segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

"A Nata do Povo" pelo seu autor - Flávio Vara




















Por FLÁVIO VARA

Caros amigos, caros conterrâneos, eu já cheguei àquela idade em que às brancas da cabeça acrescem outras brancas, as da memória; por isso, à cautela e com vossa licença, vou servir-me de uma cábula para o que quero dizer.
E o que quero dizer é, em primeiro lugar, que neste momento me sinto muito gratificado e muito honrado com a vossa presença, com a vossa companhia. Deslocastes-vos aqui a esta hora, certamente com transtorno para a vossa vida diária e, se não obstante o fizestes, foi por consideração para com o autor do livro ora lançado. As pessoas em geral, e os transmontanos em particular, gostam de ser considerados, eu não fujo à regra, estou muito sensibilizado, muito confortado e faço questão de vos manifestar o meu reconhecimento.
Ao Presidente da Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro agradeço a cordialidade com que disponibilizou as instalações da casa para este fim. E já agora, aproveito para o felicitar pelo impulso e dinamismo que vem   imprimindo às actividades desta agremiação. Expoentes dessa operosidade são, por exemplo, as obras e melhorias realizadas aqui na sede e o Congresso, o IV Congresso de Trás-os-Montes e Alto Douro, que teve lugar em Maio último. Um dos outputs desse congresso é uma antologia, volumosa antologia, de autores transmontanos e alto-durienses, que ficará como um marco, uma referência incontornável na cultura nordestina. O responsável, o coordenador dessa antologia foi uma pessoa tão modesta e discreta consigo própria, como generosa para com os outros, o Prof. Armando Palavras, que se dignou fazer a apresentação do meu livro e a quem rendo a minha gratidão.
Agradeço ainda à Dr.ª Elsa Moreira, Vice-Presidente desta casa e activa responsável pelo pelouro cultural, o apoio que me prestou na preparação deste lançamento.

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Estamos na Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro; nada mais lógico, mais natural do que os livros aqui lançados e apresentados abordarem assuntos, temas, relacionados com as terras nordestinas, como aliás tenho constatado nos lançamentos a que aqui tenho assistido. Mas, sob esse ponto de vista, o meu livro não aparenta ser trasmontano. E direi mais, nem poderia ser. Porquê? Porque para compor cantigas de maldizer é preciso que haja pessoas de quem se possa dizer mal. Ora em Trás-os-Montes, no reino maravilhoso, não há disso. Poderão retorquir-me: Ah ele é assim? E então fulano, sicrano e beltrano, que têm andado por aí nas bocas do mundo, que são notícia na comunicação social, pelas piores razões, não são transmontanos? A esses eu respondo: sim, são transmontanos de nascimento, mas não vivem lá, vivem aqui na grande Lisboa porque, tratando-se de excepções, não se sentiam confortáveis no meio de gente digna, de gente honrada e saíram de lá; ao passo que noutras províncias também há naturais degenerados, mas não saem de lá, porque se sentem lá bem.

Mas, descontada a ironia e contra as aparências, este livro é trasmontano de uma ponta á outra. Se o não é no conteúdo, é-o na forma. Trata-se de cantigas à moda trasmontana. Explico-me.
Como sabem, as cantigas de escárnio e maldizer, eram na Idade Média, nos inícios da nossa nacionalidade, juntamento com as cantigas de amigo e as cantigas de amor, uma das três modalidades poéticas daquele tempo. E, com este ou outro nome, têm persistido, com vários poetas e escritores, ao longo da nossa literatura. Mas, pervivem também e de forma mais genuína, por via popular, sobretudo no meio rural, sempre mais arreigado às tradições, e com maior expressão em Trás-os-Montes. Em boa parte das aldeias nordestinas, por alturas do Entrudo, realizam-se manifestações, em que, grupos de populares, sobretudo de entre a mocidade, se juntam num largo da aldeia e, em altas vozes,  em versos trocistas e chocarreiros, passam em revista e comentam os acontecimentos mais picantes que tiveram lugar ao longo do ano, com os respectivos protagonistas. Nalgumas aldeias, como na minha, tais récitas assumem a forma de casamentos fictícios. Designa-se um noivo e uma noiva de entre as gentes da terra, casam-se e dá-se-lhes um dote. É no dote que geralmente é arriada a jiga. Noutras aldeias essas chufas designam-se por Serrar da Velha. Eu até estive para usar essa expressão como título do meu livro; não foi desta, fica para a próxima. Ora é nessas récitações, nessas cantigas, que o meu livro se inspira. Foi a elas que fui buscar o modelo, o ethos. A sua marca trasmontana é inconfundível.

