Por FLÁVIO VARA
E o que quero dizer é, em
primeiro lugar, que neste momento me sinto muito gratificado e muito honrado
com a vossa presença, com a vossa companhia. Deslocastes-vos aqui a esta hora, certamente
com transtorno para a vossa vida diária e, se não obstante o fizestes, foi por
consideração para com o autor do livro ora lançado. As pessoas em geral, e os
transmontanos em particular, gostam de ser considerados, eu não fujo à regra,
estou muito sensibilizado, muito confortado e faço questão de vos manifestar o
meu reconhecimento.
Ao Presidente da Casa de
Trás-os-Montes e Alto Douro agradeço a cordialidade com que disponibilizou as instalações
da casa para este fim. E já agora, aproveito para o felicitar pelo impulso e
dinamismo que vem imprimindo às actividades desta agremiação. Expoentes
dessa operosidade são, por exemplo, as obras e melhorias realizadas aqui na
sede e o Congresso, o IV Congresso de Trás-os-Montes e Alto Douro, que teve
lugar em Maio último. Um dos outputs desse congresso é uma antologia, volumosa
antologia, de autores transmontanos e alto-durienses, que ficará como um marco,
uma referência incontornável na cultura nordestina. O responsável, o coordenador
dessa antologia foi uma pessoa tão modesta e discreta consigo própria, como
generosa para com os outros, o Prof. Armando Palavras, que se dignou fazer a
apresentação do meu livro e a quem rendo a minha gratidão.
Agradeço ainda à Dr.ª Elsa
Moreira, Vice-Presidente desta casa e activa responsável pelo pelouro cultural,
o apoio que me prestou na preparação deste lançamento.
§
Estamos na Casa de
Trás-os-Montes e Alto Douro; nada mais lógico, mais natural do que os livros
aqui lançados e apresentados abordarem assuntos, temas, relacionados com as
terras nordestinas, como aliás tenho constatado nos lançamentos a que aqui tenho
assistido. Mas, sob esse ponto de vista, o meu livro não aparenta ser
trasmontano. E direi mais, nem poderia ser. Porquê? Porque para compor cantigas
de maldizer é preciso que haja pessoas de quem se possa dizer mal. Ora em
Trás-os-Montes, no reino maravilhoso, não há disso. Poderão retorquir-me: Ah
ele é assim? E então fulano, sicrano e beltrano, que têm andado por aí nas
bocas do mundo, que são notícia na comunicação social, pelas piores razões, não
são transmontanos? A esses eu respondo: sim, são transmontanos de nascimento, mas
não vivem lá, vivem aqui na grande Lisboa porque, tratando-se de excepções, não
se sentiam confortáveis no meio de gente digna, de gente honrada e saíram de
lá; ao passo que noutras províncias também há naturais degenerados, mas não
saem de lá, porque se sentem lá bem.
Mas, descontada a ironia e
contra as aparências, este livro é trasmontano de uma ponta á outra. Se o não é
no conteúdo, é-o na forma. Trata-se de cantigas à moda trasmontana. Explico-me.
Como sabem, as cantigas
de escárnio e maldizer, eram na Idade Média, nos inícios da nossa
nacionalidade, juntamento com as cantigas de amigo e as cantigas de amor, uma
das três modalidades poéticas daquele tempo. E, com este ou outro nome, têm persistido,
com vários poetas e escritores, ao longo da nossa literatura. Mas, pervivem também
e de forma mais genuína, por via popular, sobretudo no meio rural, sempre mais
arreigado às tradições, e com maior expressão em Trás-os-Montes. Em boa parte
das aldeias nordestinas, por alturas do Entrudo, realizam-se manifestações, em
que, grupos de populares, sobretudo de entre a mocidade, se juntam num largo da
aldeia e, em altas vozes, em versos
trocistas e chocarreiros, passam em revista e comentam os acontecimentos mais
picantes que tiveram lugar ao longo do ano, com os respectivos protagonistas.
Nalgumas aldeias, como na minha, tais récitas assumem a forma de casamentos
fictícios. Designa-se um noivo e uma noiva de entre as gentes da terra, casam-se
e dá-se-lhes um dote. É no dote que geralmente é arriada a jiga. Noutras aldeias
essas chufas designam-se por Serrar da Velha. Eu até estive para usar
essa expressão como título do meu livro; não foi desta, fica para a próxima.
Ora é nessas récitações, nessas cantigas, que o meu livro se inspira. Foi a
elas que fui buscar o modelo, o ethos.
