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Ex Vice-Reitor da Universidade do Minho - Doutorado pela Soborne |
Acílio Estanqueiro Rocha –
1. Sirvo-me do adágio latino – “a salvação do povo é a lei
suprema” –, que já era uma máxima do direito público romano para significar que
todas as leis particulares devem ter em vista o bem colectivo. Com este título,
também o filósofo espanhol Fernando Vallespín, no El País do passado dia 22 de
Março, salientou que “a democracia não é disfuncional para combater este tipo
de situações; é-o uma determinada forma de a exercer, aquela em que domina o
modelo de política adversária, isto é, alheia à própria ideia de bem comum (…).
Não podem existir inimigos comuns da polis. (…) Claro que há lugar à crítica,
senão perderíamos a nossa identidade democrática, mas sempre unidos e sem
descurar quem é o verdadeiro inimigo e como derrotá-lo”. Numa hora em que
soluções despóticas parecem seduzir, há que prestar muita atenção aos casos da
China, Rússia, Turquia, Hungria, e vários outros, cujos regimes mais ou menos
despóticos prosseguem uma política desapiedada – aí, a coerção brutal, as fases
e os números de vítimas da Covid-19 são mais que suspeitos –, muito longe da
política de transparência e de confiança que a democracia gera nos cidadãos.
2. A história humana é marcada por grandes crises, que
originaram mudanças imprevistas. O neuropsiquiatra francês Boris Cyrulnik, que
passou a infância em campos de concentração na Alemanha de Hitler (foi
analfabeto até à adolescência), a quem apenas restava a vida, a esperança e a
resiliência, formou-se depois em medicina e é hoje uma das maiores autoridades
na sua especialidade (vários livros traduzidos), e escreveu, lembrando a peste
negra (dizimou um terço da população europeia): “Antes da praga de 1348, os
servos existiam, mas a praga causou tantas mortes que foi necessário cortejar
os homens, e os camponeses, que, a partir de então, passaram a ser pagos,
exercendo um trabalho que antes era servidão”. Recorda também: “Quando eu vim
ao mundo, antes da II Guerra Mundial, não havia previdência social, nem sistema
de pensões”, referindo-se à mudança sociocultural “inevitável” após cada crise;
por isso, afirma: “é difícil prever; temos muitas informações ao mesmo tempo e
estamos um pouco confusos antes de começarmos a resistir a esse vírus”. O termo
que usa é resiliência: não estamos em guerra, mas organizamos “resistência”.
Importa transformar a provação em força; com esta virá a mudança, que será
profunda após o coronavírus: se essa é a regra, assim será depois desta crise.
3. Será útil deixarmos um pouco os ecrãs e as enxurradas de
notícias, e pensarmos no que somos, mais ligados à família, já menos
consumistas e mais ligados à Natureza, com novos comportamentos na saúde e no ensino,
novas condutas ecológicas, altruístas e solidárias; com mais teletrabalho,
tele-ensino, telemedicina. Útil será também andar mais cá dentro que viajar
mundo fora; um empresário dizia há dias: se é necessário um primeiro contacto
presencial no mundo dos negócios, os seguintes podem ser via skype (ou outra
plataforma). Deseja-se um mundo com mais equidade, mais mutualismo, mais
economia social, onde vencimentos de dezenas de milhares por mês sejam abusos
do passado (e uma vergonha!), mais tempo livre, mudanças muito claras em prol
do meio ambiente. O homem tem aviltado a Natureza e esta responde-lhe: não foi
o morcego, através do pangolim, que invadiu a actividade humana; foram os
homens que invadiram esferas que não lhes diziam respeito! O homem está agora
submetido a uma “coisa ínfima das mais ínfimas”, terrena, predadora e invisível
– um vírus.
4. Num momento único da história, o Papa Francisco, só, fala
na Praça de São Pedro vazia – nunca antes tal foi visto. A sua voz, num gesto
de “globalização da solidariedade”, quebrou o silêncio pesado das cidades e
ruas desertas, clamando: “Estamos no mesmo barco, ninguém se salva sozinho”. E
falou de médicos, enfermeiros, forças de segurança e protecção, sacerdotes e
religiosas, dos que laboram nos supermercados, transportes e limpeza, dos
voluntários – enfim, daqueles que estão na linha da frente. “É tempo de separar
o que necessário do que não o é” – realçou.
A actual pandemia devastadora traz-me ainda à mente a
corrente existencialista (pós-Guerras mundiais), cujos autores reflectiram
sobre a vulnerabilidade humana, a nossa fragilidade, o absurdo, a angústia, a
morte, a ansiedade, a responsabilidade, a autenticidade, o nada, a liberdade –
temas riscados da reflexão humana e que agora voltam em força –, desde o
filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard (vários livros traduzidos), autores
alemães (Martin Heidegger, Karl Jaspers), franceses (Gabriel Marcel, Albert
Camus e Jean-Paul Sartre), russos (Fiódor Dostoiévshi, Nicolai Berdiaef, este
depois francês), italianos (por ex., Nicola Abbagnano), espanhóis (Unamuno,
Ortega y Gasset), alguns portugueses (por ex., Vergílio Ferreira) – afinal, uma
grande corrente filosófica europeia que pensou a contingência da vida humana.
O autor não escreve segundo o denominado “acordo
ortográfico”.
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