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Quando pensei no que poderia dizer de pertinente nesta circunstância, e dado que havia quem falasse sobre o livro, sobre o quê, lembrei-me de que talvez não fosse descabido referir-me ao porquê e ao para quê, ou seja, às razões, às motivações que me levaram a escrevê-lo.
Essa é, aliás, uma das perguntas mais frequentes que fazem aos escritores quando os entrevistam: porque escreve? Note-se que estou a falar de uma ínfima parte dos que escrevem, dos autores de um tipo de escrita bem específica, a escrita literária, que se caracteriza pela sua qualidade estética, consistente e reconhecida. E aqui emerge outra pergunta que convém ser respondida antes da primeira, que é a seguinte: porque é que, de entre todos os que escrevem, só a essa pequena parte se perguntam as razões porque o fazem? Porque, em relação à escrita não literária faz pouco sentido questionar essas razões, dado serem óbvias para toda a gente. Quer se trate de escrita científica, técnica, didática, profissional ou outra, visa transmitir conhecimentos, ensinamentos, responder a problemas concretos, é útil, serve para muitos fins. Diferentemente, a escrita literária não serve para nada; é inútil, gratuita, lúdica, não tem outra finalidade que não seja ela mesma, como a brincadeira de uma criança. O objecto da escrita não literária é a informação, o da literária é a emoção.
Ainda há dias eu li no jornal Público (2018-12-7) o que um romancista americano, que é também professor de literatura numa universidade, dizia sobre as perguntas que seus alunos lhe faziam quanto à “utilidade” da escrita literária, perguntas deste teor: “quando é que vamos precisar de saber isto na vida real?” (isto era o Hamlet de Shakespeare); “vou ser um contabilista, para que preciso de poesia?”. É a esses que a nossa poetisa Natália Correia lança o seu repto. “Ó subalimentados do sonho, a poesia é para comer”.
Revertamos então à pergunta inicial: que razões, que pulsões levam certos autores a aventurarem-se nesse reino ao mesmo tempo trabalhoso e prazeroso da criação literária? As razões variam conforme os autores, mas algumas delas são comuns a todos. E é dessas que terei de partir, porque é nelas que as minhas encaixam.  Na minha perspectiva, são de três ordens: razões estéticas, razões higiénicas e razões de intencionalidade. Estão simultaneamente presentes no acto criativo, mas em doses diferentes e com diferentes predominâncias, conforme os autores e os géneros literários adoptados.
Começando pelas estéticas, podemos dizer que se escreve pelas mesmas razões porque nos vestimos ou penteamos de determinada maneira; que trauteamos ou assobiamos uma melodia, que penduramos um quadro na parede da sala, que se faz um bordado, que uma criança se entretém a colorir uma folha em branco; ou seja, porque o ser humano é inata
mente dotado de um sentido do belo, que integra a nossa estrutura psíquica, que está inscrito no nosso ADN e nos singulariza entre todos os outros animais. Faço notar que os outros animais também são dotados de alma; de resto a palavra animal deriva de anima, alma, em latim. Do que não são dotados é de sentido estético como nós. Pelo menos é o que até agora se pensa; sobre o que se virá a pensar no futuro, já não diga nada. Até há pouco tempo também se dizia que o homem era o único animal dotado de razão,  de inteligência, mas desde que se comprovou que outros parentes nossos, designadamente entre os primatas, partilham connosco cerca de 99% do património genético, que não só utilizam instrumentos mas até os fabricam, o homem deixou de poder ser definido como animal racional. A diferença entre nós e eles é apenas de grau, não de natureza. E quando penso na forma como certas aves fazem o ninho, uma obra prima de que nem os melhores arquitectos são capazes, pendurado nos ramos das árvores, e que é feito pelos machos como num concurso de beleza para atrair as fêmeas, eu pergunto-me se não haverá aí algo de intencional e de sentido estético, mas adiante.
Desde os seus primórdios, desde as pinturas das cavernas, as gravuras rupestres, ao longo de toda a sua história, o homem se exprimiu, se projectou, tirou prazer da actividade artística. Esta é uma característica partilhada por todos os indivíduos da nossa espécie. Letrado ou analfabeto, o ser humano procura embelezar tudo aquilo em que toca, o ambiente em que vive, os objectos de que se serve, mesmo quando não se dá conta disso. Recordo-me de, quando no mundo rural, já extinto, em que me criei, passávamos por certos lugares do campo e víamos um terreno lavrado (com junta de bois porque ainda não havia tractores) com sulcos muito regulares, direitos como um fio, dizermos: este terreno deve ser de fulano. Era um morador lá da aldeia que tinha brio e prazer no que fazia, que lavrava com estilo. Pela feição da sua lavra conhecíamos o dono do terreno como pelas características de um texto literário se conhece o seu autor. No mundo rural procurávamos tornar tudo mais bonito, os objectos de uso próprio como as rocas de fiar, e até os destinados aos animais, como os jugos de bois. Certamente já viram certos jugos minhotos, que são autênticas obra de arte, utilizados agora como objectos decorativos. Até os albardeiros alindavam as albardas que faziam para os jumentos e as tecedeiras os alforges que das albardas pendiam.
Procurávamos também o belo através da música, fazendo flautas do caule oco de certas plantas, com as toadas que acompanhavam as coreografias dos jogos de roda. Havia ritmo musical no modo como se batia o ferro na forja, como se manejavam os manguais, alternadamente, por duas filas de malhadores, de frente uma para a outra, avançando ou recuando sobre o cereal estirado a seus pés; no manejo da foice pelos ceifeiros, segundo a cadência das cantigas da segada.
Não vou falar das mil maneiras com que alindamos as nossas cidades, não me chegaria o tempo. Bastará dizer que embelezamos até o chão que pisamos, com a calçada à portuguesa ou de outras maneiras.
Assim sendo, e dado que o sentido do belo é conatural ao homem, não há qualquer exagero em dizer que, em certa medida, todos somos artistas. Há os artistas consagrados, como há os santos canonizados, e há a maioria silenciosa ou silenciada. Seria de toda a justiça instituir o dia de todos os artistas como há o dia de todos os santos, levantar monumentos ao artista desconhecido, como os há ao soldado que não se conhece.
Todos perseguimos a beleza, mesmo quando não lhe damos esse nome, mesmo quando nos enganamos no caminho, até chegarmos ao fim da viagem sem a conquistarmos, por que a beleza perfeita não é deste mundo. No trajecto há aqueles que a demandam com mais paixão, os mais viciados ou adictos da beleza, os artistas, os sonhadores que vivem a relação com ela, atrevo-me a dizê-lo, como um tóxico- dependente em relação à substância viciante, e que a ela sacrificam tudo o resto. Daí ser tão difícil harmonizar a vida artística com a vida familiar e profissional; daí que muitos criadores vivam a relação com a arte como uma espécie de adultério. A arte é uma amante exigente, caprichosa, exclusivista; ai de quem não resiste aos seus encantos. Não se estranhe, portanto, que Alexandre Herculano dissesse que ou havia de fazer livros ou filhos, e que Miguel Torga, antes de casar, tenha avisado a futura mulher mais ou menos nestes termos: “E lembra-te de que eu não trocaria por ti um dos meus versos.”