A sua marca trasmontana é inconfundível.
§
Quando pensei no que
poderia dizer de pertinente nesta circunstância, e dado que havia quem falasse
sobre o livro, sobre o quê, lembrei-me de que talvez não fosse descabido
referir-me ao porquê e ao para quê, ou seja, às razões, às motivações que me
levaram a escrevê-lo.
Essa é, aliás, uma das
perguntas mais frequentes que fazem aos escritores quando os entrevistam:
porque escreve? Note-se que estou a falar de uma ínfima parte dos que escrevem,
dos autores de um tipo de escrita bem específica, a escrita literária, que se caracteriza
pela sua qualidade estética, consistente e reconhecida. E aqui emerge outra
pergunta que convém ser respondida antes da primeira, que é a seguinte: porque
é que, de entre todos os que escrevem, só a essa pequena parte se perguntam as
razões porque o fazem? Porque, em relação à escrita não literária faz pouco
sentido questionar essas razões, dado serem óbvias para toda a gente. Quer se
trate de escrita científica, técnica, didática, profissional ou outra, visa
transmitir conhecimentos, ensinamentos, responder a problemas concretos, é útil,
serve para muitos fins. Diferentemente, a escrita literária não serve para nada;
é inútil, gratuita, lúdica, não tem outra finalidade que não seja ela mesma,
como a brincadeira de uma criança. O objecto da escrita não literária é a
informação, o da literária é a emoção.
Ainda há dias eu li no
jornal Público (2018-12-7) o que um
romancista americano, que é também professor de literatura numa universidade, dizia
sobre as perguntas que seus alunos lhe faziam quanto à “utilidade” da escrita
literária, perguntas deste teor: “quando é que vamos precisar de saber isto na
vida real?” (isto era o Hamlet de Shakespeare); “vou ser um contabilista, para
que preciso de poesia?”. É a esses que a nossa poetisa Natália Correia lança o
seu repto. “Ó subalimentados do sonho, a poesia é para comer”.
Revertamos então à
pergunta inicial: que razões, que pulsões levam certos autores a aventurarem-se
nesse reino ao mesmo tempo trabalhoso e prazeroso da criação literária? As
razões variam conforme os autores, mas algumas delas são comuns a todos. E é
dessas que terei de partir, porque é nelas que as minhas encaixam. Na minha perspectiva, são de três ordens:
razões estéticas, razões higiénicas e razões de intencionalidade. Estão
simultaneamente presentes no acto criativo, mas em doses diferentes e com
diferentes predominâncias, conforme os autores e os géneros literários
adoptados.
Começando pelas estéticas,
podemos dizer que se escreve pelas mesmas razões porque nos vestimos ou penteamos
de determinada maneira; que trauteamos ou assobiamos uma melodia, que
penduramos um quadro na parede da sala, que se faz um bordado, que uma criança
se entretém a colorir uma folha em branco; ou seja, porque o ser humano é inata
mente dotado de um
sentido do belo, que integra a nossa estrutura psíquica, que está inscrito no
nosso ADN e nos singulariza entre todos os outros animais. Faço notar que os
outros animais também são dotados de alma; de resto a palavra animal deriva de anima, alma, em latim. Do que não são
dotados é de sentido estético como nós. Pelo menos é o que até agora se pensa;
sobre o que se virá a pensar no futuro, já não diga nada. Até há pouco tempo
também se dizia que o homem era o único animal dotado de razão, de inteligência, mas desde que se comprovou
que outros parentes nossos, designadamente entre os primatas, partilham
connosco cerca de 99% do património genético, que não só utilizam instrumentos
mas até os fabricam, o homem deixou de poder ser definido como animal racional.
A diferença entre nós e eles é apenas de grau, não de natureza. E quando penso
na forma como certas aves fazem o ninho, uma obra prima de que nem os melhores
arquitectos são capazes, pendurado nos ramos das árvores, e que é feito pelos
machos como num concurso de beleza para atrair as fêmeas, eu pergunto-me se não
haverá aí algo de intencional e de sentido estético, mas adiante.
Desde os seus primórdios,
desde as pinturas das cavernas, as gravuras rupestres, ao longo de toda a sua
história, o homem se exprimiu, se projectou, tirou prazer da actividade artística.
