Grande transmontano!
CULTURA 17 de fevereiro 2020
Filho de agricultores de Mirandela, é talvez o maior especialista português
na castanha, sua história, cultura e tradições. Conta-nos como percorreu
milhares de quilómetros para registar a memória imaterial deste fruto e que
visita um castanheiro doente como se fosse um amigo.
Nasceu na aldeia de Chelas, concelho de Mirandela, e ali fez a instrução
primária. Depois da tropa em Mafra, passou pela Guiné em 1973 e 74. De regresso
a Portugal licenciou-se em História. Hoje é talvez o maior especialista na
castanha, sua história, cultura e tradições. Para recolher a memória imaterial
deste fruto tão apreciado pelos portugueses, percorreu milhares de quilómetros
pelo país fora. Partilhou o que descobriu em livros como Memórias da Maria
Castanha (edição de autor) e valoriza cada nova descoberta como uma
preciosidade. Ontem, dia 14, discursou na cerimónia de entrega da distinção de
‘árvore do ano’ ao Castanheiro dos Vales (freguesia de Tresminas, Vila Pouca de
Aguiar), que foi classificado ‘árvore de interesse público’ por sua iniciativa.
De onde lhe vem este interesse pela castanha? Tem alguma coisa a ver com memórias de infância?
De onde lhe vem este interesse pela castanha? Tem alguma coisa a ver com memórias de infância?
As memórias de infância não são muitas, mas são bonitas. Nasci e passei a
infância numa aldeia rodeada por dois rios, o Rabaçal e o Tuela, que se juntam
ali e formam o Tua. Em novembro, os tios da minha mãe desciam da Serra dos Passos
e vinham à aldeia deixar um saco de castanhas.
E como eram cozinhadas?
A minha mãe só fazia cozidas ou no assador, nos magustos. Os serões também
eram importantes. Até ao meu 7.º ano [atual 12.º] não havia luz na aldeia, só
havia candeias a petróleo, aqueles petromax. Vinha sempre uma pessoa ou outra
que o meu pai convidava para a nossa casa, e passávamos o serão com um copo de
vinho, umas castanhas assadas, conversa e histórias. Mas a minha mãe não tinha
tradição de pratos de castanhas, toda essa magia das receitas só a descobri
mais tarde.
Foi sobretudo na Galiza que fez essa
descoberta?
Na Galiza, um dia dei com um souto [um pomar de castanheiros] antigo que
dizia: ‘Nós vimos nascer todos os habitantes desta terra, vimos nascer os
vossos avós, os vossos pais’. Aquilo teve impacto em mim: eles preservavam as
árvores antigas e nós fazíamos o contrário. Já estávamos no período em que se
arrancavam os olivais, até olivais centenários.
Embora Portugal tenha a mais antiga lei de
preservação de árvores e monumentos vegetais, de 1938...
Sim. Mas a busca desenfreada de riqueza de um momento para o outro com os
subsídios da União Europeia gerou as maiores barbaridades no mundo rural. E as
maiores fraudes.
Esses serões que mencionou eram à volta da
lareira?
À volta da lareira. O que a terra dava as pessoas tinham em abundância.
Havia sempre lenha, batatas, feijão, grão de bico, figos, por aí fora. Não
havia fome. Aquilo que não se produzia lá, como o arroz, é que era quase só nos
momentos de festa. E nem todos chegavam às castanhas, por exemplo, porque não
as produziam. A minha zona é uma zona de terra quente, de azeite, vinho e
figos, que na altura eram importantes na alimentação no inverno. A minha mãe
tinha sempre uma arca grande de figos para os porcos e os cães. E tinha uma
outra de figos tratados – escaldados, todos passados, enfarinhados, uma coisa
maravilhosa – para nós. Havia sempre essa questão da abundância, da dispensa,
dos porcos, etc. E a castanha, como o tempo era mais frio do que hoje,
conservava-se melhor. Hoje aconselho as pessoas a comerem a castanha no espaço
de uma semana, máximo duas. Este ano foi terrível. Há muita castanha estragada.
Como começou então a interessar-se pela
castanha e a sua história?
Não me conformava que nas feiras e festas da castanha só houvesse castanha
em verde. Não havia castanha cozida, não havia sequer castanha assada, e bolos
de castanha ou outros pratos nem pensar. Na Galiza estavam a fazer diferente.