O sentido do belo é ontológico no homem, o que não acontece, que se saiba, com os outros animais. Temos com eles muito em comum. Gostamos, por exemplo, como os gatos, de certas iguarias, eles até nos surripiam as filhoses; mas os humanos, entre si, enamoram-se de uns lindos olhos. Ora os gatos sãos dos animais com olhos mais bonitos e não consta que isso tenha qualquer importância nos seus relacionamentos e acasalamentos. Gostam como nós de filhoses, mas nós temos outros gostares que eles não têm: extasiamo-nos com a beleza de uma flor, emocionamo-nos com um pôr do sol, com uma noite estrelada, a que eles são indiferentes.  Por isso atrevo-me a pôr a questão se não será nesses outros gostares que reside a diferença específica que nos distingue dos animais não humanos e acrescentaria até, que mais nos aproxima do plano divino. O homem, diz a Bíblia, foi criado à imagem e semelhança de Deus. Parece que o traço que melhor reflecte o selo divino que há em nós é precisamente esse sentido do belo. O artista, o poeta (do grego poiein criar, produzir) é, no seu acto criador, uma espécie de émulo de Deus; quando acrescenta ao mundo um fragmento de beleza, também ele é demiurgo. Daí que os antigos gregos entendessem a inspiração poética como uma espécie de possessão, como um transe a que chamavam enthousiasmós (donde provém o nosso vocábulo entusiasmo) em que um daimon tomava conta do vate e falava através dele. Daimon deu em português demónio, mas não tinha o sentido mau que têm entre nós. Era um génio supra-natural simplesmente.
Por isso não é escritor, não é poeta quem quer; para o ser é preciso possuir o daimon. Mas há que acrescentar que essa condição necessária não é suficiente. Porque se exige, também, muito trabalho, a inspiração requer muita transpiração. Chegar ao simples, que geralmente coincide com o belo, é a coisa mais complexa. Conseguir uma pepita de beleza exige frequentemente remover toneladas de cascalho. Se conhecêssemos o processo criativo da maior parte dos artistas, se espreitássemos a sua oficina de trabalho, ficaríamos espantados ao deparar com uma escombreira. Criar é procurar, escolher, rejeitar, escrever e reescrever, falhar, emendar, rasurar, polir, limar, afagar, à procura da palavra certa, da expressão que ainda não foi dita por ninguém, e ficar sempre insatisfeito, sem ter a certeza que se fez a melhor escolha. É isso que descrevem os escritores quando se confessam com sinceridade. Já Sá de Miranda, poeta quinhentista, dizia que lambia os seus versos como a ursa lambe os seus filhinhos. Então, na poesia, sujeita a regras mais estrictas, em que tudo depende de tudo como no xadrez, alterar uma peça pode resolver um problema, mas criar dezenas de outros. No entanto, o perseguidor da beleza não desiste, fascinado por uma espécie de sortilégio. Como disse atrás, a criação artística é simultaneamente penosa e prazerosa. Um pequeno poema, um parágrafo que nós lemos em segundos, sentados no sofá, custou ao seu criador dias, semanas de canseira. Porque é que as mesmas palavras agrupadas, combinadas, associadas de outra maneira, produzem efeitos diferentes? Porque é que, em vez de dizermos “alma minha gentil que te partiste”, bastava trocar as duas primeiras palavras e em vez de “alma minha” dizer minha alma, para ficar tudo estragado? Em vão procuraremos respostas racionais, estamos no domínio da magia.

