Igreja matriz de Tabuaço |
Paolo Verones - 1570-75 |
Grande parte da tradição remota insiste na extraordinária Ressurreição do Senhor. E o que torna extraordinário o acontecimento não é o facto de os amigos e discípulos de Jesus o terem visto após a morte. Como ontem, as histórias de alucinações e visões são comuns. O que torna extraordinário o acontecimento é terem visto um ser humano real[2]. Em Lucas (XXIV, 36-43) os próprios discípulos espantados e assombrados por Jesus ter aparecido no meio deles julgaram estar na presença de um fantasma. Mas Jesus desafiou-os a tocarem-No. Como se mantivessem incrédulos, pediu-lhes algo para comer e enquanto O olhavam espantados, comeu uma posta de peixe assado. Era clara a mensagem. Nenhum fantasma o poderia fazer. A posição ortodoxa insistiu na Ressurreição literal.
Esta questão
verdadeiramente fascinante foi objecto das mais diversas argumentações e
objecções nos primórdios do cristianismo[3].
Após a sua colocação no
túmulo, e porque Jesus havia anunciado que ressuscitaria ao terceiro dia depois
da sua morte, os fariseus e os padres temendo que os discípulos fossem buscar o
seu corpo para depois anunciarem a sua ressurreição, solicitam a Pilatos que
sele o sepulcro e que aí coloque guardas durante três dias[4].
Apenas são descritas as
circunstâncias e o período de tempo: a noite, o túmulo cavado na rocha e os
guardas que irão ser representados artisticamente, adormecidos ou atemorizados
pela aparição de Cristo.
António
Tempesta (1555-1630),
New Testament,
The Resurrection,
In: Ilustrated Bartsch,
Vol 35/17, p. 92. |
A Ressurreição é, nos
primeiros séculos da cristandade, evocada simbolicamente pela cruz e pelo
monograma de Cristo. Mais tarde, no século IX, é simbolizado pelo sol e a
partir do século XI é representada de uma forma realista. Levantando o
estandarte do Ressuscitado com a cruz vermelha, símbolo da Ressurreição.
Normalmente representado numa posição estática, pousando o pé sobre o rebordo
do sarcófago. O tema de Cristo planando por cima do túmulo aparece em Itália a
partir do século XIV. A partir do início do século XVI passou a ser adoptado
pelas várias escolas alemãs. São exemplos disso, Albrecht Dürer e Mathis Nithart.
Os teólogos da Contra
Reforma impuseram, contudo, as suas regras iconográficas para este tipo de
representação. Juan de Ayala, em 1730, não estava de acordo que Cristo fosse
representado saindo da tumba aberta com um pé fora do sarcófago[5]. E não aprovava a
representação de Cristo flutuando sobre a tumba porque remetia para a Ascensão. Entendia que era melhor
representá-lo sobre a tumba fechada, com o corpo resplandecente, imaterial,
revestido com um pano vermelho, mostrando as chagas.
Da mesma forma não
concordava com a representação dos soldados dormitando porque era contrário à
disciplina romana. Pelo menos um devia ser representado desperto. Quanto à
assistência, todas as personagens deviam ser eliminadas porque, segundo os
Evangelhos, nenhum ser mortal havia assistido ao acontecimento. Nem mesmo a
Virgem deve ser representada. Na cena não deviam constar soldados
precipitando-se sobre as suas lanças nem mesmo um simples cão ladrando[6].
Francisco Pacheco
recomenda que se pinte Cristo com majestade e formosura. Com o seu manto roxo e
pano branco, com as suas gloriosas chagas descobertas e resplandecente de luz,
com a sua bandeira triunfante, acompanhado de anjos e serafins, com o sepulcro
fechado e os guardas dormindo. Dá como exemplo a estampa de Jerónimo Nadal. É,
porém, crítico em relação a quem pinta os guardas arremetendo contra o Redentor
ou defendendo-se com os escudos[7].
Georg Pencz (1500-1550), The Three Marys at the
Tomb.
