sexta-feira, 23 de novembro de 2018

À hora de entre o cão e o lobo (2)


JORGE LAGE

 (conto – continuação do anterior, por Henrique Pedro)

Em breve o Godo abriria dois olhos enormes, oblíquos, azuis como o céu, cresceria desmedido de pernas delgadas, desempenado de corpo, focinho aguçado e orelhas cónicas pontiagudas. E se converteria no meu mais indefectível companheiro de lutas simuladas, correrias e algazarras.
À hora certa, quando ainda eu deambulava em vale de lençóis embalado em sonhos, mal o sol despontava no horizonte, ali bem próximo, na crista da serra, quase em sincronia com o estridente cantar dos galos, já o Godo, sorrateiro, empurrava a porta entreaberta do meu quarto para, com a delicadeza de um verdadeiro lobo, me despertar com repetidos toques do seu focinho frio e húmido na minha face quente.
HENRIQUE PEDRO
Chorei no dia em que dele tive que me afastar quando, no início de um Outono frio o chuvoso, meu pai me arrancou à felicidade edénica de Vila Nova de Monforte para me iniciar na vida escolar em Vale de Salgueiro, a minha aldeia natal, bem no coração da úbere Terra Quente.
Apenas soube que o Godo também desaparecera poucos dias depois de nos termos separado, para não mais ser visto, quando mais tarde voltei a Vila Nova. Foi Frutuoso o primeiro a dar-me a notícia, em jeito de pedido de desculpas e de conforto:
-Bô! Ele não era cristão. A natureza dele é vadiar pela serra. Porí, a estas horas, anda
“praí” a encher o bandulho de lebres e de perdizes. Se ainda o não mataram!
Mesmo assim, corri as cercanias assobiando e gritando pelo seu nome, mas não tive outras respostas para lá do eco e do pio de uma coruja que, de um pinheiro alto, bateu as asas e desceu em voo picado lá para o mais fundo do vale.
Passaram, entretanto, alguns anos. Meia dúzia, se tantos!
A Páscoa caíra num mês de Março, frio e agreste como as encostas que medeiam entre o Barracão e Vila Nova, terra negra e sáfara, varrida por ventos gélidos, cortantes que nem barbeiro podão, onde apenas medravam a urze, a carqueja, o tojo e a giesta e a mão do semeador, de onde em onde, lançava esparsas searas de centeio e batata.
Tinha ficado assente que, desta vez, passaria as férias em Vila Nova, pelo que, tomei o meu posto na venturosa aventura de vencer o Brunheiro a partir de Chaves, no vagaroso autocarro da Auto Viação do Tâmega. Alcançámos o Barracão, naquele tempo não mais que duas ou três casas erguidas à sombra dos portentosos castanheiros que abrigavam a paragem da carreira, já a tarde declinava.
Do ambiente caloroso de alegria e convívio estudantil reinante no autocarro, saltei, lesto, para o silêncio e solidão da serra. No ar volteavam as primeiras fagulhas de neve, etéreas qual delicadas partículas de cinza que se evolavam de uma lareira anelada e invisível.
O frio era cortante, mordia-me a carne e os ossos, penetrando no pesado sobretudo de sarrobeco como se de ténue folha de papel se tratasse. Eram as imaginárias moscas brancas, materializadas nos seus efeitos. A atmosfera carregara-se de um cinzento imaculado. No céu e na terra reinava uma quietude quase absoluta. Por instinto de sobrevivência reconstruí, mentalmente, o trajecto, avaliei a distância e calculei o tempo. Por reflexo estuguei o passo. Num primeiro troço o caminho corria ladeado de espessas giestas. No mais alto da montanha limitava-se a dois sulcos paralelos rasgados no tapete de urze, que acolchoava toda a serra, pelos pesados rodados dos carros de bois para, quando começava a descer para a aldeia, se tornar pedregoso e acidentado, antes mesmo de penetrar no espesso souto cujas copas roçavam as primeiras casas.
Em breve o cinzento do céu se tornaria mais carregado, impenetrável à vista. Escassos metros à minha frente pouco mais divisava que sombras paradas. A neve precipitava-se agora, sem voltejar, em grossos farrapos que se acamavam, fundindo-se em espesso e alvo manto.
 (Continua no próximo número)

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