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Outras forças motrizes que estão na génese das criações literárias são aquelas a que chamei higiénicas. E aqui os nossos mestres continuam a ser os gregos. Foi o filósofo Aristóteles que, na sua obra “Arte Poética”, atribuiu à criação artística o que ele chamou função catártica, ou seja, função de limpeza, de purgação. Catártico deriva de catarse que, na sua forma grega, kátharsis, significa clister. Através da arte os criadores libertar-se-iam dos seus traumas interiores, evacuariam os seus complexos e obsessões, exorcizariam os seus fantasmas, os seus demónios. Trata-se de recheios acumulados nas caves, nos bas-fonds da psique, em grande parte inconscientes, pelo que quem melhor os pode diagnosticar não são os próprios artistas, mas os seus críticos e os psicanalistas.
No que me diz respeito, e particularmente em relação a este livro, os psicanalistas são dispensáveis, as coisas são muito simples: os motores da minha escrita são os meus defeitos, o meu mau feitio. Desde que me conheço, me reconheço um cara de temperamento irritadiço, impaciente. Quando era garoto e lá nas berças levava as vacas a pastar para o lameiro, quando elas não se portavam como eu queria, me desobedeciam, eu ia aos arames, descompunha-as, chamava-lhes os piores nomes em português do mais vernáculo.
Só mais tarde, quando vim para a cidade e conheci certos espécimes do homo sapiens é que eu dei o verdadeiro valor às minhas vacas e me arrependi da forma injusta como as tratava. Ao pé de muitos bípedes racionais, as minhas vacas eram umas santas. Não eram dissimuladas, vigaristas, corruptas, venais, escroques. Não torturavam os humanos como nós as torturamos, não faziam homenzadas como nós fazemos touradas.
Eu nunca me esqueci duma altercação que presenciei uma vez em Lisboa entre um homem e uma mulher em que ele lhe atirou à cara “sua vaca”. Fiquei aparvalhado e sem perceber como é que o nome de um animal tão prestável, tão pacífico, podia ser usado como ofensa, e também não percebia como é que o nome de boi pudesse ser atribuído a um marido enganado. Para mim o contrário é que faria sentido: que os bovinos, nas suas desavenças e altercações, se insultassem chamando-se sua mulher, seu homem, acharia perfeitamente natural.
De então para cá os alvos das minhas raivas, das minhas execrações passaram a ser esses seres ascorosos que não posso ver à minha frente, e que mesmo quando aparecem na tv me obrigam a mudar de canal. O pó que lhes tenho é a minha inspiração.