Na altura era professor e andei dois ou três anos a insistir para ver se as
escolas faziam trabalhos. Ao cabo de dois, três anos, pensei: ‘Se eles não
fazem, vou fazer eu’. E comecei a imaginar um caderno de receitas que desse uma
base às pessoas para fazerem uns bolos, uns pratos, um caldo de castanhas. Mas
distraí-me um bocado e quando dei por ela tinha informação que dava para um
livro. Saiu com duzentas e tal receitas, desde as entradas aos licores. A
partir daí percebi que não sabia nada de castanhas. A palavra mágica foi
‘falachas’.
É o pão mais primitivo que temos, que ainda se vai fazendo no Baixo Douro –
Régua, Resende, Lamego e Cinfães. Fiz para aí 600 quilómetros para conseguir
ver fazer falachas. A partir daí fiz outro livro, que ficou meio cultural, meio
gastronómico. E só depois desse tomei a decisão de registar a memória imaterial
da castanha. Aí foram milhares de quilómetros.
Esse trabalho resultou em dois livros –
Memórias da Maria Castanha e Maria Castanha – Outras Memórias. Por onde
começou?
O que me deu força para fazer esses dois livros foi sentir os nossos
antepassados a dizerem: ‘Esta memória tem que se fixar e se tu não fazes,
ninguém vai fazer, desaparece tudo’. E não foi fácil. Muitas vezes não tinha
tempo nem para comer. Passei de tudo. Naqueles sítios mais generosos acabava a
conversa e já tinham a mesa posta sem eu ter de perguntar. E ouvi histórias que
me tocaram muito.
Pode dar um exemplo?
Houve uma pessoa que me falou de um café da água de castanhas com uma
aguardente de medronho com uma felicidade imensa. Como é possível beber uma
água onde foram cozidas as castanhas com um bocadinho de aguardente e achar que
aquilo é do outro mundo? Podemos ser felizes com pouca coisa.
Desde quando há castanheiros em Portugal?
O castanheiro é autóctone. Na Serra da Estrela existe desde há cerca de
oito mil anos. Os romanos não a trouxeram, mas foram quem mais incrementou e
desenvolveu a cultura da castanha. Associavam-na às glandes de Júpiter. O
próprio Plínio, o Moço, dizia que a castanha é afrodisíaca. Se é, se não é...
Na Albânia chamam ‘castanhas’ aos peitos das meninas quando estão a
desenvolver. E os nossos romanceiros estão cheios de alusão à castanha
associada à virgindade. ‘Menina que está à janela, com licença do seu pai,
tenha cuidado com o ouriço, que a castanha já lá vai’ [risos]
Há sempre uma conotação mais maliciosa...
Um dia, estava na serra de Montesinho com um grupo da Confraria da Castanha
e citei o Plínio. E eles: ‘Não vejo porque é que a castanha é afrodisíaca’.
Então mandei-os cheirar o aroma dos candeeiros, aquelas flores das candeias do
castanheiro, para verem se não cheirava a esperma. E cheira, tem um cheiro
muito parecido.
Também há tradição de castanha noutros
países da Europa?
Os italianos são tremendos. É o país da Europa que mais castanha produz e
mais castanha consome. Eles fazem tudo: cerveja, açúcar, tudo o que possa
imaginar. Comem castanha de todas as maneiras. E em França também há tradição.
A cultura da castanha não tem dificuldade nenhuma, é só plantar a árvore, ou
brotou naturalmente, e apanhar as castanhas, mais nada. Salvo erro, Luís XV de
França pensou se havia de cortar os castanheiros, porque nas zonas que tinham
castanha as pessoas quase não trabalhavam. Antes dos Descobrimentos, e mesmo
mais tarde, a castanha fazia as vezes do feijão, do milho e da batata. A batata
só no século XVIII é que começou a popularizar-se. Olhavam-na com desconfiança.
Os russos até diziam que era diabólica – como saía da terra, produto bom não
podia ser. Depois o próprio Luís XV fez um decreto: mandou que as pessoas todas
comessem batata, porque a batata produz bastante e naqueles anos de míngua evitava
que o povo tivesse fome. Todos eram obrigados mas ninguém comia. Então plantou
batatas nos jardins de Versalhes, e mandava os empregados guardar durante o
dia. Mas à noite os guardas saíam, e então houve quem começasse a ir lá
roubá-las. Se eram para o rei, deviam ser boas para comer...
