quinta-feira, 26 de março de 2020

Saudades

Saudades

por Cristina Torrão -  Delito de Opinião
Grande parte dos estudantes, na Alemanha, vai para a escola a pé, ou de bicicleta. O ensino privado não está tão disseminado como em Portugal, a esmagadora maioria dos alunos frequenta o ensino público, o que quer dizer que as escolas ficam relativamente perto de casa. Mesmo grande parte dos alunos da 1ª classe vão a pé, normalmente, em grupos, depois de, no início do ano lectivo, terem sido acompanhados, alguns dias, ou algumas semanas, pelos pais, ou adultos da sua confiança. Ao concluírem a primária (que, aqui, ainda se mantém nos quatro anos de escolaridade), começam a ir de bicicleta.
De manhã, quando saem todos de casa praticamente ao mesmo tempo, os passeios e as ciclovias pertencem-lhes. Não é novidade que a infância e a juventude se caracterizam por enormes cargas de energia por gastar, desejo de experimentar e pouca vontade de cumprir regras. Quando eu passeava a minha cadela Lucy, uma Jack Russell Terrier, ou seja, de porte pequeno, via-me aflita para a proteger dos magotes de adolescentes ciclistas em gincana, ou grupos de alunos da primária aos gritos e empurrões uns aos outros. Adorava, assim, as férias escolares. Respirava fundo e gozava o sossego, principalmente, na Primavera, com os arbustos e as árvores em flor e o chilreio dos pássaros. Só tinha de segurar a Lucy se algum esquilo atravessasse o passeio à nossa frente, em busca da próxima árvore.
Sim, o rebuliço irritava-me. Hoje de tarde, senti falta dele. Esteve um dia fantástico, cheio de sol, embora a temperatura não passasse dos doze graus. Para dar passeios, até é melhor assim, não se corre o risco de começar a suar, ao fim dos primeiros vinte minutos de caminhada. Na zona onde vivo, felizmente, ainda se pode sair de casa, caso se respeite a distância de, pelo menos, dois metros das outras pessoas e não se formem grupos maiores de duas, exceptuando agregados familiares, ou pessoas que vivem na mesma casa. No concelho de Stade, a situação mantém-se controlada. Há cerca de 80 infectados, num universo de 200.000 habitantes, e ainda não morreu ninguém. A população, em geral, acata as regras impostas. Ontem, no supermercado, também toda a gente respeitou as distâncias, mesmo na fila da caixa.
Saí sozinha. O meu marido estava ainda no seu teletrabalho e a nossa Lucy morreu, em Outubro passado, a duas semanas de completar o 16º aniversário. Não tive dificuldade em manter a distância de segurança, pois quase não vi ninguém. E atingiu-me uma sensação estranha. Como se sabe, os Invernos são muito rigorosos, por estas paragens. Vindo um dia bonito de Primavera, o normal é os alemães andarem nas ruas, muito satisfeitos, alguns já de t-shirt, como se estivessem, pelo menos, vinte graus, e os parques infantis estarem repletos de crianças nas suas brincadeiras (poucos alunos têm aulas de tarde).
Senti uma saudade imensa do rebuliço e das tangentes que os adolescentes me faziam com as suas bicicletas, a grande velocidade. E senti falta da Lucy, que adorava dias destes. Roçava as costas na relva e deixava-se afagar pelas crianças que se encantavam com a sua presença. A Lucy era uma doçura, gostava mais de humanos do que de outros cães. Nunca me lembro de ela ter ladrado a alguém (já nem falo em morder), adorava toda a gente. Uma vez, um miúdo até me perguntou se eu lha vendia…
Não foi fácil lidar com a tristeza, estava mesmo a ver que desatava a chorar. Mas depois lembrei-me de como somos ainda uns privilegiados, enquanto nos mantivermos saudáveis, bem alimentados e possuirmos uma casa confortável. O vírus deixou-nos sem tempo para pensar nos refugiados, nas guerras, nas crianças que morrem de fome...
Nunca venceremos a doença, nem as catástrofes naturais. Mas não poderíamos vencer os ódios, as injustiças, o abuso de poder, as desigualdades sociais? Não estaríamos assim mais fortes para lidarmos com situações destas? Sim, eu sei, é utópico. Não há um Planeta B e ninguém parece importar-se com isso.
2014-06-10 Azibo 87.JPG

2 comentários:

  1. Boa noite Cristina Torrão:
    são 23,20 de Sábado. Consulto o Tempo Caminhado, blog do nosso quase comprovinciano Armando Palavras e reparo no seu belíssimo texto sobre«Saudades».
    Nunca tinha lido colaboração sua e fiquei muito feliz por reencontrá-la.
    Parabéns por esta surpresa pois desde que a propus para membro da Academia de letras de Trás os-Montes nunca mais voltámos a contactar.
    Continuo a investigara vida e obra de D. Afonso Henriques e gostava de contá-la entre sócios da Grã Ordem Afonsina cuja legalização como Associação cultural e com personalidade Jurídica ocorreu em 13 de Fevereiro de 2019.Sou o presidente da Direção e estamos a formar uma entidade nacional para celebrar em 24 de Junho de 2028 os 900 anos do nascimento de Portugal. Gostava de convidá-la para representante da Grã Ordem Afonsina aí na Alemanha.Como ilustre Escritura que é, com provas dadas em livros que eu possuo, tê-la neste elenco de Portugueses seria para mim uma honra. Se esta mensagem lhe chegar às mãos diga-me algo de positivo sobre este apelo público. Renovo parabéns e proteja-se contra o COVD-19. Barroso da Fonte barrosodafonte@gmail.com

    ResponderEliminar
  2. Caro Barroso da Fonte, tomei agora conhecimento desta sua mensagem e amanhã responderei por email, estou agora com falta de tempo.

    Um muito obrigada também ao Armando Palavras por ter partilhado este meu texto e por se ter dado ao trabalho de ir pôr um comentário ao Delito de Opinião, informando-me da mensagem.

    ResponderEliminar

O "bairro dos retornados e pretos".

  Antonio Cunha   @AntonioCunha79   Cresci num dos piores bairros da margem sul, onde os meus amigos não podiam ir brincar pq era o &q...