Por isso é que, na última cantiga deste livro, dirigida a Donald Trump, despejei o saco, esgotei todos os impropérios. É um soneto, portanto com 14 versos, a 3 insultos por cada verso, dá 42 objurgatórias de rajada. Só não lhe chamei um nome: o de avacalhado, por respeito e em memória das minhas vacas.
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Para terminar, só mais uma breve referência às motivações intencionais, ou seja, aos propósitos visados pelos autores com as suas obras, e que correspondem sensivelmente ao que Aristóteles e os escolásticos chamavam a causa final da obra artística.
 No que se refere aos artistas da palavra, os poetas e escritores, eu diria que há autores, que visam, acima de tudo, o seu próprio engrandecimento, a notoriedade, a fama, a coroa de louro como os atletas olímpicos. O poeta latino Horácio pode ser o representante desta estirpe de escritores. Começa uma das odes, e referindo-se à sua própria obra, por um verso que se tornou célebre, e em que escreve: “erigi um monumento mais perene que o bronze”. A expressão “mais perene que o bronze” ficou como uma máxima ainda hoje utilizada na sua forma latina, aere perennius, quando se quer assinalar o carácter imorredoiro de algum feito ou monumento. Entre nós temos um escritor que bem pode rivalizar ou mesmo superar o autor latino no auto-comprazimento. É António Lobo Antunes, que não se cansa de repetir que é o melhor do mundo. Ainda numa entrevista recente disse mais uma vez e cito: “Ninguém escreve como eu; ninguém escreveu como eu. Para ser totalmente sincero é isto que sinto “- fim de citação. Vaidade? Direi antes, consciência do próprio valor. De resto todos temos direito a uma certa dose de afagamento do ego, de narcisismo, desde que não exceda as medidas.
Há outros escritores menos ensimesmados, mais voltados para o mundo, mundo que acreditam poder tornar-se num lugar mais habitável e que podem dar o seu contributo para isso. Quando somos jovens, transpiramos idealismo, nutrimo-nos de sonhos, mudar o mundo é questão de vontade, a utopia está ao alcance da mão. À medida que avançamos na idade, que amadurecemos, damo-nos conta das nossas ingenuidades, o entusiasmo esmorece, vamo-nos metamorfoseando de Quixotes em Sanchos Pança; a alma vai ficando mais pequena e perguntamo-nos se ainda vale a pena. Muitos desistem, atiram a toalha ao chão. Outros fecham-se no cinismo. Só persistem uns poucos, uns líricos, uns pobres diabos, aqueles para os quais o sonho ainda comanda a vida, aqueles que ainda são tocados pelas palavras daquele poeta que há 2018 anos andou por terras da Judeia e que entre outras coisas imorredoiras nos dizia: “ Não só de pão vive o homem”, “olhai os lírios do campo”, “deixai vir a mim as criancinhas”. São os poetas, os músicos, os cantores, os dramaturgos, aqueles cada vez mais raros, que vêem o mundo não apenas pelo prisma da eficiência, da produtividade, dos dividendos. Aqueles que ajudaram a fazer de Portugal um país mais livre e que, sem o seu contributo eu não poderia publicar um livro de cantigas de maldizer, e não estaríamos hoje aqui a fazer este lançamento.
Esses visionários, esses inadaptados não dispõem de outras armas a não ser as palavras. E as palavras podem ser utlizadas de duas maneiras: ou em discursos moralistas e sermões aterradores, como faziam antigamente os padres da aldeia, o que já não pega, ou então em receitas mais eficazes, que os antigos já nos ensinavam, quando sentenciavam: “castigat ridendo mores”, isto é, os costumes, os maus costumes, castigam-se, corrigem-se ridicularizando-os. Não há coisa que as pessoas mais temam do que serem expostas ao ridículo. E foi da melhor forma, com uma enorme gargalhada, que recentemente a Assembleia Geral das Nações Unidas respondeu a uma das muitas bacoradas de Donald Trump.
Com A Nata do Povo eu procurei seguir essa receita. Oxalá resulte.  

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