A castanha era, por excelência, a refeição
de sobrevivência dos pobres, não era?
Chamavam-lhe até ‘o pão das serras’. Em Portuzelo, ao pé de Seia, ouvi uma
coisa que me tocou imenso. Uma senhora a explicar que eram dez ou onze irmãos,
pobres, e à noite a mãe – dói ouvir estas coisas – pegava numa malga do caldo,
cozia castanhas e dava uma malguinha a cada um. E era a refeição deles – se
calhar a melhor que tinham durante o dia. Penso que hoje a humanidade não
estaria no mesmo ponto civilizacional se não fosse a castanha ao longo dos
séculos. Na Idade Média, em anos de fome, de má produção agrícola, os reis
proibiam a exportação de castanhas.
Porque era essencial...
Era essencial. Quando alguém queria abrir um comércio, ou loja, era
obrigado a ter sempre castanha. Era um produto barato mas que matava a fome às
pessoas. O castanheiro não precisa de terras muito férteis para produzir.
Produz em terras secas e sobretudo quer terras frescas, não expostas, nas
encostas viradas a nascente ou a norte.
Embora seja alimento de sobrevivência
também é associado à festa, ao magusto. De onde vem essa tradição?
A castanha aparece num dos quatro momentos-chave do ano, o outono, que
coincide com a altura em que se iniciava o ano celta, de 31 de outubro para 1
de novembro. E era motivo de festejo, como nós festejamos hoje o ano novo. O
magusto era uma festa no campo, uma celebração. E era um momento de libertação,
permissivo, licencioso. Os jovens nessa altura tinham autorização de ir para os
montes, a floresta – tudo o que brotava da terra era visto pelos nossos
antepassados celtas como sagrado. A floresta era o ‘mosteiro’ deles. Esses
magustos duravam até de madrugada. Depois coincide com a chegada do vinho novo.
Castanhas e vinho são uma associação feliz. E a própria castanha no magusto – o
rebentar, o sujar as mãos – provoca momentos de libertação, que antigamente não
eram muitos.
Fale-me então das suas peregrinações. Por
onde se começa quando se vai fazer uma pesquisa dessas?
Fui pesquisando e vi os locais onde havia mais castanha. A Guarda, Fundão,
Arganil, Oleiros, Sertã, etc., são zonas que tinham bastante castanha, mas os
castanheiros têm muito mato em volta e os incêndios têm queimado quase tudo.
Depois fui avançando e tudo o que descobria era novo. Se me dão uma palavra
nova, um dito, um provérbio ou uma quadra, valorizo mais isso do que uma
prenda. Para mim era uma magia ouvir que nos magustos, quando apanhavam duas
castanhas juntas, um convidava outro para ficarem compadres, ou como sopravam
uma castanha para ver se era menino ou menina, vitelo ou vitela. Chegava a
levantar-me de madrugada, ir para a estrada, dividir as horas – duas aqui, uma
e meia além, etc., – e ao fim do dia nem me sentia cansado. Das coisas que me
tocaram mais foi um dia em que me indicaram-me um pastor de noventa e tal anos
em Seia. Sentámo-nos no topo da serra, estava um dia muito límpido, penso que
víamos o mar. Nunca vi pessoa tão feliz como aquele pastor da Serra da Estrela.
Conversámos imenso, registei saberes imensos, mas o que me deu mais alegria foi
vê-lo feliz.
Como encontra essas pessoas? Vai ao café e
pergunta?
Às vezes era assim, mas a maior parte dos casos era programado com os lares
de idosos e centros de dia. As animadoras sociais, que são a alma de um lar,
preparavam-nos para eles recordarem, porque não é fácil ir buscar essas
memórias. E muitas vezes elas próprias registavam. Algumas faziam trabalhos
melhores do que algumas teses de mestrado da universidade que eu vi. Depois
aquela informação era toda tratada e verificada. Exigia telefonemas e mais
telefonemas e às vezes até voltar ao local.