Esta é uma característica partilhada por todos os indivíduos da nossa espécie. Letrado
ou analfabeto, o ser humano procura embelezar tudo aquilo em que toca, o
ambiente em que vive, os objectos de que se serve, mesmo quando não se dá conta
disso. Recordo-me de, quando no mundo rural, já extinto, em que me criei,
passávamos por certos lugares do campo e víamos um terreno lavrado (com junta
de bois porque ainda não havia tractores) com sulcos muito regulares, direitos
como um fio, dizermos: este terreno deve ser de fulano. Era um morador lá da
aldeia que tinha brio e prazer no que fazia, que lavrava com estilo. Pela
feição da sua lavra conhecíamos o dono do terreno como pelas características de
um texto literário se conhece o seu autor. No mundo rural procurávamos tornar
tudo mais bonito, os objectos de uso próprio como as rocas de fiar, e até os
destinados aos animais, como os jugos de bois. Certamente já viram certos jugos
minhotos, que são autênticas obra de arte, utilizados agora como objectos
decorativos. Até os albardeiros alindavam as albardas que faziam para os
jumentos e as tecedeiras os alforges que das albardas pendiam.
Procurávamos também o
belo através da música, fazendo flautas do caule oco de certas plantas, com as
toadas que acompanhavam as coreografias dos jogos de roda. Havia ritmo musical
no modo como se batia o ferro na forja, como se manejavam os manguais,
alternadamente, por duas filas de malhadores, de frente uma para a outra,
avançando ou recuando sobre o cereal estirado a seus pés; no manejo da foice
pelos ceifeiros, segundo a cadência das cantigas da segada.
Não vou falar das mil
maneiras com que alindamos as nossas cidades, não me chegaria o tempo. Bastará
dizer que embelezamos até o chão que pisamos, com a calçada à portuguesa ou de outras
maneiras.
Assim sendo, e dado que o
sentido do belo é conatural ao homem, não há qualquer exagero em dizer que, em
certa medida, todos somos artistas. Há os artistas consagrados, como há os
santos canonizados, e há a maioria silenciosa ou silenciada. Seria de toda a
justiça instituir o dia de todos os artistas como há o dia de todos os santos,
levantar monumentos ao artista desconhecido, como os há ao soldado que não se
conhece.
Todos perseguimos a beleza,
mesmo quando não lhe damos esse nome, mesmo quando nos enganamos no caminho,
até chegarmos ao fim da viagem sem a conquistarmos, por que a beleza perfeita não
é deste mundo. No trajecto há aqueles que a demandam com mais paixão, os mais
viciados ou adictos da beleza, os artistas, os sonhadores que vivem a relação
com ela, atrevo-me a dizê-lo, como um tóxico- dependente em relação à substância
viciante, e que a ela sacrificam tudo o resto. Daí ser tão difícil harmonizar a
vida artística com a vida familiar e profissional; daí que muitos criadores
vivam a relação com a arte como uma espécie de adultério. A arte é uma amante
exigente, caprichosa, exclusivista; ai de quem não resiste aos seus encantos.
Não se estranhe, portanto, que Alexandre Herculano dissesse que ou havia de
fazer livros ou filhos, e que Miguel Torga, antes de casar, tenha avisado a
futura mulher mais ou menos nestes termos: “E lembra-te de que eu não trocaria
por ti um dos meus versos.”
O sentido do belo é
ontológico no homem, o que não acontece, que se saiba, com os outros animais.
Temos com eles muito em comum. Gostamos, por exemplo, como os gatos, de certas
iguarias, eles até nos surripiam as filhoses; mas os humanos, entre si,
enamoram-se de uns lindos olhos. Ora os gatos sãos dos animais com olhos mais
bonitos e não consta que isso tenha qualquer importância nos seus
relacionamentos e acasalamentos. Gostam como nós de filhoses, mas nós temos
outros gostares que eles não têm: extasiamo-nos com a beleza de uma flor,
emocionamo-nos com um pôr do sol, com uma noite estrelada, a que eles são
indiferentes. Por isso atrevo-me a pôr a
questão se não será nesses outros gostares que reside a diferença específica
que nos distingue dos animais não humanos e acrescentaria até, que mais nos
aproxima do plano divino. O homem, diz a Bíblia, foi criado à imagem e semelhança
de Deus. Parece que o traço que melhor reflecte o selo divino que há em nós é
precisamente esse sentido do belo. O artista, o poeta (do grego poiein criar, produzir) é, no seu acto
criador, uma espécie de émulo de Deus; quando acrescenta ao mundo um fragmento
de beleza, também ele é demiurgo. Daí que os antigos gregos entendessem a
inspiração poética como uma espécie de possessão, como um transe a que chamavam enthousiasmós (donde provém o nosso
vocábulo entusiasmo) em que um daimon
tomava conta do vate e falava através dele. Daimon
deu em português demónio, mas não tinha o sentido mau que têm entre nós. Era um
génio supra-natural simplesmente.
