sábado, 9 de maio de 2020

RESGATE DE UM CONTERRÂNEO - Luanda no "Verão Quente de 1975"

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No Verão Quente de 1975, eu estava em Angola, assisti a situações muito estranhas, e relato uma delas em que pude ser útil:
   
RESGATE DE UM CONTERRÂNEO - Luanda no "Verão Quente de 1975"

          No bairro Madame Bergman,  em Luanda (localizado antes da saída para Viana), morava um indivíduo da minha aldeia - o Chico, pessoa humilde, que lá tinha feito a tropa e ficado empregado como correeiro numa casa na baixa (Mutamba). Eu ia, de vez em quando, a casa dele beber um copo e dar dois dedos de conversa. Ele vivia com a mulher, um filho, ainda criança, e uma sobrinha, a Rosa, uma rapariga de uns 18 anos.
    Eu era o Comandante do "Aquartelamento Conjunto Engenharia/Transmissões", valências que se juntaram no anterior Quartel da Engenharia dentro dum planeamento de retracção das nossas Forças. Num determinado dia desse verão quente de 75, ia eu entrar no gabinete pelas 8H30 e já a Rosa me estava esperando à porta. Contou-me então que pelas 6H00 dessa manhã,  uns garotões armados do MPLA tinha aparecido e devassado a casa, dizendo que a  vinham revistar, à  procura de armas. Não encontrando nada, a não ser uma vulgar espingarda de caça ( e que todo o colono costuma ter). Confiscaram-lhe essa caçadeira, argumentando que "o que mata caça, também mata pessoa" e levaram o Chico preso para a Praça de Touros (que funcionava como Prisão, e para lá levavam muitos desgraçados, dos quais se lhes perdia o rasto). A mulher, que sofria do coração, entrou em colapso e só umas horas depois é que a sobrinha Rosa deixou a casa para ir ao Quartel  pedir-me ajuda. Ouvida a sua estória, lá tentei acalmá-la, dizendo-lhe que fosse para casa tratar da tia, que eu faria o que estivesse ao meu alcance.

