Alberto Gonçalves - OBSERVADOR
9/3/2019
A dona Cristina
teima: Pedrógão não está esquecido pois não? O dr. Costa balbucia uma
salganhada e acaba a pedir vinho verde para o tempero. Ao largo, o resto dos
Costas – esposa, crias e nora – sorri.
O PS (o PS dos
boatos sobre Sá Carneiro, o PS do livro censurado de Rui Mateus, o PS da Casa
Pia, o PS das inúmeras habilidades do “eng.” Sócrates, o PS dos telefonemas
irados ou doces aos directores de informação, o PS que manda na linha editorial
dos jornais a ponto de os tornar irrelevantes ou extintos, o PS que deu à Lusa
uma credibilidade idêntica à do saudoso “O Crime”, o PS que inventou a ERC, o
PS
dos resgates à banca e dos saques ao contribuinte, o PS das negociatas
disfarçadas de “desígnios”, o PS sem vergonha da vergonha dos incêndios de
2017, o PS das austeridades viradas na retórica e agravadas na prática, o PS do
blogue Câmara Corporativa, do sr. Abrantes e de incontáveis jagunços que
saltitam nas “redes sociais” e nos espaços de “opinião pública”, o PS da
propaganda descarada, o PS dos paquistaneses travestidos de militantes, o PS
que branqueia o rosto do líder como branqueia cada embrulhada em que se mete, o
PS das prosperidades que terminam em bancarrota, o PS dos srs. Centeno, Ferro e
César, o PS que mais do que qualquer outro partido se confunde com o sinistro
“aparelho de Estado”, o PS enfim que, há dias, criou a agência espacial
portuguesa) quer acabar com as “fake news”.
Olha que bom. O
PS, aliás, aproveitou uma deixa “externa”: o plano contra a “desinformação”
aprovado pela Comissão Europeia em Dezembro. Lá fora e cá dentro, o objectivo é
comum, leia-se proteger o cidadão, coitadinho, das falsidades difundidas por
fontes duvidosas. No nosso caso particular, as fontes duvidosas são, escusado
explicar, aquelas de que o PS duvida e que, em troca, duvidam do PS. Num mundo
ideal, só haveria notícias verdadeiras, e por verdadeiras entenda-se aquelas
que o PS autoriza e, de preferência, produz. Por azar, ainda não atingimos
tamanha plenitude do Ser. Por sorte, já faltou mais. Esta semana, tivemos um
vislumbre do que será a informação pertinente, justa, lúcida e escrupulosa do
futuro. Falo, é evidente, da presença do dr. Costa no programa da dona
Cristina.
Os cínicos que se
dediquem a avaliar se o episódio é representativo da agonia dos órgãos de
soberania, cujas figuras passeiam jovialmente pela “trash tv”, ou se traduz o
estertor das televisões, que passaram a acolher qualquer pelintra em prol das
audiências. Por mim, limito-me a proceder com sobriedade à descrição de tão
relevante momento. Ou seja, a contar o que vi. E vi o seguinte.
Num cenário que
imita uma casa, a casa de Liberace se este fosse pobre, a dona Cristina abre a
porta ao dr. Costa e inaugura uma série de gritos que pelos vistos são
permanentes. No meio da gritaria, captei a palavra “lindo!” e a frase “um
espaço de comunicação que não é para toda a gente”. Entretanto, o dr. Costa já
está sentado e a recordar um concurso de fantasias que venceu em criança.
Provavelmente, acabou em segundo lugar e uniu-se ao terceiro classificado para
fintar a votação. Depois, parte para divagações sortidas acerca da infância.
Insiro um parêntesis para notar que o “português” do dr. Costa é apenas
ocasionalmente perceptível e frequentemente sujeito a tradução: “pa” significa
“para”, “sançal” significa “segurança social”, “sómairéquecebi” significa “só
mais tarde é que percebi”, “grembombom” não sei o que é, etc. O importante é
que, da juventude, ficou-lhe o gosto pela liberdade, proeza que induz
sucessivos guinchos na dona Cristina, a qual, para aprimorar o glamour, insiste
em rir com a boca escancarada. Nisto, irrompe em cena a mulher do dr. Costa,
que ele abraça com as saudades de quem não a via há dois minutos.
O tema da conversa
segue para a cozinha. De seguida, seguem os intervenientes. A sra. Costa,
Fernanda de sua graça, assegura que o marido cozinha muito bem (não duvido: é
humanamente impossível ser-se incapaz em tudo) e tinha imensas namoradas (não
comento). Nisto, empenhado em confirmar as alegações, o dr. Costa já desatou a
namorar, perdão, a cozinhar uma cataplana de peixe e a sublinhar a importância
de uma cozinha limpa. Quanto ao cozinheiro, tanto faz: o dr. Costa não lavou as
mãos. Instada pela dona Cristina a aliviar-se de intimidades, Fernanda diz que
“tudo é de imprevisto” (queria dizer “improviso”, mas dado o meu
desconhecimento da língua em que ela comunica com o cônjuge, não julgarei o
deslize com severidade). O dr. Costa continua a cortar hortaliças.
Acontece uma pausa
para compromissos publicitários, onde se divulga um pedacinho do orçamento
destinado a apoiar as crianças pobres intolerantes à lactose, esse drama
social. Os Costas lembram que a filha também era intolerante a uma substância
qualquer. A dona Cristina comove-se com “as coincidências da vida” e
proporciona-nos assinalável berreiro. O dr. Costa não pára de fatiar hortaliças
no instante em que, para surpresa geral com as coincidências da vida, entram na
cozinha os seus filhos e uma moça que, sob o chinfrim da apresentadora, não
identifiquei. Há uma sessão de perguntas e respostas, ilustradas com
fotografias de família. A emoção é palpável. A dona Cristina informa que o dr.
Costa gosta de ir à lavandaria. Ele confirma: gosta muito. De prémio, recebe um
puzzle do programa da Cristina, que em atenção ao público-alvo tem três peças
(brinco: tem 20).
De súbito, o
registo muda. A dona Cristina, implacável, questiona o dr. Costa se isto (ser
primeiro-ministro, não fazer cataplanas) é mesmo uma “missão” que ele quis para
a sua vida “na tentativa de ajudar os outros”. Até o dr. Costa se sentiu
atrapalhado com tamanha exibição de sabujice. A dona Cristina recusa abordar
matérias polémicas (o défice “não interessa nada”), arriscando um saltinho a
Pedrógão, a “mancha negra” do mandato do dr. Costa, uma maçada que lhe caiu em
cima, quase como uma camisa que se descoseu na lavandaria. O dr. Costa admite
que foi uma tragédia e que pensa todos os dias naquilo, e que os “sidãos” (cidadãos)
foram generosos e que afinal – interrompe-se todo contente – o peixe disponível
permite mesmo uma petiscada valente: a propósito, ele aprecia bastante raia. A
dona Cristina teima: Pedrógão não está esquecido, pois não? O dr. Costa
balbucia uma salganhada e termina a pedir vinho verde para o tempero. Ao largo,
o resto dos Costas – esposa, crias e, vim a descobrir, nora – sorri.
No derradeiro
acto, a dona Cristina remove “os xapatos” (ela diz assim) e, com berros
dilacerantes, propõe a todos “xentarem-se” à mesa. Confrontado com a ausência
de netos, o dr. Costa denuncia um dos grandes problemas da nossa “siedade”
(sociedade), o tempo que as pessoas demoram a ter o primeiro filho – cerca de 9
meses, da última vez que vi.
A boa notícia é
que ninguém provou a cataplana. A má é que semelhante mistela era a coisa menos
“fake” desta história.
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