Por isso não é escritor,
não é poeta quem quer; para o ser é preciso possuir o daimon. Mas há que acrescentar que essa condição necessária não é
suficiente. Porque se exige, também, muito trabalho, a inspiração requer muita
transpiração. Chegar ao simples, que geralmente coincide com o belo, é a coisa
mais complexa. Conseguir uma pepita de beleza exige frequentemente remover
toneladas de cascalho. Se conhecêssemos o processo criativo da maior parte dos
artistas, se espreitássemos a sua oficina de trabalho, ficaríamos espantados ao
deparar com uma escombreira. Criar é procurar, escolher, rejeitar, escrever e reescrever,
falhar, emendar, rasurar, polir, limar, afagar, à procura da palavra certa, da
expressão que ainda não foi dita por ninguém, e ficar sempre insatisfeito, sem
ter a certeza que se fez a melhor escolha. É isso que descrevem os escritores
quando se confessam com sinceridade. Já Sá de Miranda, poeta quinhentista,
dizia que lambia os seus versos como a ursa lambe os seus filhinhos. Então, na
poesia, sujeita a regras mais estrictas, em que tudo depende de tudo como no
xadrez, alterar uma peça pode resolver um problema, mas criar dezenas de
outros. No entanto, o perseguidor da beleza não desiste, fascinado por uma espécie
de sortilégio. Como disse atrás, a criação artística é simultaneamente penosa e
prazerosa. Um pequeno poema, um parágrafo que nós lemos em segundos, sentados
no sofá, custou ao seu criador dias, semanas de canseira. Porque é que as
mesmas palavras agrupadas, combinadas, associadas de outra maneira, produzem
efeitos diferentes? Porque é que, em vez de dizermos “alma minha gentil que te
partiste”, bastava trocar as duas primeiras palavras e em vez de “alma minha”
dizer minha alma, para ficar tudo estragado? Em vão procuraremos respostas
racionais, estamos no domínio da magia.
§
Outras forças motrizes
que estão na génese das criações literárias são aquelas a que chamei
higiénicas. E aqui os nossos mestres continuam a ser os gregos. Foi o filósofo
Aristóteles que, na sua obra “Arte
Poética”, atribuiu à criação artística o que ele chamou função catártica,
ou seja, função de limpeza, de purgação. Catártico deriva de catarse que, na
sua forma grega, kátharsis, significa
clister. Através da arte os criadores libertar-se-iam dos seus traumas
interiores, evacuariam os seus complexos e obsessões, exorcizariam os seus
fantasmas, os seus demónios. Trata-se de recheios acumulados nas caves, nos bas-fonds da psique, em grande parte
inconscientes, pelo que quem melhor os pode diagnosticar não são os próprios
artistas, mas os seus críticos e os psicanalistas.
No que me diz respeito, e
particularmente em relação a este livro, os psicanalistas são dispensáveis, as
coisas são muito simples: os motores da minha escrita são os meus defeitos, o
meu mau feitio. Desde que me conheço, me reconheço um cara de temperamento irritadiço,
impaciente. Quando era garoto e lá nas berças levava as vacas a pastar para o
lameiro, quando elas não se portavam como eu queria, me desobedeciam, eu ia aos
arames, descompunha-as, chamava-lhes os piores nomes em português do mais
vernáculo.
Só mais tarde, quando vim
para a cidade e conheci certos espécimes do homo
sapiens é que eu dei o verdadeiro valor às minhas vacas e me arrependi da
forma injusta como as tratava. Ao pé de muitos bípedes racionais, as minhas
vacas eram umas santas. Não eram dissimuladas, vigaristas, corruptas, venais,
escroques. Não torturavam os humanos como nós as torturamos, não faziam
homenzadas como nós fazemos touradas.
Eu nunca me esqueci duma altercação
que presenciei uma vez em Lisboa entre um homem e uma mulher em que ele lhe
atirou à cara “sua vaca”. Fiquei aparvalhado e sem perceber como é que o nome
de um animal tão prestável, tão pacífico, podia ser usado como ofensa, e também
não percebia como é que o nome de boi pudesse ser atribuído a um marido
enganado. Para mim o contrário é que faria sentido: que os bovinos, nas suas
desavenças e altercações, se insultassem chamando-se sua mulher, seu homem,
acharia perfeitamente natural.
