quarta-feira, 8 de abril de 2020

“Salus populi suprema lex”

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Ex Vice-Reitor da Universidade
do Minho - Doutorado pela Soborne


Acílio Estanqueiro Rocha – Diário do Minho


1. Sirvo-me do adágio latino – “a salvação do povo é a lei suprema” –, que já era uma máxima do direito público romano para significar que todas as leis particulares devem ter em vista o bem colectivo. Com este título, também o filósofo espanhol Fernando Vallespín, no El País do passado dia 22 de Março, salientou que “a democracia não é disfuncional para combater este tipo de situações; é-o uma determinada forma de a exercer, aquela em que domina o modelo de política adversária, isto é, alheia à própria ideia de bem comum (…). Não podem existir inimigos comuns da polis. (…) Claro que há lugar à crítica, senão perderíamos a nossa identidade democrática, mas sempre unidos e sem descurar quem é o verdadeiro inimigo e como derrotá-lo”. Numa hora em que soluções despóticas parecem seduzir, há que prestar muita atenção aos casos da China, Rússia, Turquia, Hungria, e vários outros, cujos regimes mais ou menos despóticos prosseguem uma política desapiedada – aí, a coerção brutal, as fases e os números de vítimas da Covid-19 são mais que suspeitos –, muito longe da política de transparência e de confiança que a democracia gera nos cidadãos.

2. A história humana é marcada por grandes crises, que originaram mudanças imprevistas. O neuropsiquiatra francês Boris Cyrulnik, que passou a infância em campos de concentração na Alemanha de Hitler (foi analfabeto até à adolescência), a quem apenas restava a vida, a esperança e a resiliência, formou-se depois em medicina e é hoje uma das maiores autoridades na sua especialidade (vários livros traduzidos), e escreveu, lembrando a peste negra (dizimou um terço da população europeia): “Antes da praga de 1348, os servos existiam, mas a praga causou tantas mortes que foi necessário cortejar os homens, e os camponeses, que, a partir de então, passaram a ser pagos, exercendo um trabalho que antes era servidão”. Recorda também: “Quando eu vim ao mundo, antes da II Guerra Mundial, não havia previdência social, nem sistema de pensões”, referindo-se à mudança sociocultural “inevitável” após cada crise; por isso, afirma: “é difícil prever; temos muitas informações ao mesmo tempo e estamos um pouco confusos antes de começarmos a resistir a esse vírus”. O termo que usa é resiliência: não estamos em guerra, mas organizamos “resistência”. Importa transformar a provação em força; com esta virá a mudança, que será profunda após o coronavírus: se essa é a regra, assim será depois desta crise.
3. Será útil deixarmos um pouco os ecrãs e as enxurradas de notícias, e pensarmos no que somos, mais ligados à família, já menos consumistas e mais ligados à Natureza, com novos comportamentos na saúde e no ensino, novas condutas ecológicas, altruístas e solidárias; com mais teletrabalho, tele-ensino, telemedicina. Útil será também andar mais cá dentro que viajar mundo fora; um empresário dizia há dias: se é necessário um primeiro contacto presencial no mundo dos negócios, os seguintes podem ser via skype (ou outra plataforma). Deseja-se um mundo com mais equidade, mais mutualismo, mais economia social, onde vencimentos de dezenas de milhares por mês sejam abusos do passado (e uma vergonha!), mais tempo livre, mudanças muito claras em prol do meio ambiente. O homem tem aviltado a Natureza e esta responde-lhe: não foi o morcego, através do pangolim, que invadiu a actividade humana; foram os homens que invadiram esferas que não lhes diziam respeito! O homem está agora submetido a uma “coisa ínfima das mais ínfimas”, terrena, predadora e invisível – um vírus.
4. Num momento único da história, o Papa Francisco, só, fala na Praça de São Pedro vazia – nunca antes tal foi visto. A sua voz, num gesto de “globalização da solidariedade”, quebrou o silêncio pesado das cidades e ruas desertas, clamando: “Estamos no mesmo barco, ninguém se salva sozinho”. E falou de médicos, enfermeiros, forças de segurança e protecção, sacerdotes e religiosas, dos que laboram nos supermercados, transportes e limpeza, dos voluntários – enfim, daqueles que estão na linha da frente. “É tempo de separar o que necessário do que não o é” – realçou.
A actual pandemia devastadora traz-me ainda à mente a corrente existencialista (pós-Guerras mundiais), cujos autores reflectiram sobre a vulnerabilidade humana, a nossa fragilidade, o absurdo, a angústia, a morte, a ansiedade, a responsabilidade, a autenticidade, o nada, a liberdade – temas riscados da reflexão humana e que agora voltam em força –, desde o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard (vários livros traduzidos), autores alemães (Martin Heidegger, Karl Jaspers), franceses (Gabriel Marcel, Albert Camus e Jean-Paul Sartre), russos (Fiódor Dostoiévshi, Nicolai Berdiaef, este depois francês), italianos (por ex., Nicola Abbagnano), espanhóis (Unamuno, Ortega y Gasset), alguns portugueses (por ex., Vergílio Ferreira) – afinal, uma grande corrente filosófica europeia que pensou a contingência da vida humana.
O autor não escreve segundo o denominado “acordo ortográfico”.


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