    Telefonei então para o Quartel- General, onde havia oficiais meus conhecidos (e do meu tempo de AM). Consegui falar com um, que prometeu ajudar e se prontificou a accionar os contactos necessários com a sede do MPLA, em Vila Alice.
    Nesta altura já o MPLA era senhor da situação em Luanda, pois tinha desbaratado as sedes da UNITA e da FNLA ali existentes.
    Já a tarde ia adiantada, e eu pensei que o Chico tivesse sido recuperado, mas pelas 18H00, aparece-me novamente a Rosa no Quartel, dizendo que o Ti Chico continuava sem aparecer. Mandei-a novamente de volta e disse-lhe que iria diligenciar pessoalmente o assunto. Telefonei logo de seguida para o QG, ficando com a ideia "que tinham mais que fazer", mas aconselharam-me a ir à zona da Praça de Touros, pois havia lá uma força nossa tratando da segurança daquela área. Assim fiz e saí no carrito de comandante (WW carocha) para a referida área. Encontrando ali uma patrulha, perguntei pelo comandante. Levaram-me a ele e era um Ten. Cor. que tinha sido meu instrutor na Academia Militar - Amadora. Expliquei-lhe o assunto (de que ele não se admirou, pois já recebera outras queixas) e disse-me que fosse até à zona da Praça de Touros, pois enviara para lá um Unimog com um Sargento e algumas praças a dar caça a uns indivíduos que andavam a assaltar casas nas redondezas. Recebido o aval, desloquei-me para a dita zona de acção e logo me deparei com o Unimog em que o sargento estava orientando a caça a uns jovens meliantes  que iam fugindo pelos quintais... 
Deixei terminar essa cena rocambolesca e pude então explicar ao sargento que já tinha falado com o seu comandante, pelo que pretendia me acompanhasse até à Praça de Touros a fim de resgatar um conterrâneo que para lá tinha sido levado de madrugada e estaria lá preso. O sargento também não se admirou nada do que lhe contei e disse logo ter o maior prazer em ajudar no caso. Ele, melhor conhecedor do local, seguiu à minha frente com o Unimog  e as 4 praças. Parou junto à entrada do Portão da Praça de Touros e eu estacionei ao lado. À entrada da praça, estava um graduado FAPLA (Forças do MPLA) que vim a saber ser o comandante, acompanhado de 1 ou 2 elementos da sua tropa da guarnição.  
    Chegando à fala, disse-lhe então ao que ia (fazendo-lhe ver que era "simpatizante" da causa MPLA), mas que no caso presente, a prisão dum simplório colono meu conterrâneo, só poderia ser um engano que agradecia ele resolvesse com a sua autoridade... Elaborei mais alguma argumentação no sentido de "conquistar as graças". Depois de uns bons 5 a 10 minutos de conversa, perguntou-me finalmente o nome exacto da pessoa em causa e que lhe identifiquei como Francisco C.
"Vai lá chamar o camarada Francisco C", diz ele para o adjunto. Passado pouco tempo aparece o "camarada" Francisco C com uma camisola interior desalinhada e uns calçonitos, ou seja,  como o arrancaram da cama. É um indivíduo baixo, um pouco forte e de tês bastante morena. No entanto, estava branco como a cal da parede, o que provocou em mim uma reacção genuína, que me levou a perguntar-lhe:
"O quê, bateram-lhe??" (é claro que lhe tinham batido), mas ele, inteligentemente, disse "Não, não, ninguém me bateu" e pediu-me um cigarro que logo lhe dei.
    Voltei-me então para o Comandante: 
"Como vê, tratou-se de um engano, feito pelos vossos rapazes, jovens inexperientes, e assim sendo, agradecia que o libertasse, tendo até em conta o nosso bom entendimento institucional com o MPLA...".
O comandante da Praça estava a ficar indeciso ...um pouco baralhado, e depois de pensar um pouco, respondeu-me que só poderia fazer isso (libertar presos) com a autorização do CEM das FAPLA. Perguntei onde funcionava esse comando e ele disse-me que o gabinete era ali perto.
    Aconteceu então o momento decisivo, pois consegui, um tanto  abruptamente, tomar o controlo da situação:
"OK. Venha então  lá comigo… vamos aqui no meu carro e... Oh! Chico, suba ali para o Unimog". O comandante pareceu ficar escravo das circunstâncias, aceitou entrar no meu carro e o Chico subiu para o Unimog, junto às nossas praças.
    Levou-me ao gabinete do seu Chefe. Ali chegados, disse-me para esperar e  foi falar com essa entidade superior para explicar (à sua maneira, presumo) a situação, o que me viria a poupar tempo e trabalho mental. Depois dessa putativa arenga, veio então chamar-me. Entrei no gabinete da entidade e cumprimentei, ao que ele me disse já estar a par da situação. Virando-se, em jeito de conclusão, para o comandante da Praça, exibiu a sua autoridade,  proferindo:
 "Eu , já disse, prisões só com minha ordem...", e mais umas quantas considerações (para eu ouvir) e a que eu ia acenando concordantemente com tão lúcidas instruções.
    Agradeci então a atenção havida e elogiei as suas doutas instruções, cumprimentei e saí, alegre e aliviado.
    O Chico saltou do Unimog para o meu carro, agradeci ao comandante da praça de Touros e ao Sargento das nossas tropas (estas, conferiram uma certa persuasão para o bom desenlace da estória).
    Fui entregar o Chico à mulher que ao ver chegar o WW correu para nós, espalhando-se, mas sem qualquer gravidade. O coração, de que sofria, aguentou. As lágrimas das fortes emoções vividas e sofridas desde as 6h da manhã até às 20H, falaram mais alto!

    O, então recém promovido, Tenente Coronel, João A. B. S.
                       (Comandante do Aquartelamento Eng.ª / Tm)
    SãoPaulo da Assumpção de LUANDA, Agosto de 1975


2 comentários:

  1. O prazer que nos deu publicar esta "estória". Porque, ainda adolescente, vivi coisas idênticas. Mais um testemunho a conservar...

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  2. O Dr António O. Salazar bem podia ter resolvido as coisas a tempo e horas. Foram 13 anos de guerra para nada... E as guerras fazem-se exactamente para os políticos resolverem ou eliminarem as causas das guerras.

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