JORGE LAGE |
(conto – continuação do anterior, por Henrique
Pedro)
Em breve o Godo abriria
dois olhos enormes, oblíquos, azuis como o céu, cresceria desmedido de pernas
delgadas, desempenado de corpo, focinho aguçado e orelhas cónicas pontiagudas.
E se converteria no meu mais indefectível companheiro de lutas simuladas,
correrias e algazarras.
À hora certa, quando
ainda eu deambulava em vale de lençóis embalado em sonhos, mal o sol despontava
no horizonte, ali bem próximo, na crista da serra, quase em sincronia com o
estridente cantar dos galos, já o Godo, sorrateiro, empurrava a porta entreaberta
do meu quarto para, com a delicadeza de um verdadeiro lobo, me despertar com
repetidos toques do seu focinho frio e húmido na minha face quente.
HENRIQUE PEDRO |
Chorei no dia em que
dele tive que me afastar quando, no início de um Outono frio o chuvoso, meu pai
me arrancou à felicidade edénica de Vila Nova de Monforte para me iniciar na
vida escolar em Vale de Salgueiro, a minha aldeia natal, bem no coração da úbere
Terra Quente.
Apenas soube que o Godo
também desaparecera poucos dias depois de nos termos separado, para não mais
ser visto, quando mais tarde voltei a Vila Nova. Foi Frutuoso o primeiro a
dar-me a notícia, em jeito de pedido de desculpas e de conforto:
-Bô! Ele não era
cristão. A natureza dele é vadiar pela serra. Porí, a estas horas, anda
“praí” a encher o
bandulho de lebres e de perdizes. Se ainda o não mataram!
Mesmo assim, corri as
cercanias assobiando e gritando pelo seu nome, mas não tive outras respostas
para lá do eco e do pio de uma coruja que, de um pinheiro alto, bateu as asas e
desceu em voo picado lá para o mais fundo do vale.
Passaram, entretanto,
alguns anos. Meia dúzia, se tantos!
A Páscoa caíra num mês
de Março, frio e agreste como as encostas que medeiam entre o Barracão e Vila
Nova, terra negra e sáfara, varrida por ventos gélidos, cortantes que nem
barbeiro podão, onde apenas medravam a urze, a carqueja, o tojo e a giesta e a
mão do semeador, de onde em onde, lançava esparsas searas de centeio e batata.
Tinha ficado assente
que, desta vez, passaria as férias em Vila Nova, pelo que, tomei o meu posto na
venturosa aventura de vencer o Brunheiro a partir de Chaves, no vagaroso
autocarro da Auto Viação do Tâmega. Alcançámos o Barracão, naquele tempo não
mais que duas ou três casas erguidas à sombra dos portentosos castanheiros que
abrigavam a paragem da carreira, já a tarde declinava.
Do ambiente caloroso de
alegria e convívio estudantil reinante no autocarro, saltei, lesto, para o
silêncio e solidão da serra. No ar volteavam as primeiras fagulhas de neve,
etéreas qual delicadas partículas de cinza que se evolavam de uma lareira
anelada e invisível.
O frio era cortante,
mordia-me a carne e os ossos, penetrando no pesado sobretudo de sarrobeco como
se de ténue folha de papel se tratasse. Eram as imaginárias moscas brancas,
materializadas nos seus efeitos. A atmosfera carregara-se de um cinzento
imaculado. No céu e na terra reinava uma quietude quase absoluta. Por instinto
de sobrevivência reconstruí, mentalmente, o trajecto, avaliei a distância e
calculei o tempo. Por reflexo estuguei o passo. Num primeiro troço o caminho
corria ladeado de espessas giestas. No mais alto da montanha limitava-se a dois
sulcos paralelos rasgados no tapete de urze, que acolchoava toda a serra, pelos
pesados rodados dos carros de bois para, quando começava a descer para a
aldeia, se tornar pedregoso e acidentado, antes mesmo de penetrar no espesso
souto cujas copas roçavam as primeiras casas.
Em breve o cinzento do
céu se tornaria mais carregado, impenetrável à vista. Escassos metros à minha
frente pouco mais divisava que sombras paradas. A neve precipitava-se agora,
sem voltejar, em grossos farrapos que se acamavam, fundindo-se em espesso e
alvo manto.
(Continua no próximo número)
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