Life of the Christ, 35 x 58
The Ilustrated Bartsch, Vol
16-8, p.98.
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As Santas Mulheres no Sepulcro
São João de Lobrigos - Santa Marta de Penaguião |
Ao alvorecer do primeiro
dia da semana, após o sábado, um grupo de mulheres dirige-se ao sepulcro onde
fora sepultado Jesus. Levavam unguentos. Por isso se chamam mirróforas. Os Evangelhos não referem um
número em concreto[8].
Normalmente são mencionadas quatro: Maria de Magdala, Maria mãe de Tiago,
Salomé e Joana.
Viram dois homens com
veste fulgurante (Luc. XXIV, 4), ou um jovem vestido
com uma túnica branca (Marc.XVI, 5), ou ainda um anjo descendo do céu (Math.
XXVIII, 2). A aparição do anjo, precedida por um terramoto que assusta as
mulheres e faz acordar os soldados, é uma autêntica Teofania. O anjo que é como um
relâmpago e a sua roupa, alva como a neve,
sentado na pedra que havia rodado desde a entrada do sepulcro, anima-as
dizendo-lhes que Cristo, o crucificado, não estava ali (Marc. XVI, 57). Iria à
sua frente à Galileia[9]. É, porém, João que conta
o episódio que inspiraria a iconografia de Noli
me Tangere (Joh. XX, 11-18) difundida no Oriente e mais tarde no Ocidente[10].
São João de Lobrigos - Santa Marta de Penaguião |
Este tema está presente
na arte paleocristã dos primórdios mas iconograficamente desenvolveu-se durante
os séculos XI e XII. A imprecisão evangélica permitiu aos artistas uma grande
liberdade de representação. O número das Santas
Mulheres oscila entre as duas e as quatro. Numerosas vezes são
representadas três.
Noli
me tangere
Este episódio, inspirado
em João (XX, 11-18), resume-se ao encontro de Maria Madalena com o
Ressuscitado, a quem confunde, no princípio, com o jardineiro ou guardião do
sepulcro. Quando se apercebe que era o Mestre tenta tocar-Lhe exclamando: Rabboni! Contudo, Jesus proíbe-lho com o
pretexto de ainda não ter subido para perto do Pai[11]. Jesus, com esta atitude
perante Madalena, procurava insinuar um novo tipo de relações. As suas ligações
terrenas estariam doravante rompidas.
Anonymous Artists (1476-77)
The Ilustrated Bartsch, Vol 162,
p. 172.
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Jan Bruegel, o jovem, Noli me Tangere, 1601-1678. |
Marcos (XVI-9) também
relata o episódio. O evangelista precisa mesmo que o Ressuscitado apareceu
primeiro a Maria Madalena (Maria Magdala), a quem havia expulsado sete
demónios.
Na iconografia habitual
do “ Noli me tangere “, Jesus afasta Madalena que se lança e inclina na sua
direcção apaixonadamente, ajoelhando-se. Normalmente é representado com uma
enxada. Por vezes aponta o céu com uma mão e com a outra afasta Madalena[12].
[1] Ao
contrário, por exemplo, do apócrifo de Pedro.
[2]
PAGELS, Elaine, Os Evangelhos Gnósticos,
Via Óptima, Porto, 1999, p. 35.
[3]
Alguns mestres gnósticos propunham uma visão contrária à futura ortodoxia. O
autor do Evangelho de Maria, um dos
poucos textos gnósticos descobertos antes de Nag Hammadi, interpreta as
aparições da Ressurreição como visões recebidas em sonhos ou em transes
extáticos (10. 17-21). O Apocalipse de
Pedro, conta como Pedro, em transe profundo, viu Cristo (83, 8-10). O Evangelho de Filipe chega mesmo a
ridicularizar os cristãos ignorantes que tomam a Ressurreição de forma literal
(73, 1-3). Para estes mestres gnósticos, como por exemplo Valentim, só os seus
evangelhos ou revelações divulgavam os verdadeiros ensinamentos secretos de
Jesus (constatam-se algumas semelhanças em Mateus - XIII-11- ou em Paulo - II
Coríntios XII, 2-4-), que relatavam inúmeras estórias sobre Cristo
ressuscitado. Mas sobre o ser espiritual que Jesus representava e não sobre o
Jesus meramente humano, o Rabi de Nazaré (cf. ANTÓNIO, Piñero, TORRENTS, José
Montserrat, DAZÁN, Francisco Garcia, Biblioteca de Nag Hammadi, Vols I, II e
III, Esquilo, 2005).
