sábado, 20 de abril de 2019

GAVETAS DA MEMÓRIA - SANTAS PÁSCOAS, ALELUIA, ALELUIA!...

  
GAVETAS DA MEMÓRIA
SANTAS PÁSCOAS, ALELUIA, ALELUIA!...

Longe da fúria consumista dos grandes centros, é junto das comunidades mais pequenas que a época da Páscoa foi e, de certa maneira, continua a ser vivida dentro do espírito cristão que lhe está subjacente.
Como é sabido, a palavra páscoa, quer dizer “passagem” e, com esse sentido, remonta aos tempos do êxodo do povo de Israel quando, depois dum longo e cruel cativeiro no Egito, guiado por Moisés, fugiu através do deserto em demanda da “Terra da Promissão”, conceito que a religião cristã adotou, dando-lhe, contudo um significado mais profundo e abrangente.
 Sem grandes divagações teológicas ou pretensões catequéticas, vou tentar proporcionar os meus queridos amigos uma viagem guiada, (que prometo será muito curta) às celebrações tradicionais das festas da Páscoa na aldeia transmontana onde tive a felicidade de nascer.
Para compreender minimamente o seu verdadeiro sentido e a sua real dimensão, (não podemos esquecer que a celebração da Páscoa é como que o centro e o momento mais alto da liturgia cristã), teríamos de falar, não apenas da festa da Páscoa, mas sobretudo da época pascal que, em bom rigor, se estende do princípio da quaresma até muito para lá do dia de Páscoa, o que não posso nem quero fazer, para não faltar à promessa de ser breve.
Passadas as celebrações da entrada triunfal de Jesus Cristo em Jerusalém no domingo de Ramos, e depois dos dias de meditação, recolhimento e silêncio da semana santa, em que se preparava a celebração da ressurreição do Senhor, chegava finalmente o sábado santo, também conhecido como o sábado da aleluia.
Ao longo da semana santa, cozia-se o pão de trigo, faziam-se os folares, os económicos, as rosquilhas, as súplicas e os canjatos, tudo iguarias, e que iguarias, próprias da época pascal. Preparava-se a igreja com mais esmero e cuidado para a celebração das solenes cerimónias pascais. As próprias casas eram também lavandas e alindadas a preceito para receber condignamente os familiares que vinham de longe passar a páscoa com a família e, muito especialmente, receber condignamente a visita do Senhor ressuscitado no dia da visita pascal.
Dentre as cerimónias da semana santa, todas imbuídas dum profundo espírito cristão, dava-se um especial relevo à celebração da instituição da eucaristia, à cerimónia do lava-pés, à procissão do enterro do Senhor, à encomendação das almas e à reconstituição da via- sacra, gravitando tudo à volta da solene celebração da ressurreição triunfal de Jesus, que começava na noite de sábado da aleluia e se estendia por todo o domingo de Páscoa.
Em sinal de respeito pela morte do Senhor, os sinos só podiam tocar depois da meia noite e os fiéis eram chamados para as cerimónias da vigília pascal por um grupo de jovens que percorriam toda a freguesia tocando vigorosamente as “matracas”, um instrumento que só era utilizado nessa época, constituído por uma grossa tábua de olmo bem seca, com cerca de meio metro de comprimento, onde se fixavam as argolas de ferro que faziam de batentes.
Nesta noite a igreja era demasiadamente pequena para tanta gente, porque ninguém queria perder cerimónias tão ricas de significado como a bênção do lume novo, dos santos óleos e, muito especialmente da água baptismal, água que depois era distribuída aos fiéis, que com todo o respeito a levavam depois das cerimónias, para com ela abençoar as suas casas, os seus animais e todos os seus haveres.
Eram cerimónias longas, que para os mais novos se tornavam algo fastidiosas e cansativas, mas a que todos assistiam com muita fé, devoção e respeito, sempre em função de viver de novo a alegria da ressurreição de Jesus que o celebrante iria anunciar solenemente durante missa da meia noite, cantando jubilosamente:
Cristo ressuscitou, Aleluia, Aleluia, a que toda a assistência, vibrantemente e em coro, respondia também cantando: Aleluia,  e Aleluia !
Entretanto, os mais virtuosos e experimentados repicadores dos sinos, com grande entusiasmo e muita devoção, subiam ao campanário para, com o jubiloso repicar dos sinos, que iria prolongar-se pela noite de sábado e por todo o dia de domingo e segunda feira, anunciar a todos a grande notícia da ressurreição do Senhor.
