JORGE LAGE |
À hora de entre
o cão e o lobo.
(conto – Parte final – continuação do
anterior, por Henrique Pedro)
Ocorreu-me
chamá-lo. Ainda ensaiei um breve assobio. Porém, num ápice, lembrei-me das
histórias trágicas que ouvira sobre lobos que devoraram pessoas. Como a da professorinha
de quem apenas restaram os sapatos e nem o jumento que montava se salvou. Ou a
dos oitentas soldados de Napoleão que na campanha da Rússia foram dizimados por
uma alcateia imensa não sem antes terem abatido a tiro trezentas feras.
No campo de
batalha apenas terão sido encontrados os uniformes e as espingardas.
Os uivos eram
agora mais frequentes e vinham de várias direcções, ululados em concerto, como
se houvesse trocas de mensagens a perpassar a serra, de lés a lés.
Ensaiei correr
mas retomei o passo com receio de perder o caminho.
De repente,
porém, dei-me conta de que era seguido a curta distância e uma certa segurança
interior me recompôs o ânimo. Atrás de mim pressenti um ser que saltava para
fora e para dentro do caminho, sem que eu o divisasse, até porque não me
atrevia a olhar para trás e muito menos a parar. Mas um suave “frreee...,
frreee..., frreee” de patas a comprimirem a neve era perceptível, descompassado
do som mais pesado dos meus passos.
De novo me
ocorreu chamar pelo Godo. Voltei a não o fazer por igualmente me ter lembrado
de ouvir dizer que os lobos não têm olfacto mas possuem, em contrapartida, ouvido
apuradíssimo. As alcateias orquestravam por perto e o propósito do meu inesperado
companheiro de jornada talvez fosse mantê-las afastadas, não referenciando a
minha presença, nem dando ensejo a que outros batedores caninos o fizessem.
Prossegui
encorajado por este positivo raciocínio.
Até que o odor
característico de lenha queimada exalado das lareiras no ar silencioso, cinzento
e frio, único prenúncio de humanização, me anunciou a tranquilizadora proximidade
do povoado.
Em breve
reconheci os castanheiros familiares, passei a ouvir o gorjeio líquido da fonte
comunitária, mesmo defronte da capela de Santo António e, mais uns passos,
estava a bater sofregamente a aldraba de ferro do robusto portão de castanho.
No pátio interior os mastins saltaram, de imediato, em algazarra desenfreada.
Atrevi-me,
então, a olhar para trás. Claramente exposto sobre o muro mais próximo lá
estava o Godo, corpulento, imóvel, suavemente ofegante, de orelhas espetadas, sentado
nas patas traseiras qual impassível guardião. Só quando, de dentro, rodaram o
pesado ferrolho, não sem antes eu levantar o braço em gesto de saudação e
gritar um agradecido “ vai irmão!”, a enigmática criatura desapareceu de um
salto, mergulhando, por magia, na névoa escura em que já se diluía a derradeira
luz do dia e a noite ganhava os seus próprios contornos. Ao lusco-fusco. À hora
de entre o cão e lobo!
Falta dizer que
a primeira coisa que fiz, na manhã seguinte, foi ir agradecer a Santo
António, de
quem eu tanto me lembrara, embora só agora o confesse, durante aquela inolvidável
travessia da inóspita serra, a graça de estar ali, ajoelhado, e não a ser digerido,
retalhado às postas, pelo estômago de qualquer lobo esfaimado que não o Godo.
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