Segue o primeiro fragmento que seleccionámos para publicar neste espaço, retirado do livro "Lagoaça, Loisas e outras Coisas", de autoria de José Veríssimo.![]() |
| José Veríssimo |
Como principal fonte na receita da economia doméstica, desde
os primórdios ocupou um lugar de destaque como símbolo de abundância, de
riqueza económica e de fertilidade. As inúmeras esculturas zoomórficas
representando berrões, são prova do quão importante tem sido o porco, desde a
ancestralidade, nas gentes transmontanas.
Nos meses de dezembro e janeiro, se a
lua o permitisse, era raro o fim-de-semana, em que não houvesse matança de
porco. Os grunhidos de despedida do condenado e o cheiro a chamusco[1]
e palha queimada dos fachoqueiros[2],
assinalavam a sua presença. Ao longo das ruas, bancos da matança, após o dever
cumprido, enfeitavam as fachadas das casas, a escorrer depois de lavados.
Outros, em pose adequada ao sacrifício, suportavam o porco rodeado de homens
que, como se de um ritual se tratasse, executavam gestos cujas repetições se
perdiam no tempo. E nós, os mais novos, indiferentes ao ato, seguíamo-lo
atentamente, aqui e ali ajudando, outras vezes questionando, brincando com as
unhas soltas[3],
ou jogando com alguma bexiga cheia de ar e amarrada na ponta de uma cana[4],
ou servindo de bola. Sem perder pavio íamos acumulando aquele saber ancestral
que se ia transmitindo. Das tradições da aldeia, o dia da matança, com exceção
das parvas[5], superava o
Natal e outras festividades no reforço dos laços familiares e de vizinhos mais
chegados. Enquanto nas restantes festividades o almoço se restringia
praticamente só aos da casa, nas referidas era abrangente e não era só pela
necessidade de entreajuda, existia algo mais que não consigo explicar. O dia
começava na véspera por pôr palha limpa na loije[6] ou na cortelha, colocar em lugar acessível
todos os utensílios indispensáveis: colmo[7], banco,
corda, facas velhas ou pedaços de arco de pipo para raspar, pedras de bernaz[8] para
esfregar, aguçadoira, facas, alguidares, panelas... Na cozinha a lareira
reforçada aquecia as panelas de ferro, dispostas em volta do brasido e a mesa
posta com figos secos, grãos de amêndoa, pão, queijo de ovelha e água ardente,
aguardava a chegada dos intervenientes para o desinjum[9].
Espaçadamente iam chegando e após todos presentes e comidos, dirigiam-se para a loije onde o porco aguardava pacificamente.
Laçado no focinho era levado à força até ao banco do sacrifício e, depois de
deitado, seguro no cachaço pela corda de encontro ao banco e por um aglomerado
de braços que lhe dificultavam os movimentos de fuga, o matador tomava posição
e, uns centímetros à frente do osso da suã[10], num gesto
preciso espetava a faca, dirigida ao coração e o sangue jorrava para o
alguidar, seguro por uma mulher mais destemida. Em infrutífera luta o porco
gastava as suas últimas forças e quedava inerte. Estava morto. Com a ajuda de
fachoqueiros iniciava-se a queima dos pêlos, enquanto outros homens iam
raspando com arcos de pipo ou facas velhas, a pele empolada ao longo do corpo
do bicho. Feito isto, tinha início a lavagem da pele que com a ajuda de pedras
de bernaz, previamente escolhidas
para não golpearem, era esfregada e, posteriormente, raspada com uma faca
afiada para retirar os pêlos mais teimosos. Por essa altura alguém aparecia com
um prato de sangue cozido, cortado em pedaços pequenos e temperados com azeite, vinagre, alho e piripiri, acompanhado de pão e de vinho. Parava-se para saborear
o pitéu. Estômago acomodado, lavava-se o banco e colocava-se o porco de barriga
para o ar, quatro homens seguravam-lhe as patas e o matador dava início ao
abrir do porco, depois de ter feito o cu[11]. Com
gestos cirúrgicos efetuava dois cortes paralelos da garganta até ao ânus e
retirava a barbada[12];
seguidamente cortava o pão de unto[13] e tirava
as tripas, separadas do fígado (estas eram retiradas para um alguidar que
prontamente uma ou duas mulheres levavam para dezintretenhar[14], retirar soventre[15] e
seguidamente lava-las num ribeiro); retirava-se a fessura[16], lavava-se
a carcaça e por fim era transportado em força de braços para sitio previamente
definido, onde era pendurada de uma trave pela queixada e ficava a escorrer
vinte e quatro horas, para depois se proceder ao desfazer do porco (operação
que consiste no desmanche da carcaça de forma selecionada separando os vários
tipos de carne, para as chouriças, para os salpicões, para salgar e para os
presuntos). Missão cumprida, lavavam-se as mãos e todos subiam ao primeiro
andar da casa onde aguardava uma mesa, já posta, para ter início o almoço. Da
ementa constava: Queijo curado de ovelha, queijo de cabra fresco, azeitonas
cortadas, vinho, sarrabulho com batata cozida, arroz da matança, acompanhado
com salpicão e presunto do ano anterior, cozidos e sopa de feijão branco com
legumes. Registo a particularidade de as mulheres, para além de servirem à
mesa, não se sentavam à mesa com os homens, almoçavam na cozinha. Durante a
refeição a conversa era animada, discutia-se de tudo um pouco, sem descurar as
brincadeiras com a pequenada. No final do almoço, com exceção das mulheres que
continuavam na cozinha com azáfama, os homens regressavam às lides habituais.
[2]
Mão cheia de palha (manhuço) de centeio com mais de um metro de comprimento
que, depois de ateada, servia para chamuscar o porco.
[4] Na “festa dos velhos” que tem
lugar no primeiro dia do ano, na aldeia vizinha de Bruçó, as bexigas na ponta
de paus fazem parte do ritual. Resquícios de algo que terá existido
anteriormente?
[11] Contornar com
a faca o exterior do ânus, separá-lo da restante pele para e atar o intestino
para evitar saída de fezes.


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