À semelhança da noite de Natal, também nesta noite se acendia a grande fogueira no recinto do “Curral Concelho”, onde os tocadores dos sinos vinham aquecer-se do frio intenso da madrugada e retemperar forças para aguentar o resto da noite e muita gente, sobretudo os jovens, passava o resto da noite em convívio e amena cavaqueira, providenciando a lenha necessária (lenha grossa que, regra geral, era surripiada pela mocidade das rimas feitas às portas ou dos currais mal fechados) para que a fogueira se mantivesse bem acesa, pelo menos, até à hora da missa do domingo.
Rembrandt - "A Ceia de Emaús"
Mas o domingo era, de longe, o grande epicentro, o grande dia feito pelo Senhor.
No fim da missa solene, o povo em peso incorporava-se na “procissão da aleluia”, que percorria as principais ruas da freguesia, proclamando a grande notícia da ressurreição. Às estrofes, retiradas das escrituras e referentes ao evento, proclamadas pelo celebrante, fazendo transparecer os sentimentos de alegria que inundavam a alma daquele povo, respondiam todos em coro, cantando jubilosamente Aleluia, Aleluia e Aleluia !
Dada a grande dimensão da aldeia (antes do grande surto de emigração para a França chegou a ter mais de trezentos fogos e cerca de duas mil pessoas), a visita pascal que começava depois do almoço de domingo e só terminava na segunda-feira.
Numa época em que todas as famílias tinham parentes espalhados por toda a aldeia, eram dois dias de enorme azáfama e de grande corrupio, em que toda a gente almoçava a correr, para não faltar ao beijar do senhor em casa de todos os familiares e amigos mais chegados, o que, por vezes, em famílias com muitos filhos, gerava situações bem curiosas. Era vulgar juntarem-se dezenas de pessoas a beijar a cruz em mais de uma dúzia de casas, entrarem muitos esbaforidos casa dentro e pedir ao senhor padre que “botasse de novo a água benta” para beijar a cruz, ou ver pais a tentar desculpar a falta de algum dos filhos (regra geral eram tantos que dificilmente alguém notaria a sua falta), que por uma razão ou outra não podia estar, quando a verdade era bem outra. Os mais crescidotes andavam dispersos pelos bailes de roda ou pelo jogo do cântaro, os únicos divertimentos da juventude desses tempos, que, para uns, criavam a oportunidade do primeiro piscar de olho à cachopa do seu agrado, para outros, a  revelação dos seus segredos, ou até, para os mais atrevidos, a marcação dos seus encontros em locais bem discretos e bem longe dos olhares incómodos dos familiares e amigos.
Especialmente para os afilhados, a tarde da páscoa era esperada ansiosamente. Depois de terem oferecido aos padrinhos o ramo benzido no domingo de ramos, agora era o dia de irem visitá-los para pedir a bênção aos seus padrinhos e receber deles o folar da Páscoa, que, então, era constituído por alguns biscoitos próprios da quadra, uma rosquilha para as meninas ou um canjato para os rapazes, ofertas que os padrinhos com mais posses completavam com mais uns trocados ou pequenas peças de roupa, como um lenço, um par de meias ou até mesmo uma muito cobiçada boina galega, umas calças novas ou uma camisolinha de lã.
Estas pequenas coisas que, vistas à luz da realidade actual, dominada pela fúria consumista sem medida, sem lei nem sentimentos que nos escraviza, até possam parecer insignificantes, ou até mesmo ridículas, no entanto, enquadradas na difícil conjuntura social e económica de então, tinham muito valor e norme significado e contribuíram durante muitos anos para a felicidade e a para a alegria de muitas crianças.
Para todos os que me são queridos, para os transmontanos da diáspora como eu e para todos aqueles que teimosa e estoicamente resistem e não desistem de viver no chão sagrado dos Montes do nosso encantamento, votos sinceros duma santa e feliz Páscoa de 2019.

Texto recebido de Manuel Bento Fernandes.
Desconhecemos o autor, mas pela mensagem parece-nos ser de Francisco Costa Andrade

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