22/2/2019, 0:09
O que se passou com a OCDE foi grave. O
responsável pelo estudo foi impedido de estar presente na apresentação. E uma
conferência da Ordem dos Economistas foi cancelada. Aconteceu em Portugal.
Todos sabemos há décadas que os
relatórios sobre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Económico (OCDE) são realizados com a intervenção dos Estados-membros. Os temas
são escolhidos por consenso e o texto é previamente visto pelo Estado-membro e
debatido num comité onde estão representantes dos países. O que nunca se tinha
visto em décadas de democracia é um Governo revelar que se opunha à forma como
um tema é tratado e impedir – por acção ou omissão – a presença, na
apresentação do relatório, da pessoa que dirige o departamento que o faz.
Aconteceu em Portugal nesta
segunda-feira que passou, 18 de Fevereiro de 2019, dia em que o Economic Survey
da OCDE sobre Portugal foi apresentado apenas pelo director-geral da
Organização, Angel Gurría, ao lado do ministro Adjunto e da Economia, Pedro
Siza Vieira. Assim como foi cancelada uma conferência agendada para terça-feira
dia 19 e organizada pela Ordem dos Economistas onde deveria estar presente o economista
que o Governo não quis.
O economista, que dirige o departamento
que estuda os países na OCDE, e foi impedido de falar em Portugal, é português
e chama-se Álvaro Santos Pereira. Noutras circunstâncias seria apresentado como
mais um motivo de orgulho de ter Portugal representado nas organizações
internacionais. Como se atreveu a falar de um tema que este Governo quer
ignorar – a corrupção e o mau funcionamento da Justiça – passou a ser “persona
non grata”.
Todo o processo começou por ser contado pelo Expresso tendo depois desenvolvimentos, com o próprio secretário-geral da OCDE a assumir que pediu a Álvaro Santos Pereira para não vir a Portugal apresentar o relatório . A razão fundamental desta guerra está no capítulo sobre a Justiça: o Governo não queria que se falasse em corrupção e muito menos dos casos que estão a ser investigados, a caminho do tribunal ou já julgados. O Governo, pelo que sabemos do que foi noticiado, conseguiu mudar o relatório mas não conseguiu que se eliminasse o sub-capítulo relativo à corrupção nem a própria palavra, como se pode ver aqui no relatório, na página 129. As mudanças em relação à versão preliminar podem ser lidas aqui no Observador.
O que se propõe sobre estas matérias parecem
ser medidas de senso comum, para todos os que considerem que é preciso prevenir
e combater o crime de colarinho branco em geral e a corrupção em particular.
Vejamos o que propõe concretamente a OCDE e, pelo que se sabe, com o acordo do
Governo.
Defende que o Ministério Público e a
Polícia Judiciária devem ter os “recursos adequados” para investigar os crimes
e prevenir a corrupção. Considera que é preciso “reforçar a formação
especializada de procuradores”, já que isso melhora o seu desempenho, designadamente
nos “crimes económicos e financeiros que requerem conhecimentos específicos”.
Alerta que Ministério Público precisa de recursos adequados para realizar
investigações forenses, em geral longas e complexas, de crimes económicos e
financeiros.
Não podemos acusar o Ministério Público
de levar anos e anos a investigar um caso – veja-se o caso da EDP – e, ao mesmo
tempo, não lhe dar recursos. E no caso português, de acordo com os dados que a
OCDE apresenta, os recursos do Ministério Público são comparáveis aos de outros
países, embora sejam significativamente mais baixos do que Estados onde a
percepção de corrupção é mais baixa, como é a Holanda.
Um Governo que tivesse nas suas
prioridades melhorar o funcionamento da Justiça e combater eficazmente a corrupção
– já que só assim se podem mudar as percepções – estaria a trabalhar
sobre estas recomendações, a analisá-las e a avaliar a sua viabilidade de
aplicação. Para que, de uma vez por todas, se fechasse o ciclo que expôs
um mundo de suspeitas, acusações e até condenações de ex-governantes e
ex-gestores de topo de grandes empresas.
Somos um país onde um ex-ministro, que
foi igualmente administrador da CGD e do BCP, está preso – falamos de Armando
Vara. Somos um país onde um
ex-primeiro-ministro – José Sócrates – está acusado de corrupção
passiva, branqueamento de capitais, falsificação de documentos e fraude fiscal
qualificada. Neste mesmo processo, onde está também Armando Vara, encontram-se
aquele que foi o mais importante e poderoso banqueiro do país, Ricardo salgado,
e gestores de topo – Henrique Granadeiro e Zeinal Bava – de uma das maiores
empresas portuguesas.
Paralelamente decorrem investigações que
envolvem a EDP e um ex-ministro da Economia do governo de José Sócrates –
Manuel Pinho. E foi através deste processo que se ficou a saber que Manuel
Pinho esteve a receber mensalmente um rendimento do então BES liderado por
Ricardo Salgado no tempo em que foi ministro.
Estes processos deveriam ser mais do que
suficientes para um Governo estabelecer como uma das suas prioridades dar meios
à Justiça para que as investigações se concluíssem o mais depressa possível e
os julgamentos se fizessem. O arrastamento destes processos é mais um
contributo para a degradação da confiança dos cidadãos nas pessoas que elegem e
nos líderes das grandes empresas. Um regime não se auto-preserva sem se
corrigir.
Em todo o “caso OCDE” podem ter existido
responsabilidades das duas partes. O Governo porque não deveria ter intervindo
como interveio. A OCDE porque não devia ter cedido. Mas o resultado final deste
processo é mais uma ferida na confiança nas instituições, nos políticos e nos
partidos. A negação dos problemas não os resolve.
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