sábado, 15 de junho de 2019

LAGOAÇA - A Matança do Porco


Segue o primeiro fragmento que seleccionámos para publicar neste espaço, retirado do livro "Lagoaça, Loisas e outras Coisas", de autoria de José Veríssimo.


José Veríssimo
Como principal fonte na receita da economia doméstica, desde os primórdios ocupou um lugar de destaque como símbolo de abundância, de riqueza económica e de fertilidade. As inúmeras esculturas zoomórficas representando berrões, são prova do quão importante tem sido o porco, desde a ancestralidade, nas gentes transmontanas. 

Nos meses de dezembro e janeiro, se a lua o permitisse, era raro o fim-de-semana, em que não houvesse matança de porco. Os grunhidos de despedida do condenado e o cheiro a chamusco[1] e palha queimada dos fachoqueiros[2], assinalavam a sua presença. Ao longo das ruas, bancos da matança, após o dever cumprido, enfeitavam as fachadas das casas, a escorrer depois de lavados. Outros, em pose adequada ao sacrifício, suportavam o porco rodeado de homens que, como se de um ritual se tratasse, executavam gestos cujas repetições se perdiam no tempo. E nós, os mais novos, indiferentes ao ato, seguíamo-lo atentamente, aqui e ali ajudando, outras vezes questionando, brincando com as unhas soltas[3], ou jogando com alguma bexiga cheia de ar e amarrada na ponta de uma cana[4], ou servindo de bola. Sem perder pavio íamos acumulando aquele saber ancestral que se ia transmitindo. Das tradições da aldeia, o dia da matança, com exceção das parvas[5], superava o Natal e outras festividades no reforço dos laços familiares e de vizinhos mais chegados. Enquanto nas restantes festividades o almoço se restringia praticamente só aos da casa, nas referidas era abrangente e não era só pela necessidade de entreajuda, existia algo mais que não consigo explicar. O dia começava na véspera por pôr palha limpa na loije[6] ou na cortelha, colocar em lugar acessível todos os utensílios indispensáveis: colmo[7], banco, corda, facas velhas ou pedaços de arco de pipo para raspar, pedras de bernaz[8] para esfregar, aguçadoira, facas, alguidares, panelas... Na cozinha a lareira reforçada aquecia as panelas de ferro, dispostas em volta do brasido e a mesa posta com figos secos, grãos de amêndoa, pão, queijo de ovelha e água ardente, aguardava a chegada dos intervenientes para o desinjum[9]. Espaçadamente iam chegando e após todos presentes e comidos, dirigiam-se para a loije onde o porco aguardava pacificamente. Laçado no focinho era levado à força até ao banco do sacrifício e, depois de deitado, seguro no cachaço pela corda de encontro ao banco e por um aglomerado de braços que lhe dificultavam os movimentos de fuga, o matador tomava posição e, uns centímetros à frente do osso da suã[10], num gesto preciso espetava a faca, dirigida ao coração e o sangue jorrava para o alguidar, seguro por uma mulher mais destemida. Em infrutífera luta o porco gastava as suas últimas forças e quedava inerte. Estava morto. Com a ajuda de fachoqueiros iniciava-se a queima dos pêlos, enquanto outros homens iam raspando com arcos de pipo ou facas velhas, a pele empolada ao longo do corpo do bicho. Feito isto, tinha início a lavagem da pele que com a ajuda de pedras de bernaz, previamente escolhidas para não golpearem, era esfregada e, posteriormente, raspada com uma faca afiada para retirar os pêlos mais teimosos. Por essa altura alguém aparecia com um prato de sangue cozido, cortado em pedaços pequenos e temperados com azeite, vinagre, alho e piripiri, acompanhado de pão e de vinho. Parava-se para saborear o pitéu. Estômago acomodado, lavava-se o banco e colocava-se o porco de barriga para o ar, quatro homens seguravam-lhe as patas e o matador dava início ao abrir do porco, depois de ter feito o cu[11]. Com gestos cirúrgicos efetuava dois cortes paralelos da garganta até ao ânus e retirava a barbada[12]; seguidamente cortava o pão de unto[13] e tirava as tripas, separadas do fígado (estas eram retiradas para um alguidar que prontamente uma ou duas mulheres levavam para dezintretenhar[14], retirar soventre[15] e seguidamente lava-las num ribeiro); retirava-se a fessura[16], lavava-se a carcaça e por fim era transportado em força de braços para sitio previamente definido, onde era pendurada de uma trave pela queixada e ficava a escorrer vinte e quatro horas, para depois se proceder ao desfazer do porco (operação que consiste no desmanche da carcaça de forma selecionada separando os vários tipos de carne, para as chouriças, para os salpicões, para salgar e para os presuntos). Missão cumprida, lavavam-se as mãos e todos subiam ao primeiro andar da casa onde aguardava uma mesa, já posta, para ter início o almoço. Da ementa constava: Queijo curado de ovelha, queijo de cabra fresco, azeitonas cortadas, vinho, sarrabulho com batata cozida, arroz da matança, acompanhado com salpicão e presunto do ano anterior, cozidos e sopa de feijão branco com legumes. Registo a particularidade de as mulheres, para além de servirem à mesa, não se sentavam à mesa com os homens, almoçavam na cozinha. Durante a refeição a conversa era animada, discutia-se de tudo um pouco, sem descurar as brincadeiras com a pequenada. No final do almoço, com exceção das mulheres que continuavam na cozinha com azáfama, os homens regressavam às lides habituais.




[1] Pêlos queimados.
[2] Mão cheia de palha (manhuço) de centeio com mais de um metro de comprimento que, depois de ateada, servia para chamuscar o porco.
[3] Camada superficial das unhas do porco que por ação do calor se soltavam.
[4] Na “festa dos velhos” que tem lugar no primeiro dia do ano, na aldeia vizinha de Bruçó, as bexigas na ponta de paus fazem parte do ritual. Resquícios de algo que terá existido anteriormente?
[5]Relativo ao dia da debulha do trigo nas eiras. 
[6] Divisão do rés do chão na casa típica transmontana reservada aos animais de trabalho.
[7] Molho de palha de centeio de onde eram feitos os fachoqueiros
[8] Granito.
[9] Pequeno-almoço
[10] Esterno
[11] Contornar com a faca o exterior do ânus, separá-lo da restante pele para e atar o intestino para evitar saída de fezes. 
[12] Tira de carne da barriga.
[13] Gordura que reveste os intestinos.
[14] Separar as tripas e retirar gorduras. 
[15] (Véu) fixador e protetor dos intestinos.
[16] Conjunto de órgãos interiores: Língua; gorja (traqueia); boche (pulmões) e coração

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