Rui Ramos -
OBSERVADOR
29/3/2019
A endogamia
do governo não é uma tradição portuguesa, mas um fenómeno novo, que sugere o
isolamento de um regime e o esgotamento político do grupo que domina o país há
vinte anos.
De repente,
até a imprensa espanhola deu por que a península não acaba em Badajoz e que
para além da raia há um curioso país governado por parcerias de pais e filhos,
e de maridos e mulheres, como uma empresa familiar. É de facto extraordinário.
Mas o primeiro-ministro, muito descansado, matou logo a questão: “não era
novidade”. Porquê? Porque já era notícia conhecida? Ou porque, em Portugal,
sempre teria sido assim, mas só agora a imprensa, por má vontade contra o governo,
estaria a desvendar os parentescos dos políticos? Ora, se foi neste segundo
sentido que António Costa disse que não havia novidade, é preciso dizer que
sim, que há novidade.
Nos séculos
XIX e XX, mesmo sob regimes supostamente representativos e apesar de revoluções
frequentes, a base de recrutamento político manteve-se bastante restrita em
Portugal, não só pela dimensão do país, mas por a instrução da população ser
reduzida. Se a isso adicionarmos o nepotismo, não é surpreendente que os mesmos
nomes de família tendessem a repetir-se na vida pública, tal como acontecia em
muitas profissões. Na segunda metade do século XIX, cerca de metade dos
deputados tinham alguma relação de parentesco com outro deputado. Houve sempre
muitos primos e irmãos na política. Os irmãos Passos, Manuel e José, os líderes
da esquerda nos anos 1830, são um exemplo. Os filhos sucederam por vezes aos
pais. Carlos Lobo de Ávila, ministro na década de 1890, era filho de Joaquim
Tomás Lobo de Ávila, ministro na década de 1860. Dizia-se até que o velho Lobo
de Ávila preparara o filho, desde pequenino, para uma carreira parlamentar,
obrigando o miúdo em casa a fazer discursos que ele ia interrompendo com
apartes e protestos, para o jovem Carlos se habituar a falar no meio do tumulto
das assembleias. É fácil reconstruir linhagens e redes de políticos
aparentados, em alguns casos através de regimes que entre si se contradiziam na
ideologia e no funcionamento.
Mas sendo
as coisas assim, há a registar este facto que agora parecerá espantoso: num
país com uma população ainda mais pequena do que a de hoje e muito menos
escolarizada, não tenho notícia de irmãos ou filhos e pais terem sido ministros
ao mesmo tempo durante a Monarquia Constitucional, a Primeira República ou o
Estado Novo. Pode-me estar a escapar algum caso, mas penso que não. Quanto à
actual democracia, creio que só uma vez, antes da época actual, dois ministros
foram parentes muito próximos: Ricardo Baião Horta e Basílio Horta em 1981.
Podia ter acontecido outra vez em 1990, mas Miguel Beleza tomou posse como ministro
das Finanças no dia em que a sua irmã Leonor Beleza deixou de ser ministra da
Saúde.
Isto dá
ideia do carácter excepcional do grau de endogamia da actual governação
socialista. Porque é que numa democracia e num país com uma população maior e
mais qualificada do que no passado, e onde portanto a base de recrutamento
político é mais vasta, acontece esta coincidência de pais e filhos, maridos e
mulheres estarem sentados no mesmo conselho de ministros? Nunca, provavelmente,
o número de relações familiares num governo terá sido tão grande, e os números,
como notou Vital Moreira, contam. Desculpe, Dr. António Costa, mas é de facto
“novidade”, e não podemos procurar a sua razão de ser nas tradições de
neopotismo da sociedade portuguesa, porque essas tradições nunca antes geraram
tal acumulação de parentes próximos num governo.
Não devemos
por isso diluir e confundir os actuais parentescos governativos no meio de
outros casos de ligações familiares. Se esta endogamia tem algum significado,
não é a de um resquício do passado ou de uma ocorrência normal, mas, pelo
contrário, a de um fenómeno novo e único, que sugere o encerramento de um
regime, incapaz de se renovar, e o esgotamento político de um grupo que domina
o país há vinte anos, e que já só parece encontrar confiança dentro dos
círculos familiares mais próximos. Sim, há aqui novidade – e talvez sinal do
fim de uma época.
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