JOANA MARQUES VIDAL |
Muitos de nós julgam saber o que levou
António Costa a propor a substituição da Procuradora Geral da República. Poucos
saberão, de facto, o que levou Marcelo Rebelo de Sousa a aceitá-la.
Entre a excitação da Web Summit e os
desvarios de Donald Trump, a política nacional – nomeadamente o orçamento e as
pré-campanhas eleitorais – vai sendo divertidamente estabelecida por entre a
discussão dos casos dos proveitos de Ricardo Robles e das faltas de José
Silvano.
No meio disto, é verdade, lá se vai
falando de Tancos, da Europa e da desertificação do interior, mas apenas na
medida em que os responsáveis políticos pareçam estar em contradição, ou
desacordo, ou em que boa parte do território esteja nessa altura a arder, isto
é, não se discutindo, na esfera pública, os assuntos pela importância que de
facto têm, ou deveriam ter, mas pelo potencial novelesco ou de entretenimento
que representam.
O mesmo se passa – ou melhor, passou –
com o «afastamento» da Procuradora-Geral da República, que, findo o espetáculo
proporcionado pela surpresa da sua «não recondução» (a decisão do Presidente da
República e do Primeiro-Ministro foi ou não foi concertada? e quando é que a
concertaram? e é verdade que defenderam sempre o princípio do mandato único? e
defenderam o princípio do mandato único ou o da limitação dos mandatos? e a
Procuradora foi ou não sondada no sentido de continuar?), logo caiu no
esquecimento.
Mas não devia. Porque se é relativamente
indiferente, ou até útil, que a habilidade política consiga eficazmente
controlar o tempo e o modo daquilo que se discute no espaço público, já não é
de todo indiferente – e muito menos saudável – que ela possa decidir aquilo de
que se fala e de que não se fala. Pelo contrário, sempre que politicamente se
cria um tal ambiente, ou regime, confunde-se invariavelmente o interesse da
parte com o do todo – quer dizer, o interesse do chefe com o do partido, o do
partido com o do Estado, o do Estado com o do país e o do país com o do mundo –
e a história mostra-nos bem o fim de tais desventuras.
Dizendo de outro modo: a manha, ou a
astúcia, ou a habilidade negocial, é sem dúvida uma importante virtude política,
como tal reconhecida, aliás, desde o tempo dos antigos gregos, que justamente a
atribuíam ao Rei Ulisses, que apelidavam «dos mil ardis». É bom e útil, nesse
sentido, que tal qualidade se conte entre aquelas que podem observar-se na ação
política do nosso Primeiro-Ministro, que assim saberá garantir um melhor
desfecho para as negociações que conduz em nosso nome. É fundamental, no
entanto, que tal qualidade seja por ele posta ao serviço do todo, tendo sempre
bem presente aquilo que é essencial, caso contrário pode chegar a perder-se
aquilo em vista do qual se negociava (no caso de Ulisses, tratava-se da união e
da cooperação dos gregos). Há coisas, com efeito, que não são negociáveis.
Ora, o caso da «substituição» da
Procuradora-Geral da República era essencial para o nosso país, porque durante
o mandato da anterior Procuradora-Geral se abriram processos tão importantes
que podem pôr em causa o próprio regime, como são os relativos a José Sócrates,
antigo Primeiro-Ministro de Portugal, e a Ricardo Salgado, antigo Presidente do
Banco Espírito Santo, para já não falar de outros, alguns dos quais, aliás,
estão ou estarão com estes relacionados.
É evidente, portanto, que a confiança ou
a desconfiança que podemos ter no nosso regime depende muitíssimo do modo como
decorrerem estes processos (muito mais do que dos seus próprios resultados).
Será no mínimo prudente, neste sentido, que o poder executivo não interfira nos
mesmos, a não ser de forma absolutamente transparente e apenas naquilo que for
estritamente necessário. A nomeação do Procurador-Geral da República deveria
ter obedecido a tais critérios.