[4] Tertuliano no Apologético (21,20) dá seguimento a esta tradição. Os autores dos
Evangelhos Apócrifos relatam em detalhe todo o processo da condenação, Crucificação e Ressurreição. Quanto a este último acontecimento, o Evangelho de Pedro (35-44) é peculiar.
Descreve uma cena completamente diferente da de outra qualquer fonte, canónica
ou apócrifa. Os relatos apócrifos, como por exemplo os evangelhos de Nicodemo (12,3) e Gamiel (3,43), relatam outras tradições. Informam que os judeus
pagaram aos guardas para que estes dissessem que o corpo de Jesus havia sido
roubado de noite pelos discípulos, pondo, deste modo, em causa a sua
ressurreição.
[5]
RÉAU, Louis, Tomo1, vol. 2,
p. 570.
[6] Porém, os guardas
foram sempre elementos essenciais nestas representações. A sua presença é
ignorada por Marcos, Lucas e João. Foram posteriormente introduzidos tanto na
lenda como na iconografia por razões apologéticas, com o objectivo de refutar a
acusação feita pelos judeus, que insinuavam que o cadáver de Jesus havia sido
retirado clandestinamente pelos seus discípulos. A sua indumentária varia com a
época. Normalmente, em vez de serem representados como legionários romanos,
são-no como militares da época das cruzadas. As suas reacções são bastante
expressivas. Frequentemente deslumbrados com a aparição.
[7]
PACHECO, Francisco, p. 650.
[8]
Em João (XX-1) apenas é referida Maria de Magdala. Mateus (XXVIII, 1-7) enumera
duas: Maria Madalena e Maria Cleofás. Marcos (XVI-1) refere três: Maria
Madalena, Maria, mãe de Santiago (ou seja Maria Cleofás) e Maria Salomé.
Finalmente Lucas (XXIV-10), às duas Marias e a Joana junta um número
indeterminado de Santas Mulheres.
[9]
Esta cena é também descrita na literatura apócrifa que temos vindo a referir.
[10]
Segundo Marcos e João, Jesus apareceu primeiro a Maria Madalena, antes deste
episódio. Para resolver este problema, tornou-se corrente afirmar que as Santas Mulheres eram as irmãs da Virgem:
Maria, mãe de Tiago e Maria Salomé.
[11]
Esta proibição tem levado os exegetas a várias reflexões, tanto mais que, de
seguida, obrigará Tomé a provar a realidade do seu corpo ressuscitado. Por isso
se tem procurado, diversas vezes, traduzir a passagem evangélica por “não me
detenhas “ em vez de “ não me toques “. Alguns especialistas entendem que a
tradução do grego foi mal feita.
[12]
Contudo, para este tema existem duas versões. A primeira que representa “Noli
me tangere”, propriamente dito. Cristo ordena à santa que lhe não toque. No
século XIII é representado envolto na mortalha sustendo a cruz em haste da
Ressurreição. No século XIV é representado como um jardineiro ou hortelão. Com
um chapéu de palha que lhe cobre a cabeça, sustentando a cruz em haste. No
século XV é representado como hortelão levando, por vezes, a enxada ao ombro.
Madalena ajoelha-se a seus pés numa cena ao ar livre. Na segunda variante
Cristo toca a fronte de Madalena.
Parabéns por trabalho tão bem concebido e ilustrado. Jorge
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