quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Porque não acreditamos no governo?


Rui Ramos - OBSERVADOR

Estamos a assistir ao fim das grandes expectativas sociais que o próprio regime suscitou há décadas e que tornou a sua razão de ser. A onda vai morrer na praia, mas na ressaca poderá levar quase tudo.
O destino do governo é este: de desastre em desastre, de caso em caso, sempre à espera que nada se lhe pegue. Depois de Pedrogão-Grande, Tancos; depois de Borba, Valongo. Mas a cada uma das infelicidades, temos sempre as mesmas suspeitas: que não terá havido apenas infortúnio, mas falta de organização, de zelo, ou de recursos, e que as autoridades não estão a dizer tudo. A incerteza e a insegurança são os traços que melhor definem esta governação.
Obra da oposição? Nunca um governo, desde 1976, teve tão pouca oposição em Portugal. A extrema-esquerda, que atacou todos os governos, defende-o; o Presidente da República, num regime em que os presidentes tendem a chocar com os governos, coexiste em paz; e a liderança do PSD não parece ter outra vontade senão ajudar o próximo governo de António Costa. Se há desconfiança, não é por causa da tradicional verrina oposicionista, mas por causa da própria governação.


Para perceber isso, temos de voltar ao princípio. O actual governo é uma jangada de náufragos, onde se penduram desesperadamente partidos que, em 2015, perderam uma eleição que todos lhes davam como ganha. Depois de os seus roteiros e programas terem sido rejeitados há três anos, não têm ideias nem sabem para onde vão. Uma manobra parlamentar não é um mandato eleitoral. Por isso, a sua campanha para as próximas eleições começou no primeiro dia em que tomaram posse. Era preciso que tudo corresse bem e fosse fácil. O governo de Passos Coelho, durante o ajustamento imposto pela bancarrota socialista de 2011, teve de dar más notícias. Mas Passos tinha ganho as eleições. O actual governo, até para manter a coesão dos seus apoios parlamentares, só pode dar boas notícias. Foi assim, por exemplo, que, apesar das cativações e da carga fiscal, a austeridade foi oficialmente declarada extinta. Percebe-se, então, a dificuldade com que nos confrontamos a cada acidente ou incidente: como acreditar num governo que não se pode permitir olhar para problemas?
Há ainda outra razão. O actual governo e os seus parceiros parlamentares convenceram-se de que a clientelização do pessoal do Estado, através da concentração de recursos em salários e regalias, seria o único meio de suscitarem o apoio eleitoral que lhes faltara em 2015.  O reverso da medalha têm sido greves de funcionários, incentivados a exigir mais, e uma escassez cada vez mais difícil de esconder em hospitais, em escolas ou nos transportes. Nunca no tempo da “austeridade da troika” se sentira tal degradação dos serviços públicos. É natural que todos os acidentes surjam, à primeira vista, como possíveis sintomas dessa opção do governo.
A oligarquia, no entanto, faz de conta que não está preocupada: a geringonça alastrou a toda a classe política, e as sondagens são auspiciosas. Os oligarcas, muito satisfeitos, cumprimentam-se uns aos outros por que “não há extrema-direita”. Se fosse possível fechar um par de jornais, saberíamos o que era a perfeição. Mais uma vez, somos um oásis, como fomos em 2008, por decreto de José Sócrates, enquanto o mundo lidava com a recessão. Sabemos como acabou dessa vez. Veremos como acaba desta vez. Mas dificilmente acabará bem. A geringonça socialista, que está a engolir a classe política, é parte do problema de uma sociedade que envelhece e de uma economia que não consegue aproveitar as oportunidades para crescer à medida dos seus compromissos. Estamos a assistir ao fim das grandes expectativas sociais que o próprio regime suscitou há décadas e que tornou a sua razão de ser. A onda vai morrer na praia, mas na ressaca poderá levar quase tudo.


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