Infelizmente, porém, não foi o que
aconteceu. Contrariamente ao que ditava a prudência, o Primeiro-Ministro propôs
um novo Procurador-Geral e o Presidente da República nomeou-o, com o que
obviamente interferiram – mais do que era desejável e necessário – nos
processos que estão neste momento em curso, caso que é tanto mais grave quanto
António Costa é Secretário-Geral do Partido anteriormente liderado por José Sócrates
e tem no seu Governo, além de si próprio, vários membros que participaram nos
Governos daquele.
A decisão, do mesmo modo, não foi
transparente. A «recondução» ou «não recondução» da anterior Procuradora-Geral
foi propositadamente mantida na dúvida e em suspenso na opinião pública, tendo
o anúncio da sua «substituição» sido cirurgicamente preparado de modo a que ela
não pudesse ser publicamente discutida e contestada. A justificação que nos foi
dada, além disso – a defesa do princípio do mandato único –, é no mínimo
falaciosa, não se aplicando a este caso.
Na nossa lei, com efeito, nada dispõe o
mandato único do Procurador-Geral da República. As questões de princípio, por
outro lado, não expressam juízos categóricos, permitindo, assim, as exceções
que asseguram a equidade na aplicação da justiça à realidade. Neste caso,
justamente, mandava a prudência que se «reconduzisse» ou «renomeasse» a
Procuradora-Geral em funções, de modo a garantir a confiança no regime e no
funcionamento da justiça. Logo…
Ficámos, assim, sem saber por que razão
foi «substituída» a anterior Procuradora-Geral, coisa que de nenhum modo
deveria ter acontecido. Lá diz o ditado que à mulher de César não basta ser
séria: tem também de parecê-lo, de modo a inspirar a confiança que tem de haver
nos governados. Agora a suspeita está instalada no(s) processo(s) e o regime
foi por esta via posto em causa. Sem confiarmos no funcionamento da justiça não
acreditaremos nos seus resultados, o que é tanto mais grave quando quem está a
ser julgado são antigos responsáveis do poder económico, executivo e
legislativo.
Muitos de nós julgam saber o que levou
António Costa a propô-lo. Poucos saberão, de facto, o que levou Marcelo Rebelo
de Sousa a aceitá-lo. Mas ninguém deverá ter dúvidas quanto ao mal que isto nos
vai fazer. Porque, se é certo que estes processos irão prolongar-se ainda por
muitos anos, a dúvida, desde há um mês, acompanhá-los-á como uma sombra. Com ou
sem razão, deste ponto de vista não interessa – até porque as pessoas não
sabem, nem têm de saber, os detalhes processuais do direito –, ela abateu-se já
sobre a eleição do novo juiz de um dos processos, ensombrando cada uma das suas
decisões, tanto neste como noutros casos.
Um dia, quando tudo isto acabar, nem
Marcelo Rebelo de Sousa, quer se recandidate quer não, será Presidente da
República, nem António Costa, com maioria ou sem ela, será Primeiro-Ministro.
Ninguém sabe quais serão então os números do défice, ou do desemprego, nem
quanto crescerá nessa altura a economia. Mas será por certo maior, entre nós, a
desconfiança do povo no poder do Estado, o afastamento dos cidadãos da
política, a crença de que o poder político e o económico se concertam às
escondidas para tomar decisões que nos interessam, a convicção de que a justiça
é desigual para os poderosos e para os cidadãos comuns… Teremos, portanto, uma
pior democracia. Esta é uma herança que, infelizmente, nos foi já deixada pelos
atuais Pais da Pátria.
Nota da redacção: por
um lamentável lapso, este texto foi erradamente publicado como sendo da autoria
de Tiago Macieirinha. Por esse erro, aqui apresentamos as devidas desculpas a
Tiago Macieirinha, a Gonçalo Pistacchini Moita e aos nossos leitores.
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