Alberto
Gonçalves - OBSERVADOR
2/3/2019
No fundo, a
“mulher” da dra. Joana do CDS não difere da “mulher” da dra. Catarina do BE. Na
ânsia de se apoderarem das cabeças alheias esgadanham-se para reduzir sujeitas
de carne e osso a caricaturas.
Uma médica,
Joana Bento Rodrigues, assinou no Observador um artigo sobre “a mulher, o
feminismo e a lei da paridade”. No dito, a senhora, que é filiada no CDS,
explica que a mulher “gosta de se arranjar e de se sentir bonita. Gosta de ter
a casa arrumada e bem decorada. Gosta de ver ordem à sua volta. Gosta de cuidar
e receber e assume, amiúde, muitas das tarefas domésticas (…)”. Em simultâneo,
a mulher “gosta de se sentir útil, de ser a retaguarda e de criar a
estabilidade familiar, para que o marido possa ser profissionalmente
bem-sucedido.” A mulher também “é provida de um encanto, de uma ternura, que só
se encontra na sua relação com os filhos”. Para cúmulo, a mulher “é um ser
belíssimo e extraordinário”, e não um objecto, “presa para sexo fácil e espaço
de diversão”.
Previsivelmente,
o artigo revirou as entranhas da Terra: nas “redes sociais”, e não só nas
“redes sociais”, milhares de cidadãos insistiram em pronunciar-se a propósito.
Uma minoria (pareceu-me uma minoria) concordou com a dra. Joana e declarou que
a mulher corresponde precisamente às maravilhas acima descritas. A maioria
(pareceu-me a maioria) tentou levar simbólica ou literalmente a dra. Joana à
forca, na convicção de que a mulher é o exacto oposto de tais maravilhas: a
mulher não é fútil, a mulher não é subalterna, a mulher não é dependente, a
mulher não é púdica, a mulher não é doméstica, a mulher não é um adereço, a
mulher não é dócil, a mulher não é parideira.
Em ambos os
casos, de que mulher falamos? Absurdamente, de todas. Naturalmente, de nenhuma.
Não é questão de discordar do artigo da dra. Joana, ou das reacções ao mesmo. A
questão é não imaginar o que leva alguém a generalizar o carácter, as
circunstâncias, as apetências e as vontades de quase quatro mil milhões de
criaturas, o número de mulheres existentes no mundo. Haverá as que alcançam o
nirvana a produzir sopa e bebés. Haverá as exclusivamente devotadas a uma
carreira na ciência, nos negócios ou na indústria dos resíduos sólidos. Haverá
as que vão à missa e as que não vão à missa com a fé. Haverá as que são de rua,
as que saem à rua e as que não saem de casa. Haverá as que exigem subir pelo
mérito e as que se contentam em subir por quotas. Haverá as que não desejam
subir a parte alguma. Haverá as que querem conciliar tudo e as que não querem
conciliar nada.
O que nunca
haverá é paciência para os prosélitos da dra. Joana e para os indignados com a
respectiva cartilha, os quais, por oportunismo, arrogância, delírio ou
projecção, tendem a ignorar que, salvo pelas fanáticas dos dois lados da
trincheira, cada mulher é uma pessoa com interesses particulares e
contraditórios entre si. E uma pessoa que, salvo melhor informação, não passou
a essa gente procuração para falar em seu nome. Falar da mulher em sentido lato
é tão razoável quanto eu afirmar que os Albertos em peso apreciam ovos escalfados
e a terceira temporada de “True Detective”.
Por azar, o
problema com as generalizações não é apenas serem cretinas: é serem abundantes.
Em pleno século XXI (essa frase deliciosa e vazia), a consagração das
“políticas identitárias” está a conduzir o Ocidente de regresso à saudosa
década de 1950, quando se catalogava a humanidade pelas importantíssimas
categorias do género, da orientação sexual, da cor e do calhava – logo que o
género, o sexo, a cor e o que calhar preencham certos requisitos. Um homem, heterossexual,
branco e assim não é de grande serventia, excepto a de alvo de protestos
sortidos. O resto é invariavelmente de valor, e constitui factor fundamental na
construção das “identidades” individuais, por acaso assaz semelhantes às
colectivas. Nestes avariados tempos, antes de ser engenheira, hipocondríaca e
fã de Springsteen, a Isabel é mulher. Antes de ser cozinheiro, alcoólico e
míope, o Paulo é gay. Antes de ser professor de Francês, bipolar e pai de dois
rapazes, o Artur é preto. E a Rita, que é mulher, lésbica, mestiça e praticante
de candomblé, ganhou a lotaria da vítima e o jackpot da opressão: o direito a
maçar terceiros com irrelevâncias que não lhes dizem respeito.
Não vale a
pena lembrar que as irrelevâncias biológicas substituíram as contingências
laborais na luta da esquerda pelo conflito perpétuo. Talvez valha a pena notar
que não é a substituir uns estereótipos por outros que a direita vai lá. Na
essência, a “mulher” da dra. Joana do CDS não difere da “mulher” da dra.
Catarina do BE. Na ânsia de se apoderarem das cabeças alheias, conservadores e
progressistas esgadanham-se para reduzir sujeitas de carne e osso a entidades
míticas, caricaturas, marionetas ao dispor de alucinados. Felizmente, tirando
as próprias alucinadas, estas mulheres são imaginárias. E as verdadeiras têm
mais o que fazer, incluindo, se possível, fazer o que lhes apetece.
Deputado Gay (ou "paneleiro" para o vulgo português) brasileiro, recebido com honras na UC, por Boaventura Sousa Santos |
Nota de rodapé:
Um antigo
vencedor do “Big Brother” brasileiro veio palestrar à universidade de Coimbra,
com honras e recepção a cargo do sociólogo Boaventura Sousa Santos. Não consigo
encontrar nada de inadequado no facto acima, pelo que não o comento.
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