De então para cá os alvos
das minhas raivas, das minhas execrações passaram a ser esses seres ascorosos que
não posso ver à minha frente, e que mesmo quando aparecem na tv me obrigam a
mudar de canal. O pó que lhes tenho é a minha inspiração.
Por isso é que, na última
cantiga deste livro, dirigida a Donald Trump, despejei o saco, esgotei todos os
impropérios. É um soneto, portanto com 14 versos, a 3 insultos por cada verso,
dá 42 objurgatórias de rajada. Só não lhe chamei um nome: o de avacalhado, por
respeito e em memória das minhas vacas.
§
Para terminar, só mais
uma breve referência às motivações intencionais, ou seja, aos propósitos
visados pelos autores com as suas obras, e que correspondem sensivelmente ao
que Aristóteles e os escolásticos chamavam a causa final da obra artística.
No que se refere aos artistas da palavra, os
poetas e escritores, eu diria que há autores, que visam, acima de tudo, o seu
próprio engrandecimento, a notoriedade, a fama, a coroa de louro como os atletas
olímpicos. O poeta latino Horácio pode ser o representante desta estirpe de
escritores. Começa uma das odes, e referindo-se à sua própria obra, por um
verso que se tornou célebre, e em que escreve: “erigi um monumento mais perene
que o bronze”. A expressão “mais perene que o bronze” ficou como uma máxima
ainda hoje utilizada na sua forma latina, aere
perennius, quando se quer assinalar o carácter imorredoiro de algum feito
ou monumento. Entre nós temos um escritor que bem pode rivalizar ou mesmo
superar o autor latino no auto-comprazimento. É António Lobo Antunes, que não
se cansa de repetir que é o melhor do mundo. Ainda numa entrevista recente
disse mais uma vez e cito: “Ninguém escreve como eu; ninguém escreveu como eu. Para
ser totalmente sincero é isto que sinto “- fim de citação. Vaidade? Direi antes,
consciência do próprio valor. De resto todos temos direito a uma certa dose de
afagamento do ego, de narcisismo, desde que não exceda as medidas.
Há outros escritores
menos ensimesmados, mais voltados para o mundo, mundo que acreditam poder tornar-se
num lugar mais habitável e que podem dar o seu contributo para isso. Quando
somos jovens, transpiramos idealismo, nutrimo-nos de sonhos, mudar o mundo é
questão de vontade, a utopia está ao alcance da mão. À medida que avançamos na
idade, que amadurecemos, damo-nos conta das nossas ingenuidades, o entusiasmo esmorece,
vamo-nos metamorfoseando de Quixotes em Sanchos Pança; a alma vai ficando mais pequena
e perguntamo-nos se ainda vale a pena. Muitos desistem, atiram a toalha ao
chão. Outros fecham-se no cinismo. Só persistem uns poucos, uns líricos, uns
pobres diabos, aqueles para os quais o sonho ainda comanda a vida, aqueles que ainda
são tocados pelas palavras daquele poeta que há 2018 anos andou por terras da
Judeia e que entre outras coisas imorredoiras nos dizia: “ Não só de pão vive o
homem”, “olhai os lírios do campo”, “deixai vir a mim as criancinhas”. São os
poetas, os músicos, os cantores, os dramaturgos, aqueles cada vez mais raros,
que vêem o mundo não apenas pelo prisma da eficiência, da produtividade, dos
dividendos. Aqueles que ajudaram a fazer de Portugal um país mais livre e que,
sem o seu contributo eu não poderia publicar um livro de cantigas de maldizer,
e não estaríamos hoje aqui a fazer este lançamento.
Esses visionários, esses
inadaptados não dispõem de outras armas a não ser as palavras. E as palavras
podem ser utlizadas de duas maneiras: ou em discursos moralistas e sermões
aterradores, como faziam antigamente os padres da aldeia, o que já não pega, ou
então em receitas mais eficazes, que os antigos já nos ensinavam, quando
sentenciavam: “castigat ridendo mores”,
isto é, os costumes, os maus costumes, castigam-se, corrigem-se
ridicularizando-os. Não há coisa que as pessoas mais temam do que serem expostas
ao ridículo. E foi da melhor forma, com uma enorme gargalhada, que recentemente
a Assembleia Geral das Nações Unidas respondeu a uma das muitas bacoradas de
Donald Trump.
Com A Nata do Povo eu procurei seguir essa receita. Oxalá resulte.
Sem comentários:
Enviar um comentário