quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

À hora de entre o cão e o lobo.


JORGE LAGE

À hora de entre o cão e o lobo.
 (conto – Parte final – continuação do anterior, por Henrique Pedro)

Ouvi o primeiro uivo! De imediato a imagem amiga do Godo me veio à lembrança.
Ocorreu-me chamá-lo. Ainda ensaiei um breve assobio. Porém, num ápice, lembrei-me das histórias trágicas que ouvira sobre lobos que devoraram pessoas. Como a da professorinha de quem apenas restaram os sapatos e nem o jumento que montava se salvou. Ou a dos oitentas soldados de Napoleão que na campanha da Rússia foram dizimados por uma alcateia imensa não sem antes terem abatido a tiro trezentas feras.
No campo de batalha apenas terão sido encontrados os uniformes e as espingardas.
Os uivos eram agora mais frequentes e vinham de várias direcções, ululados em concerto, como se houvesse trocas de mensagens a perpassar a serra, de lés a lés.
Ensaiei correr mas retomei o passo com receio de perder o caminho.
De repente, porém, dei-me conta de que era seguido a curta distância e uma certa segurança interior me recompôs o ânimo. Atrás de mim pressenti um ser que saltava para fora e para dentro do caminho, sem que eu o divisasse, até porque não me atrevia a olhar para trás e muito menos a parar. Mas um suave “frreee..., frreee..., frreee” de patas a comprimirem a neve era perceptível, descompassado do som mais pesado dos meus passos.
De novo me ocorreu chamar pelo Godo. Voltei a não o fazer por igualmente me ter lembrado de ouvir dizer que os lobos não têm olfacto mas possuem, em contrapartida, ouvido apuradíssimo. As alcateias orquestravam por perto e o propósito do meu inesperado companheiro de jornada talvez fosse mantê-las afastadas, não referenciando a minha presença, nem dando ensejo a que outros batedores caninos o fizessem.
Prossegui encorajado por este positivo raciocínio.
Até que o odor característico de lenha queimada exalado das lareiras no ar silencioso, cinzento e frio, único prenúncio de humanização, me anunciou a tranquilizadora proximidade do povoado.
Em breve reconheci os castanheiros familiares, passei a ouvir o gorjeio líquido da fonte comunitária, mesmo defronte da capela de Santo António e, mais uns passos, estava a bater sofregamente a aldraba de ferro do robusto portão de castanho. No pátio interior os mastins saltaram, de imediato, em algazarra desenfreada.
Atrevi-me, então, a olhar para trás. Claramente exposto sobre o muro mais próximo lá estava o Godo, corpulento, imóvel, suavemente ofegante, de orelhas espetadas, sentado nas patas traseiras qual impassível guardião. Só quando, de dentro, rodaram o pesado ferrolho, não sem antes eu levantar o braço em gesto de saudação e gritar um agradecido “ vai irmão!”, a enigmática criatura desapareceu de um salto, mergulhando, por magia, na névoa escura em que já se diluía a derradeira luz do dia e a noite ganhava os seus próprios contornos. Ao lusco-fusco. À hora de entre o cão e lobo!
Falta dizer que a primeira coisa que fiz, na manhã seguinte, foi ir agradecer a Santo
António, de quem eu tanto me lembrara, embora só agora o confesse, durante aquela inolvidável travessia da inóspita serra, a graça de estar ali, ajoelhado, e não a ser digerido, retalhado às postas, pelo estômago de qualquer lobo esfaimado que não o Godo. 

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