida que venceremos isto”. Tudo isso é verdade, mas é muito pouco para quem tão minuciosamente dissertou sobre os pós-humanos! Mas, sobre o assunto, há mais a dizer…

O autor não segue o denominado acordo ortográfico

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