Falou da memória imaterial. Se não fosse
esse seu trabalho de pesquisa, provavelmente esses saberes iam-se perder?
Houve certos sítios que quando lá cheguei tive a sensação de que devia ter
ido cinco ou dez anos antes. A gente aprende indo aos locais e ouvindo as
pessoas. Isso fez com que eu desse mais ouvidos ao saber transmitido ao longo
dos séculos, mas claro que tem de ser cruzado e verificado. E depois é preciso
ver com os nossos olhos. Vi como se fazem as falachas e tive a honra de ter
como amigo a primeira pessoa que fez marron glacé na Península Ibérica, o José
Posada. Morreu de ataque cardíaco – foi uma pena, tínhamos uma merenda para
fazer debaixo de um dos maiores castanheiros da Galiza.
Como se faz o marron glacé?
A castanha é descascada automaticamente, mas de uma maneira menos agressiva
do que o descasque da castanha descongelada. Depois de descascada vai num
tabuleiro para um tanque com xarope e está ali dois ou três dias. Retiram-nas
dali, põem noutro tabuleiro, e passa por três ou quatro tanques diferentes,
cada vez mais densos. No fim é seca e embrulhada como se fosse um bombom. Isso
provém de os romanos terem o hábito de conservarem os produtos secos em ânforas
de mel, e foi uma prática que passou talvez através dos mosteiros.
Mencionou esse castanheiro da Galiza.
Ainda temos muitos castanheiros notáveis em Portugal?
Temos alguns. Nem todos têm sido muito bem tratados. Recordo-me que em
Vinhais, junto a Castanheira de Alvarelhos, mesmo pegada à vila, tinha lá uma
castanheira que era bastante frondosa...
Espere aí: castanheira ou castanheiro?
É engraçado que nalguns sítios, quando são muito grandes, chamam-lhe
castanheira. Noutros sítios só quando são pequenos é que lhes chamam
castanheira. Depende do lugar. Nas Beiras, na zona da Gardunha, existia na Mata
do Alcaide o maior castanheiro de sempre do país. O povo chamava-lhe Taloca das
Almas. Dava para lá meter uma junta de bois dentro do tronco.
O tronco era oco?
Taloca: o próprio nome indica isso. Chamavam-lhe a Taloca das Almas porque
corria o dito que aqueles que não respeitavam os feriados e os domingos, que
trabalhavam nesses dias, em vez de irem para o céu ficavam por ali como almas
penadas e acoitavam-se no tal tronco do castanheiro. Penso que aí por volta de
1940 acabou por sucumbir devido a um raio. Seria talvez do tempo de D. Dinis,
que foi quem mandou plantar toda aquela mata. Depois havia outro castanheiro em
Aldarete, na Régua, nas fraldas do Marão, virado a nascente, que também era
grande. Vivia lá uma família.
Permanentemente?
Sim, sim. Era a casa deles. E não viviam mal. Tinha uma portinha e até
tinham um tear lá dentro.
Ainda há vestígios?
Só o buraco. Depois temos um castanheiro ainda vivo, mas já bastante doente,
na estrada Guarda-Pinhel, em Pêra do Moço, o castanheiro de Guilhafonso.
Disse-me um engenheiro que ele tinha cancro e tinha a doença da tinta, que é
mais primitiva, são os fungos que entram pela raiz. Visito-o sempre como visito
qualquer amigo. É capaz de haver uns dez ou doze castanheiros classificados.
Entre mortos e vivos devem ser duas dúzias.
Sei que há uma história relacionada com os
postais que aparecem na capa dos seus livros da Maria Castanha. Pode contá-la?
Isso foi no Gonçalves, um colecionador que tinha uma casa num 5.º andar da
Rua do Crucifixo. Vendia postais e fotografias antigas. Fui lá procurar postais
e encontrei dois que me agradaram. Disse que queria aqueles postais e
passei-lhe o cartão de crédito para a mão. Ele começa a fazer contas: ‘Cento e
não sei quanto... duzentos e tal euros’.
Por dois postais?!
E diz: ‘Duzentos euros’, como quem já está a fazer um bom preço. Estavam
mais pessoas, ele tinha o cartão na mão e eu tive receio de dizer que não
queria. Às vezes conto esta história a amigos, mas nunca contei à família.
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