Alguém observou que cada vez mais o ano se
compõe de 10 meses; imperfeitamente embora, o resto é Natal. É possível que,
com o tempo, essa divisão se inverta: 10 meses de Natal e 2 meses de ano
vulgarmente dito. E não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da
linha, e pela melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal,
abolindo-se a era civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom.
Então nos amaremos e nos desejaremos
felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de
continente a continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas.
Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos,
plantas entrarão em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de
espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto
para o reino do amor (…).
Completado o ciclo histórico, os bens serão
repartidos por si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e
elementos da terra, água, ar e alma. (…) O correio só transportará
correspondência gentil, de preferência postais de Chagall (…) toda pintura,
inclusive o borrão, estará a serviço do entendimento afetuoso. A crítica de
arte se dissolverá jovialmente, a menos que prefira tomar a forma de um sininho
cristalino, (…) celebrando o Advento.
(…) Para quê livros? perguntará um anjo e,
sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol e das galáxias, aberta
à maneira de um livro.
(…) Uma
palavra será descoberta no dicionário: paz.
O trabalho deixará de ser imposição para
constituir o sentido natural da vida (…). Salário de cada um: a alegria que
tiver merecido. (…) tudo estará conciliado na ordem do amor.
Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que
o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. (…) O mundo será
administrado exclusivamente pelas crianças (…). E será Natal para sempre.
[1] Fragmentos de texto extraído do livro de Carlos Drummond de Andrade - Cadeira de Balanço: Crónicas. Rio de Janeiro, Livraria
José Olympio Editora, 1972, pág. 52.
[1]
Marc Chagall (1887-1985)
Enviado por Otília Lage
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